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simplesmente dado

Definition:
Vorhandensein, Vorhandenheit, vorhanden

Como ser constitui o questionado e ser diz sempre ser de um ente, o que resulta como interrogado na questão do ser é o próprio ente. Este é como que interrogado em seu ser. Mas para se poder apreender sem falsificações os caracteres de seu ser, o ente já deve se ter feito acessível antes, tal como é em si mesmo. Quanto ao interrogado, a questão de ser exige que se conquiste e assegure previamente um modo adequado de acesso ao ente. Chamamos de “ente” muitas coisas e em sentidos diversos. Ente é tudo de que [7] falamos dessa ou daquela maneira, ente é também o que e como nós mesmos somos. Ser está naquilo que é e como é, na realidade, no SER SIMPLESMENTE DADO (Vorhandenheit), no teor e recurso, no valor e validade, no existir {CH: ainda é o conceito corrente e nenhum outro}, no “dá-se”. Em qual dos entes deve-se {CH: duas questões distintas se justapõem aqui; isso dá motivo para um mal-entendido, sobretudo com referência ao papel da presença [Dasein]} ler o sentido de ser? De que ente deve partir a abertura para o ser? O ponto de partida é arbitrário, ou será que um determinado ente possui o primado na elaboração da questão do ser? Qual é este ente exemplar {CH: perigo de mal-entendido. Exemplar é a presença [Dasein] porque ela é o jogo de apreensão que, em sua essência como presença [Dasein] (resguardando a verdade do ser), o ser como tal joga e articula – porque o ser como tal põe no jogo de sua ressonância.} e em que sentido possui ele um primado? STMSC: §2

1. A “essência” deste ente está em ter de ser {CH: em “ter” de ser, determinação!}. A quididade (essentia) deste ente, na medida em que dela se possa falar, há de ser concebida a partir de seu ser (existência). Neste propósito, é tarefa ontológica mostrar que, se escolhemos a palavra existência para designar o ser deste ente, esta não tem e nem pode ter o significado ontológico do termo tradicional existentia. Para a ontologia tradicional, existentia designa o mesmo que SER SIMPLESMENTE DADO, modo de ser que não pertence à essência do ente dotado do caráter de presença [Dasein]. Evita-se uma confusão usando a expressão interpretativa SER SIMPLESMENTE DADO para designar existentia e reservando-se existência como determinação ontológica exclusiva da presença [Dasein]. STMSC: §9

As origens relevantes para a antropologia tradicional, a definição grega e o paradigma teológico atestam que, ao se determinar a essência deste ente “homem”, a questão de seu ser foi esquecida. Ao invés de questioná-lo, concebeu-se o ser do homem como “evidência”, no sentido de SER SIMPLESMENTE DADO junto às demais coisas criadas. Essas duas vertentes se entrelaçam na antropologia moderna com o ponto de partida metodológico da res cogitans, a consciência (Bewusstsein), o conjunto das vivências. Como, no entanto, as cogitationes permanecem ontologicamente indeterminadas, sendo tomadas implicitamente como algo “evidente” e “dado”, cujo “ser” não suscita nenhuma questão, a problemática antropológica fica indeterminada quanto a seus fundamentos ontológicos decisivos. STMSC: §10

O que diz ser-em? De saída, completamos a expressão, dizendo: ser “em um mundo” e nos vemos tentados a compreender o ser-em como um estar “dentro de...”. Com esta última expressão, designamos o modo de ser de um ente que está num outro, como a água está no copo, a roupa no armário. Com este “dentro” indicamos a relação recíproca de ser de dois entes extensos “dentro” do espaço, no tocante a seu lugar neste mesmo espaço. Água e copo, roupa e armário estão igualmente “dentro” do espaço “em” um lugar. Esta relação de ser pode ampliar-se, por exemplo: o banco na sala de aula, a sala na universidade, a universidade na cidade e assim por diante até: o banco “dentro do espaço cósmico”. Esses entes, que podem ser determinados como estando um “dentro” do outro, têm o mesmo modo de ser do que é simplesmente dado, como coisa que ocorre “dentro” do mundo. Ser simplesmente dado “dentro” do que está dado, o SER SIMPLESMENTE DADO junto com algo dotado do mesmo modo de ser, no sentido de uma determinada relação de lugar, são caracteres ontológicos que chamamos de categoriais. Tais caracteres pertencem ao ente não dotado do modo de ser da presença [Dasein]. STMSC: §12

O ser-em, ao contrário, significa uma constituição de ser da presença [Dasein] e é um existencial. Com ele, portanto, não se pode pensar no SER SIMPLESMENTE DADO de uma coisa corpórea (o corpo vivo do humano) “dentro” de um ente simplesmente dado. O ser-em não pode indicar que uma coisa simplesmente dada está, espacialmente, “dentro de outra” porque, em sua origem, o “em” não significa de forma alguma uma relação espacial desta espécie ; “em” deriva-se de innan-, morar, habitar, deter-se; “an” significa: estou acostumado a, habituado a, familiarizado com, cultivo alguma coisa; possui o significado de colo, no sentido de habito e diligo. O ente, ao qual pertence o ser-em, neste sentido, é o ente que sempre eu mesmo sou. A expressão “sou” conecta-se a “junto”; “eu sou” diz, por sua vez: eu moro, detenho-me junto... ao mundo, como alguma coisa que, deste ou daquele modo, me é familiar. Como infinitivo de “eu sou”, isto é, como existencial, ser {CH: ser é também infinitivo de “é”: o ente é} significa morar junto a, ser familiar com. O ser-em é, pois, a expressão formal e existencial do ser da presença [Dasein] {CH: mas não do ser em geral e nem mesmo do próprio ser – pura e simplesmente} que possui a constituição essencial de ser-no-mundo. STMSC: §12

Como existencial, o “ser-junto” ao mundo nunca indica um simplesmente dar-se em conjunto de coisas que ocorrem. Não há nenhuma espécie de “justaposição” de um ente chamado “presença [Dasein]” a um outro ente chamado “mundo”. Por vezes, sem dúvida, costumamos exprimir com os recursos da língua o conjunto de dois entes simplesmente dados, dizendo: “a mesa está junto à porta”, “a cadeira ‘toca’ a parede”. Rigorosamente, nunca se poderá falar aqui de um “tocar”, não porque sempre se pode constatar, num exame preciso, um espaço entre a cadeira e a parede, mas porque, em princípio, a cadeira não pode tocar a parede mesmo que o espaço entre ambas fosse igual a zero. Para tanto, seria necessário pressupor que a parede viesse ao encontro “da” cadeira. Um ente só poderá tocar um outro ente simplesmente dado dentro do mundo se, por natureza, tiver o modo do ser-em, se, com sua presença [Dasein], já se lhe houver sido descoberto um mundo. Pois a partir do mundo o ente poderá, então, revelar-se no toque e, assim, tornar-se acessível em seu SER SIMPLESMENTE DADO. Dois entes que se dão simplesmente dentro do mundo e que, além disso, são em si mesmos destituídos de mundo, nunca podem “tocar”-se, nunca um deles pode “ser e estar junto ao” outro. Não pode faltar o acréscimo: “e, além disso, são em si mesmos destituídos de mundo”, porque também o ente que não é destituído de mundo, por exemplo, a própria presença [Dasein], se dá simplesmente “no” mundo ou, mais precisamente, também pode ser apreendido, com certa razão e dentro de certos limites, como algo simplesmente dado. Para isso, no entanto, é preciso que se desconsidere inteiramente, isto é, que não se veja a constituição existencial do ser-em. Mas não se deve confundir essa possibilidade de apreender a “presença [Dasein]” como um dado e somente como simples dado com um modo de “SER SIMPLESMENTE DADO”, próprio da presença [Dasein]. Pois este SER SIMPLESMENTE DADO não é acessível quando se desconsideram as estruturas específicas da presença [Dasein]. Ele só se torna acessível em sua compreensão prévia. A presença [Dasein] compreende o seu ser mais próprio no sentido de um certo “SER SIMPLESMENTE DADO fatual”. Na verdade, a “fatualidade” do fato da própria presença [Dasein] é, em seu ser, fundamentalmente diferente da ocorrência fatual de uma espécie qualquer de pedras. Chamamos de facticidade o caráter de fatualidade do fato da presença [Dasein] em que, como tal, cada presença [Dasein] sempre é. À luz da elaboração das constituições existenciais básicas da presença [Dasein], a estrutura complexa desta determinação ontológica só poderá ser apreendida em si mesma como problema. O conceito de facticidade abriga em si o ser-no-mundo de um ente “intramundano”, de maneira que este ente possa ser compreendido como algo que, em seu “destino”, está ligado ao dos entes que lhe vêm ao encontro dentro de seu próprio mundo. STMSC: §12

De início, trata-se apenas de ver a diferença ontológica entre o ser-em, como existencial, e a “interioridade” recíproca dos entes simplesmente dados, como categoria. Ao delimitarmos dessa maneira o ser-em, a presença [Dasein] não se vê despojada de toda e qualquer espécie de “espacialidade”. Ao contrário, a presença [Dasein] tem seu próprio “ser no espaço”, o qual, no entanto, só é possível com base e fundamento no ser-no-mundo em geral. Não se pode, por conseguinte, esclarecer ontologicamente o ser-em mediante uma caracterização ôntica, dizendo: o ser-em um mundo é uma propriedade espiritual e a “espacialidade” do homem é uma qualidade de sua corporeidade (Leiblichkeit), fundada sempre num ser corpóreo (Kõrperlichkeit). Pois, com isso, se estaria novamente diante do SER SIMPLESMENTE DADO de uma coisa espiritual assim qualificada junto a uma coisa corpórea, permanecendo obscuro o ser como tal do ente assim composto. A compreensão de ser-no-mundo como estrutura essencial da presença [Dasein] é que possibilita a visão penetrante da espacialidade existencial da presença [Dasein]. É ela que impede a eliminação antecipada desta estrutura. Essa eliminação prévia não é motivada ontologicamente, mas “metafisicamente”, pela opinião ingênua de que primeiro o homem é uma coisa espiritual e que, só então, coloca-se “em” um espaço. STMSC: §12

Na própria presença [Dasein] e para ela, esta constituição de ser é, desde sempre e de alguma maneira, reconhecida. No entanto, para ser também conhecida, o conhecer explícito nessa tarefa toma a si mesmo, enquanto conhecimento do mundo, como relação exemplar entre “alma” e mundo. Por isso, conhecer o mundo (noein), dizer e discutir o “mundo” (logos) funcionam como modo primário de ser-no-mundo, embora este último não seja concebido como tal. Porque, no entanto, esta estrutura de ser permanece ontologicamente inacessível, ela é experimentada onticamente como “relação” de um ente (mundo) com outro ente (alma). Ademais, porque ser é, numa primeira aproximação, compreendido apoiando-se ontologicamente no ente como ente intramundano, tenta-se compreender esta relação entre os entes mencionados com base nestes entes e no sentido de seu ser, isto é, como SER SIMPLESMENTE DADO. Embora experienciado e reconhecido pré-fenomenologicamente, o ser-no-mundo se torna invisível por via de uma interpretação ontologicamente inadequada. Agora só se conhece a constituição da presença [Dasein] e, na verdade, como algo evidente por si mesmo, na pregnância de uma interpretação inadequada. Desse modo, esta interpretação torna-se o ponto de partida “evidente” para os problemas da epistemologia ou “metafísica do conhecimento”. Pois, o que é mais evidente do que um “sujeito” referir-se a um “objeto” e vice-versa? Esta correlação de sujeito-objeto é um pressuposto necessário. Mas tudo isso, embora inatacável em sua facticidade, ou melhor, justamente por isso, permanece um pressuposto fatal, quando se deixa obscura a sua necessidade e, sobretudo, o seu sentido ontológico. STMSC: §12

Natureza aqui, porém, não deve ser compreendida como algo simplesmente dado e nem tampouco como poder da natureza. A mata é reserva florestal, a montanha é pedreira, o rio é represa, o vento é vento “nas velas”. Com a descoberta do “mundo circundante”, a “natureza” assim descoberta vem ao encontro. Pode-se prescindir de seu modo de ser à mão e determiná-la e descobri-la apenas em seu modo de SER SIMPLESMENTE DADO. Nesse modo de descobrir, porém, a natureza se vela enquanto aquilo que “tece e acontece”, que se precipita sobre nós, que nos fascina com sua paisagem. As plantas do botânico não são flores no campo, o “jorrar” de um rio, constatado geograficamente, não é “fonte no solo”. STMSC: §15

O modo de ser desse ente é a manualidade. Não se pode compreendê-la, porém, como mero caráter de apreensão {CH: mas na verdade somente caráter de encontro}, como se tais “aspectos” fossem impostos numa fala ao “ente” que de imediato vem ao encontro, ou como se uma matéria do mundo, já simplesmente dada em si, fosse desse modo “colorida subjetivamente”. Uma interpretação assim orientada desconsidera que, para tanto, o ente deveria ser previamente compreendido como algo pura e simplesmente dado e que, em decorrência, um modo de lidar com o “mundo” que o descobre e dele se apropria passa a ter primado e autoridade. Isso já contradiz o sentido ontológico do conhecimento que demonstramos como modo fundado do ser-no-mundo. Esse ser-no-mundo só chega a explicitar o que é simplesmente dado, através do que está à mão na ocupação. Manualidade é a determinação categorial dos entes tais como são “em si”. Todavia, a manualidade apenas se dá com base em algo simplesmente dado. Admitindo-se essa tese, seguir-se-ia, então, que a manualidade está fundada ontologicamente no SER SIMPLESMENTE DADO? STMSC: §15

Entretanto, por mais que, no desenvolvimento da interpretação ontológica, a manualidade se resguarde como modo de ser dos entes intramundanos primeiro descobertos e por mais que a sua originariedade frente ao SER SIMPLESMENTE DADO possa se deixar e fazer comprovar, não será que com o que se explicou até agora conquistamos um mínimo para o entendimento ontológico do fenômeno do mundo? Na interpretação desse ente intramundano, o mundo já é sempre “pressuposto”. O “mundo”, porém, não resulta da reunião desses entes como uma soma. Será, pois, que do ser desse ente se descortina um caminho para a demonstração do fenômeno do mundo? STMSC: §15

À cotidianidade de ser-no-mundo pertencem modos de ocupação que permitem o encontro com o ente de que se ocupa, de tal maneira que apareça a determinação mundana dos entes intramundanos. Na ocupação, o ente que está mais imediatamente à mão pode ser encontrado como algo que não é passível de ser empregado ou como algo que não se acha em condições de cumprir seu emprego específico. O utensílio se apresenta danificado, o material inadequado. Em todo caso, um instrumento está aqui à mão. Mas o que a impossibilidade de emprego descobre não é a constatação visual de propriedades e sim a circunvisão da lida no uso. Nessa descoberta da impossibilidade de emprego, o instrumento surpreende. A surpresa proporciona o instrumento num determinado modo de não estar à mão. Entretanto, aí se acha o seguinte: o que não pode ser usado está simplesmente aí – mostra-se como coisa-instrumento, dotada de tal e tal configuração, e que, em sua manualidade, é sempre simplesmente dada nessa configuração. O puro SER SIMPLESMENTE DADO anuncia-se no instrumento de modo a, contudo, recolher-se novamente à manualidade do que se acha em ocupação, ou seja, do que se encontra na possibilidade de se pôr de novo em condições. Esse SER SIMPLESMENTE DADO do que não pode ser usado não carece, todavia inteiramente de manualidade. O instrumento assim simplesmente dado ainda não é uma coisa que aparece em algum lugar. A danificação do instrumento também ainda não é sua transformação em simples coisa ou uma mera troca de características de algo simplesmente dado. STMSC: §16

O modo de lidar da ocupação, no entanto, não se depara apenas com o que não pode ser empregado em meio ao que já está à mão. Depara-se com o que falta, com o que não apenas não pode ser “manuseado”, mas com o que não está, de modo algum, “à mão”. Esse tipo de falta, como encontro de algo que não está à mão, põe de novo a descoberto o manual, embora num certo SER SIMPLESMENTE DADO. Ao constatar o que não está à mão, o manual assume o modo da importunidade. Quanto maior for a falta do necessário, quanto mais propriamente ele se der ao encontro não estando à mão, tanto mais importuno torna-se o manual, e isso de tal maneira que parece perder o caráter de manualidade. Ele se desvela como algo simplesmente dado que não pode mover-se sem o que falta. Ficar sem saber o que fazer é um modo deficiente de ocupação que descobre o SER SIMPLESMENTE DADO de um manual. STMSC: §16

Na lida com o mundo na ocupação, ainda se pode encontrar um manual não apenas no sentido do que não pode ser empregado ou do que simplesmente está faltando, mas também, enquanto não manual. O que não falta e não é passível de emprego, como o que “obstrui o caminho” para a ocupação. Aquilo para que a ocupação não pode voltar-se, aquilo para que ela não tem “tempo”, é um não manual, no modo do que não pertence ou não se finalizou. Esse não estar à mão perturba e faz aparecer a impertinência do que, numa primeira aproximação e antes de tudo, deve ocupar-se. Com esta impertinência, anuncia-se de maneira nova o SER SIMPLESMENTE DADO do manual como o ser daquilo que se apresenta, exigindo ainda a sua finalização. STMSC: §16

Os modos de surpresa, importunidade e impertinência possuem a função de mostrar o caráter de algo simplesmente dado do manual. Com isso, porém, não se considera ou encara meramente o manual como algo simplesmente dado. O SER SIMPLESMENTE DADO aqui anunciado ainda está ligado à manualidade do instrumento. Ele ainda não está entranhado como simples coisa. O instrumento torna-se instrumento no sentido de um “troço” do qual gostaríamos de nos desembaraçar; nessa tendência de desembaraço, contudo, o manual se mostra como o que é sempre manual no incontornável de seu SER SIMPLESMENTE DADO. STMSC: §16

O que, no entanto, significa para o esclarecimento do fenômeno do mundo essa visualização do encontro modificado com o manual em que se desvela o seu modo de SER SIMPLESMENTE DADO? Mesmo com a análise dessa modificação ainda estamos no ser dos entes intramundanos e ainda não nos avizinhamos do fenômeno do mundo. Embora ainda não tenha sido apreendido, dispomos agora da possibilidade de ver o fenômeno. STMSC: §16

Que o mundo não “consista” de manuais, isso se mostra, dentre outras coisas, porque, junto com o evidenciar-se de mundo nos modos interpretados da ocupação, ocorre simultaneamente uma desmundanização do manual, de tal maneira que ele aparece como SER SIMPLESMENTE DADO. Para que se possa encontrar o instrumento manual em seu “ser-em-si” nas ocupações cotidianas do “mundo circundante”, as referências e conjuntos referenciais em que a circunvisão “se empenha” não devem ser tematizados nem para ela e nem, principalmente, para uma apreensão “temática”, desprovida de circunvisão. O não-anunciar-se do mundo é a condição de possibilidade para que o manual não saia da sua não-surpresa. E é isso que constitui a estrutura fenomenal do ser-em-si desse ente. STMSC: §16

As expressões privativas como não-surpresa, não importuno, não impertinente indicam um caráter fenomenal positivo do ser que está imediatamente à mão. Esse “não” indica o caráter de manter-se em si do manual. É o que temos em mente com a expressão ser-em-si e que, de maneira característica, atribuímos primeiramente ao SER SIMPLESMENTE DADO, passível de constatação temática. Uma orientação exclusiva ou primordial pelo que é simplesmente dado não pode esclarecer ontologicamente o “em-si”. Caso se recorra com razão fenomenal e ênfase ôntica ao em-si do ser, então faz-se necessária uma interpretação. Esse recurso ôntico, no entanto, não preenche a exigência pretensamente dada de um enunciado ontológico. A análise empreendida até agora mostra claramente que só se pode apreender ontologicamente o ser-em-si dos entes intramundanos com base no fenômeno do mundo. STMSC: §16

Segundo a interpretação feita até aqui, ser-no-mundo significa: empenhar-se de maneira não temática, guiando-se pela circunvisão, nas referências constitutivas da manualidade de um conjunto instrumental. A ocupação já é o que é, com base numa familiaridade com o mundo. Nessa familiaridade, a presença [Dasein] pode perder-se e ser absorvida pelo ente intramundano que vem ao seu encontro. O que é isso com que a presença [Dasein] se familiariza e por que a determinação mundana dos entes intramundanos pode aparecer? Como se deve compreender mais precisamente a totalidade referencial em que se “move” a circunvisão e cujas possíveis quebras impõem o SER SIMPLESMENTE DADO dos entes? STMSC: §16

Indicou-se a constituição instrumental do manual como referência. Como o mundo pode liberar em seu ser os entes dotados desse modo de ser? Por que esse ente é o que vem ao encontro em primeiro lugar? Consideramos a serventia, o dano, a possibilidade de emprego, etc. como referências determinadas. O para quê (Wozu) de uma serventia e o em quê (Wofür) de uma possibilidade de emprego delineiam a concreção possível da referência. A “ação de mostrar” do sinal, o “martelar” do martelo não são, contudo, propriedades dos entes. Não são propriedades em sentido algum, caso esse termo deva designar a estrutura ontológica de uma determinação possível de coisas. Em todo caso, o manual é apropriado ou não apropriado e, nessas apropriações, suas “propriedades” acham-se, por assim dizer, articuladas, do mesmo modo que o SER SIMPLESMENTE DADO, na qualidade de modo possível de ser de um manual na manualidade. Como constituição do instrumento, a serventia (referência) também não é o ser apropriado de um ente, mas a condição ontológica da possibilidade para que possa ser determinado por apropriações. O que diria, pois, nesse caso, referência? O ser do manual tem a estrutura da referência. Isso significa: ele possui em si mesmo o caráter de estar referido a. O ente se descobre enquanto referido a uma coisa como o ente que ele mesmo é. O ente tem com o ser que ele é algo junto. O caráter ontológico do manual é a conjuntura. Na conjuntura se diz: algo se deixa e faz junto a. É essa remissão de “com... junto...” que se pretende indicar com o termo referência. STMSC: §18

No âmbito do presente campo de investigação, as diferenças repetidas vezes marcadas entre as estruturas e dimensões da problemática ontológica devem-se manter fundamentalmente separadas: 1) o ser dos entes intramundanos, que primeiro vêm ao encontro (manualidade); 2) o ser dos entes (SER SIMPLESMENTE DADO) que se acham e se podem determinar num percurso autônomo de descoberta através dos entes que primeiro vêm ao encontro; 3) o ser da condição ôntica de possibilidade da descoberta de entes intramundanos em geral, a mundanidade {CH: melhor, a vigência do mundo} do mundo. Este último é uma determinação existencial do ser-no-mundo, ou seja, da presença [Dasein]. Os outros dois conceitos de ser são categorias e abrangem entes que não possuem o modo de ser da presença [Dasein]. Pode-se apreender formalmente o conceito referencial que constitui o mundo como significância no sentido de um sistema de relações. Deve-se, porém, observar que tais formalizações nivelam de tal modo os fenômenos que, em remissões tão “simples” como as que a significância abriga, perdem o conteúdo propriamente fenomenal. Essas “relações” e “relatas” do ser-para, do ser em virtude de, do estar com de uma conjuntura, em seu conteúdo fenomenal, resistem a toda funcionalização matemática; também não são algo pensado, posto pela primeira vez pelo pensamento, mas remissões em que a circunvisão da ocupação sempre se detém como tal. Esse “sistema de relações” constitutivo da mundanidade dissolve tão pouco o ser do manual intramundano que, na verdade, é só com base na mundanidade do mundo que ele pode descobrir-se em seu “em-si substancial”. E somente quando o ente intramundano em geral puder vir ao encontro é que subsiste a possibilidade de se tornar acessível o que, no âmbito deste ente, é simplesmente dado. Com base neste SER SIMPLESMENTE DADO é que se podem determinar matematicamente “propriedades” desses entes em “conceitos de funções”. Conceitos de função dessa espécie só se tornam ontologicamente possíveis remetendo-se a um ente cujo ser possui o caráter de pura substancialidade. Conceitos de função não são outra coisa do que conceitos formalizados de substância. STMSC: §18

Na exposição do problema da mundanidade (§14), indicou-se a importância de se obter uma via de acesso adequada ao fenômeno. Na discussão crítica do ponto de partida cartesiano teremos, pois, de perguntar: Que modo de ser da presença [Dasein] é fixado como a via de acesso adequada ao que, enquanto extensio, Descartes identifica com o ser do “mundo”? A única via de acesso autêntica para esse ente é o conhecer, a intellectio, no sentido do conhecimento físico-matemático. O conhecimento matemático vale como o modo de apreensão dos entes, capaz de propiciar sempre uma posse mais segura do ser dos entes nele apreendidos. Em sentido próprio, só é aquilo que tem o modo de ser capaz de satisfazer o ser acessível no conhecimento matemático. Este ente é aquilo que sempre é o que é; por isso, ao experimentar o modo de ser do mundo, o que constitui o seu ser propriamente dito é aquilo que pode mostrar o caráter de permanência constante, como remanens capax mutationum. Propriamente só é o que sempre permanece. E é isso o que a matemática conhece. O que no ente se torna acessível pela matemática constitui, portanto, o seu ser. Assim, de uma determinada ideia de ser, inserida no conceito de substancialidade e a partir da ideia de um conhecimento relativo ao ente assim conhecido, dita-se, por assim dizer, ao “mundo” o seu ser. Descartes não retira o modo de ser dos entes intramundanos deles mesmos. Com base numa ideia de ser, velada em sua origem e não demonstrada em sua legitimidade (ser = constância do SER SIMPLESMENTE DADO), ele prescreve ao mundo o seu ser “próprio”. Não é, portanto, principalmente o apoiar-se numa ciência particular e, por acaso, especialmente estimada, a matemática, o que determina {CH: mas direcionamento pelo matemático como tal, mathema e ón} a ontologia do mundo, mas uma orientação fundamentalmente ontológica pelo ser enquanto constância do SER SIMPLESMENTE DADO, cuja apreensão é lograda, de modo excepcional, pelo conhecimento matemático. Descartes cumpre, assim, de maneira filosoficamente explícita, a virada das influências da ontologia tradicional sobre a física matemática moderna e os seus fundamentos transcendentais. STMSC: §21

A dureza é compreendida como resistência. Assim como a dureza, esta última não é entendida num sentido fenomenal como alguma coisa experimentada em si mesma e, nessa experiência, passível de determinação. Para Descartes, resistência significa não sair do lugar, isto é, não sofrer deslocamento. Neste sentido, a resistência de uma coisa significa permanecer num lugar determinado com relação a uma outra coisa que troca de lugar, ou trocar de lugar numa tal velocidade que pode ser por ela “alcançada”. Mediante esta interpretação da experiência de dureza, apaga-se o modo de ser da percepção sensível e, com isso, a possibilidade de se apreender em seu ser o ente dado nessa percepção. Descartes traduz o modo de ser da percepção de alguma coisa para o único modo de ser que conhece: a percepção de alguma coisa torna-se justaposição determinada de duas res extensae simplesmente dadas, em que as suas relações de movimento se dão no modus da extensio que caracteriza primordialmente o SER SIMPLESMENTE DADO de uma substância corpórea. Sem dúvida, o “preenchimento” possível de um relacionamento tátil exige uma “proximidade” especial do que pode ser tocado. Isso, no entanto, não quer dizer que o tocar e a dureza que nele se anunciam consistam, do ponto de vista ontológico, na velocidade diferente de duas coisas corpóreas. Dureza e resistência não se mostram de forma alguma quando não se dá um ente dotado do modo de ser da presença [Dasein] ou, ao menos, de um ser vivo. STMSC: §21

A ideia de ser como constância do SER SIMPLESMENTE DADO motiva não apenas uma determinação extremada do ser dos entes intramundanos e de sua identificação com o mundo em geral, como também impede que se perceba, de maneira ontologicamente adequada, os comportamentos da presença [Dasein]. com isso veda-se completamente o caminho para se ver o caráter fundado de toda percepção sensível e intelectual e para compreendê-las como uma possibilidade do ser-no-mundo. Descartes, no entanto, apreende o ser da “presença [Dasein]”, a cuja constituição fundamental pertence o ser-no-mundo, da mesma maneira que o ser da res extensa, isto é, como substância. STMSC: §21

Mas será que neste caminho, que faz abstração do problema específico do mundo, ainda se poderá alcançar ontologicamente o ser do que nos vem imediatamente ao encontro dentro do mundo? Não será que com esta determinação material da coisa se estabelece implicitamente como ponto de partida um ser – a constância do SER SIMPLESMENTE DADO das coisas – que não experimenta nenhuma complementação ontológica através do aparelhamento posterior dos entes com predicados de valor, em que esses predicados permanecem apenas determinações ónticas de um ente que possui o modo de ser de coisa? O acréscimo de predicados de valor não é capaz de propiciar em nada uma nova perspectiva sobre o ser dos bens, mas apenas pressupõe para estes o modo de ser de puras coisas simplesmente dadas. Valores são determinações simplesmente dadas de uma coisa. Em última instância, os valores têm sua origem ontológica unicamente no ponto de partida prévio da realidade das coisas como nível fundamental. A experiência pré-fenomenológica, no entanto, já mostra nos entes entendidos como coisa algo que não pode ser inteiramente compreendido por meio desse caráter. O ser coisa necessita, pois, de uma complementação. Do ponto de vista ontológico, o que significa o ser dos valores, ou seja, “a sua validade”, que Lotze compreendia como um modus de “afirmação”? O que significa ontologicamente esta “aderência” dos valores às coisas? Enquanto estas determinações não forem esclarecidas, a reconstrução das coisas de uso a partir das coisas naturais continuará sendo um empreendimento ontológico duvidoso, para não se dizer nada da distorção de princípio que sofre a problemática. E essa reconstrução de uma coisa de uso inicialmente “descascada” não necessitaria sempre de uma visão prévia e positiva do fenômeno cuja totalidade deve ser reproduzida na reconstrução! Se, porém, a sua própria constituição de ser não tiver sido explicitada previamente de modo adequado, a reconstrução procederá sem qualquer projeto. Como a reconstrução e a “complementação” da ontologia tradicional do “mundo” chegam, em seu resultado, ao mesmo ente do qual partiu a análise acima referida da manualidade de instrumental e da totalidade conjuntural, surge a impressão de se ter esclarecido, de fato, o ser deste ente ou, ao menos, de tê-lo tomado como problema. Da mesma forma que Descartes não alcança o ser da substância com a extensio enquanto proprietas, assim também o recurso para as qualificações de “valor” não é capaz de visualizar o ser como mera manualidade e muito menos de elevá-lo à esfera de um tema ontológico. STMSC: §21

Já indicamos (§14) que saltar por cima do mundo e daquele ente que imediatamente vem ao encontro não é um acaso nem um lapso que pudesse ser posteriormente reparado, mas que isso se funda num modo de ser essencial da própria presença [Dasein]. A ontologia cartesiana do mundo é ainda hoje vigente em seus princípios fundamentais. A crítica aqui empreendida só pode alcançar a sua legitimidade filosófica no momento em que a analítica da presença [Dasein] tiver tornado transparentes, no âmbito desta problemática, as suas estruturas mais importantes. E, além disso, quando houver remetido ao conceito de ser o horizonte de sua possível compreensibilidade {CH: sic! decerto, “compreensibilidade” para o compreender enquanto projeto e este como temporalidade ekstática} e, assim, compreendido ontologicamente de modo originário tanto a manualidade quanto o SER SIMPLESMENTE DADO. STMSC: §21

Até que ponto, na caracterização do manual, já nos deparamos com a sua espacialidade? Já falamos do que numa primeira aproximação se apresenta como manual. Isto não indica apenas o ente que vem ao encontro em primeiro lugar, aludindo igualmente ao ente que se acha na “proximidade”. O manual do modo de lidar cotidiano possui o caráter de proximidade. Examinando-se com precisão, esta proximidade do instrumento já se acha indicada no próprio termo que exprime seu ser, na “manualidade”. O ente “à mão” sempre possui uma proximidade diferente que não se estipula medindo-se distâncias. Essa proximidade regula-se a partir do uso e manuseio “a se levar em conta” na circunvisão. A circunvisão da ocupação fixa o que, desse modo, está próximo também quanto à direção em que o instrumento é, cada vez, acessível. A proximidade direcionada do instrumento significa que ele não ocupa uma posição no espaço, meramente localizada em algum lugar, mas que, como instrumento, ele se acha, essencialmente, instalado, disposto, instituído e alojado. O instrumento tem seu lugar ou então “está por aí”, o que se deve distinguir fundamentalmente de uma simples ocorrência numa posição arbitrária do espaço. Cada lugar se determina como lugar deste instrumento para... , a partir de um todo de lugares reciprocamente direcionados do conjunto instrumental, “à mão” no mundo circundante. O lugar e a multiplicidade de lugares não devem ser interpretados como o onde de qualquer SER SIMPLESMENTE DADO de coisas. O lugar é sempre o “aqui” e “lá” determinados, a que pertence um instrumento. Essa pertinência corresponde ao caráter de instrumento do manual, isto é, ao pertencer a um todo instrumental segundo uma conjuntura. A condição de possibilidade da pertinência localizável de um todo instrumental reside no para onde a que se remete a totalidade dos lugares de um contexto instrumental. Chamamos de região este para onde da possível pertinência instrumental, previamente visualizado no modo de lidar da ocupação dotada de uma circunvisão. STMSC: §22

Ao atribuirmos espacialidade à presença [Dasein], temos evidentemente de conceber este “ser-no-espaço” a partir de seu modo de ser. Em sua essência, a espacialidade da presença [Dasein] não é um SER SIMPLESMENTE DADO e por isso não pode significar ocorrer em alguma posição do “espaço cósmico” e nem estar à mão em um lugar. Ambos são modos de ser de entes que vêm ao encontro dentro do mundo. A presença [Dasein], no entanto, está e é “no” mundo, no sentido de lidar familiarmente na ocupação com os entes que vêm ao encontro dentro do mundo. Por isso, se, de algum modo, a espacialidade lhe convém, isto só é possível com base nesse ser-em. A espacialidade do ser-em apresenta, porém, os caracteres de dis-tanciamento e direcionamento. STMSC: §23

A resposta à pergunta: quem é sempre este ente (a presença [Dasein]) aparentemente já foi dada (§9) com a indicação formal das determinações fundamentais da presença [Dasein]. A presença [Dasein] é o ente que eu mesmo sempre sou, o ser é sempre meu. Esta determinação indica uma constituição ontológica, mas também só isso. Ao mesmo tempo contém a indicação ôntica, se bem que a grosso modo, de que sempre este ente é um eu e não um outro. O quem responde a partir de um eu mesmo, do “sujeito”, do si-mesmo. O pronome quem é aquilo que, nas mudanças de atitude e vivência, mantém-se idêntico e, assim, refere-se a esta multiplicidade. Do ponto de vista ontológico, nós o entendemos como algo simplesmente dado para e numa região fechada que, num sentido privilegiado, oferece uma base enquanto o subjectum. Sendo sempre o mesmo, possui, nas muitas alterações, o caráter de si-mesmo. Por mais que se rejeite a substância da alma ou o caráter de coisa da consciência (Bewusstsein) e de objetividade da pessoa, ontologicamente fica-se atrelado, já de saída, a algo cujo ser guarda, explícita ou implicitamente, o sentido de SER SIMPLESMENTE DADO. A substancialidade é o guia ontológico da determinação dos entes a partir do qual se responde à pergunta quem. De maneira implícita, concebe-se previamente a presença [Dasein] como algo simplesmente dado. Em todo caso, o caráter indeterminado de seu ser sempre implica este sentido. Ora, o SER SIMPLESMENTE DADO é o modo de ser de um ente que não possui o caráter da presença [Dasein]. STMSC: §25

Mas se o ser-si-mesmo “só” puder ser concebido como um modo de ser desse ente, isto parece equivaler a uma dissolução do “cerne” propriamente dito da presença [Dasein]. Tais temores, no entanto, alimentam-se do preconceito de que o ente em questão tem, no fundo, o modo de SER SIMPLESMENTE DADO, por mais que dele se mantenha afastado o caráter massivo de uma coisa corpórea. Em contrapartida, a “substância” do homem é a existência e não o espírito enquanto síntese de corpo e alma. STMSC: §25

A “descrição” do mundo circundante mais próximo, por exemplo, do mundo do artesão, mostrou que, com o instrumento em ação, também “vêm ao encontro” os outros, aos quais a “obra” se destina. No modo de ser desse manual, ou seja, em sua conjuntura, subsiste uma referência essencial a possíveis portadores para os quais a obra está “talhada sob medida”. Do mesmo modo, junto com o material empregado, também vem ao encontro o seu produtor ou “fornecedor”, enquanto aquele que “serve” bem ou mal. O campo, por exemplo, onde passeamos “lá fora” mostra-se como o campo que pertence a alguém, que é por ele mantido em ordem; o livro usado foi comprado em tal livreiro, foi presenteado por... e assim por diante. Em seu ser-em-si, o barco ancorado na praia refere-se a um conhecido que nele viaja ou então um “barco desconhecido” mostra outros. Os outros que assim “vêm ao encontro”, no conjunto instrumental à mão no mundo circundante, não são algo acrescentado pelo pensamento a uma coisa já antes simplesmente dada. Todas essas coisas vêm ao encontro a partir do mundo em que elas estão à mão para os outros. Este mundo já é previamente sempre o meu. Na análise feita até aqui, a periferia daquilo que vem ao encontro dentro do mundo restringiu-se, de início, ao instrumento manual e à natureza simplesmente dada e, assim, aos entes destituídos do caráter da presença [Dasein]. Esta restrição não apenas era necessária para simplificar a explicação, mas, sobretudo, porque o modo de ser da presença [Dasein] dos outros que vêm ao encontro dentro do mundo diferencia-se da manualidade e do SER SIMPLESMENTE DADO. O mundo da presença [Dasein] libera, portanto, entes que não apenas se distinguem dos instrumentos e das coisas mas que, de acordo com seu modo de ser de presença [Dasein], são e estão “no” mundo em que vêm ao encontro segundo o modo de ser-no-mundo. Não são algo simplesmente dado e nem algo à mão. São como a própria presença [Dasein] liberadora – são também co-presenças. Ao se querer identificar o mundo em geral com o ente intramundano, dever-se-ia então dizer: “mundo” é também presença [Dasein]. STMSC: §26

A caracterização do encontro com os outros também se orienta segundo a própria presença [Dasein]. Será que essa caracterização não provém de uma distinção e isolamento do “eu”, de maneira que se devesse buscar uma passagem do sujeito isolado para os outros? Para evitar esse mal-entendido, é preciso atentar em que sentido se fala aqui dos “outros”. Os “outros” não significam todo o resto dos demais além de mim, do qual o eu se isolaria. Os outros, ao contrário, são aqueles dos quais, na maior parte das vezes, não se consegue propriamente diferenciar, são aqueles entre os quais também se está. Esse estar também com os outros não possui o caráter ontológico de um SER SIMPLESMENTE DADO “em conjunto” dentro de um mundo. O “com” é uma determinação da presença [Dasein]. O “também” significa a igualdade no ser enquanto ser-no-mundo que se ocupa dentro de uma circunvisão. “com” e “também” devem ser entendidos existencialmente e não categorialmente. À base desse ser-no-mundo determinado pelo com, o mundo é sempre o mundo compartilhado com os outros. O mundo da presença [Dasein] é mundo compartilhado. O ser-em é ser-com os outros. O ser-em-si intramundano desses outros é co-presença [Dasein]. STMSC: §26

O encontro com os outros não se dá numa apreensão prévia em que um sujeito, de início já simplesmente dado, se distingue dos demais sujeitos, nem numa visão primeira de si onde então se estabelece o referencial da diferença. Eles vêm ao encontro a partir do mundo em que a presença [Dasein] se mantém, de modo essencial, empenhada em ocupações guiadas por uma circunvisão. Em oposição aos “esclarecimentos” teóricos, que facilmente se impõem sobre o SER SIMPLESMENTE DADO dos outros, deve-se ater ao teor fenomenal demonstrado de seu encontro no mundo circundante. Esse modo de encontro mundano mais próximo e elementar da presença [Dasein] é tão amplo que a própria presença [Dasein] nele, de saída, já “encontra” a si mesma, desviando o olhar ou nem mesmo vendo “vivências” e “atos”. A presença [Dasein] encontra, de saída, “a si mesma” naquilo que ela empreende, usa, espera, resguarda – no que está imediatamente à mão no mundo circundante, em sua ocupação. STMSC: §26

“Ocupar-se” da alimentação e vestuário, tratar do corpo doente é também preocupação. Numa simetria com a ocupação, entendemos essa expressão como termo de um existencial. A “preocupação”, no sentido de instituição social fática, por exemplo, funda-se na constituição de ser da presença [Dasein] enquanto ser-com. Sua urgência provém de, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] manter-se nos modos deficientes de preocupação. O ser por um outro, contra um outro, sem os outros, o passar ao lado um do outro, o não sentir-se tocado pelos outros são modos possíveis de preocupação. E precisamente estes modos, que mencionamos por último, de deficiência e indiferença, caracterizam a convivência cotidiana e mediana de um com outro. Também esses modos de ser apresentam o caráter de não surpresa e evidência que convém tanto a co-presença [Dasein] intramundana cotidiana dos outros como a manualidade do instrumento de que se ocupa no dia-a-dia. Esses modos indiferentes da convivência recíproca facilmente desviam a interpretação ontológica para um entendimento imediato desse ser como SER SIMPLESMENTE DADO de muitos sujeitos. Embora pareçam apenas nuanças insignificantes do mesmo modo de ser, subsiste ontologicamente uma diferença essencial entre a ocorrência “indiferente” de coisas quaisquer e o não sentir-se tocado dos entes que convivem uns com os outros. STMSC: §26

A presença [Dasein] cotidiana retira a interpretação pré-ontológica de seu ser do modo de ser mais imediato do impessoal. A interpretação ontológica segue inicialmente esta tendência e entende a presença [Dasein] a partir do mundo, onde a encontra como ente intramundano. E não somente isto; a ontologia “mais imediata” da presença [Dasein] recebe previamente do “mundo” o sentido do ser em virtude do qual estes “sujeitos” se compreendem. Entretanto, uma vez que neste concentrar-se no mundo salta-se por cima do próprio fenômeno do mundo, em seu lugar aparece o que é simplesmente dado dentro do mundo: as coisas. O ser dos entes em sua co-presença [Dasein] é então compreendido como SER SIMPLESMENTE DADO. Dessa maneira, a demonstração do fenômeno positivo do ser-no-mundo mais cotidiano possibilita adentrar as raízes da interpretação ontologicamente desviada desta constituição de ser. É ela mesma que, em seu modo de ser cotidiano, de início se encobre e não é encontrada. STMSC: §27

Se já o ser da convivência cotidiana, que, do ponto de vista ontológico, parece vizinho ao SER SIMPLESMENTE DADO, é diferente em princípio, então não se pode de forma alguma compreender o que é propriamente si-mesmo como algo simplesmente dado. O ser do que é propriamente si-mesmo não repousa num estado excepcional do sujeito que se separou do impessoal. Ele é uma modificação existenciária do impessoal como existencial constitutivo. STMSC: §27

Em que direção deve-se olhar para que se possa caracterizar fenomenalmente o ser-em como tal? A resposta encontra-se, quando se recorda o que, na indicação do fenômeno, já foi confiado a visão fenomenológica: o ser-em difere da interioridade de algo simplesmente dado “em” um outro; o ser-em não é propriedade de um sujeito simplesmente dado, separada ou apenas provocada pelo SER SIMPLESMENTE DADO do “mundo”; ao contrário, o ser-em é um modo de ser essencial do próprio sujeito. Que mais se apresentaria neste fenômeno do que um commercium simplesmente dado entre um sujeito simplesmente dado e um objeto simplesmente dado? Esta interpretação aproximar-se-ia dos dados fenomenais se dissesse: a presença [Dasein] é o ser deste “entre”. Mesmo assim, a orientação pelo “entre” continuaria provocando mal-entendidos, pois impediria de se ver a indeterminação ontológica do ponto de partida de um ente em meio ao qual “é e está” este entre como tal. Nesse caso, o entre já estaria sendo concebido como resultado da conveniência entre duas coisas simplesmente dadas. O seu ponto de partida prévio já explode o fenômeno e seria insensato tentar recompô-lo novamente a partir de seus fragmentos. Não é apenas que falte a “argamassa”. Também o “esquema”, segundo o qual a integração pode realizar-se, foi explodido ou jamais se desvendou. Do ponto de vista ontológico, é decisivo evitar previamente a fragmentação do fenômeno, o que significa assegurar o seu teor fenomenal positivo. Que sejam necessárias muitas circunstâncias para que isso se cumpra ontologicamente, isso foi, ontologicamente desvirtuado em tais proporções no modo tradicional de tratar o “problema do conhecimento” que chegou a se distorcer, a ponto de se tornar invisível. STMSC: §28

Numa imagem ôntica, falar de lumen naturale no homem não indica mais do que a estrutura ontológico-existencial deste ente, ou seja, de ser no modo do pre [das Da] de sua presença [Dasein]. Ser “esclarecido” significa: estar em si mesmo iluminado {CH: aletheiaabertura – claridade, luminosidade, iluminar} como ser-no-mundo, não através de um outro ente, mas de tal maneira que ele mesmo seja {CH: mas não produzido} a clareira. É para um ente existencialmente iluminado desse modo que um SER SIMPLESMENTE DADO faz-se acessível na luz e inacessível no escuro. A presença [Dasein] sempre traz consigo o seu pre [das Da] e, desprovida dele, ela não apenas deixa faticamente de ser, como deixa de ser o ente dessa essência. A presença [Dasein] é {CH: presença [Dasein] existe e só ela; com isso existência, o estar fora e exposto no aberto do pre [das Da]: ek-sistência} a sua abertura. STMSC: §28

Esse “que é” constitui um caráter ontológico da presença [Dasein], encoberto em seu de onde e para onde, que, no entanto, tanto mais se abre em si mesmo quanto mais encoberto permanece. Chamamos esse “que é” de estar-lançado em seu pre [das Da], no sentido de, enquanto ser-no-mundo, este ente ser sempre o seu pre [das Da]. A expressão estar-lançado deve indicar a facticidade da responsabilidade. Esse “que é e ter de ser”, aberto na disposição da presença [Dasein], não é aquele “que”, o qual do ponto de vista ontológico-categorial exprime a fatualidade pertencente ao SER SIMPLESMENTE DADO. Esse só se faz acessível numa constatação observadora. Em contrapartida, deve-se conceber esse que aberto na disposição, como determinação existencial deste ente que é no modo de ser-no-mundo. Facticidade não é a fatualidade do factum brutum de um SER SIMPLESMENTE DADO, mas um caráter ontológico da presença [Dasein] assumido na existência, embora, desde o início, reprimido. Esse que da facticidade jamais pode ser encontrado numa intuição. STMSC: §29

O de que se teme, o “amedrontador”, é sempre um ente que vem ao encontro dentro do mundo e que possui o modo de ser do que está à mão, ou do SER SIMPLESMENTE DADO ou ainda da co-presença [Dasein]. Não se trata de relatar onticamente o ente que, na maior parte das vezes e das mais diversas formas, pode tornar-se “amedrontador”. Trata-se de determinar fenomenalmente o que é amedrontador em seu ser amedrontador. O que pertence ao amedrontador como tal a ponto de vir ao encontro no ter medo? Aquilo de que se tem medo possui o caráter de ameaça. Isso implica varias coisas: 1. O que vem ao encontro possui o modo conjuntural de ser prejudicial. Ele sempre se mostra dentro de um contexto conjuntural. 2. Esse prejudicial visa a um âmbito determinado daquilo que pode encontrar. Chega trazendo em si a determinação de uma região dada. 3. A própria região e o “estranho” que dela provem são conhecidos. 4. Enquanto ameaça, o prejudicial não se acha ainda numa proximidade dominável, ele se aproxima. Nesse aproximar-se, o prejudicial se irradia, e seus raios apresentam o caráter de ameaça. 5. Esse aproximar-se aproxima-se dentro da proximidade. O que, na verdade, pode ser prejudicial no mais alto grau e até constantemente se aproxima, embora mantendo-se a distância, vela seu ser amedrontador. É, porém, aproximando-se na proximidade que o prejudicial ameaça, pois pode chegar ou não. Na aproximação cresce esse “pode chegar, mas por fim não”. Então dizemos, é amedrontador. 6. Isso significa: ao se aproximar na proximidade, o prejudicial traz consigo a possibilidade desvelada de ausentar-se e passar ao largo, o que não diminui nem resolve o medo, ao contrário, o constitui. STMSC: §30

Numa fala ôntica, usamos muitas vezes a expressão “compreender alguma coisa” no sentido de “estar a cavaleiro de...”, “estar por cima de...”, “poder alguma coisa”. O que se pode no compreender, assumido como existencial, não é uma coisa, mas o ser como existir. Pois no compreender subsiste, existencialmente, o modo de ser da presença [Dasein] enquanto poder-ser. A presença [Dasein] não é algo simplesmente dado que ainda possui de quebra a possibilidade de poder alguma coisa. Primariamente, ela é possibilidade de ser. Toda presença [Dasein] é o que ela pode ser e o modo em que é a sua possibilidade. A possibilidade essencial da presença [Dasein] diz respeito aos modos caracterizados de ocupação com o “mundo”, de preocupação com os outros e, nisso tudo, a possibilidade de ser para si mesma, em virtude de si mesma. A possibilidade de ser, que a presença [Dasein] existencialmente sempre é, distingue-se tanto da possibilidade lógica e vazia como da contingência de algo simplesmente dado em que isso ou aquilo pode “se passar”. Como categoria modal do SER SIMPLESMENTE DADO, a possibilidade designa o que ainda não é real e que nunca será necessário. Caracteriza o somente possível. Do ponto de vista ontológico, é inferior a realidade e a necessidade. Como existencial, a possibilidade é, ao contrario, a determinação ontológica mais originária e mais positiva da presença [Dasein]; assim como a existencialidade, numa primeira aproximação, ela só pode ser trabalhada como problema. O solo fenomenal que permite a sua visão oferece o compreender como o poder-ser capaz de propiciar aberturas. STMSC: §31

Compreender é o ser desse poder-ser, que nunca está ausente no sentido de algo que simplesmente ainda não foi dado, mas que, na qualidade essencial de nunca SER SIMPLESMENTE DADO, “é “ junto com o ser da presença [Dasein], no sentido de existência. A presença [Dasein] é de tal maneira que ela sempre compreendeu ou não compreendeu ser dessa ou daquela maneira. Enquanto um tal compreender, ela “sabe” a quantas ela mesma anda, isto é, a quantas anda o seu poder-ser. Esse “saber” não nasce primeiro de uma percepção imanente de si mesma, mas pertence ao ser do pre [das Da] da presença [Dasein] que, em sua essência, é compreender. E somente porque a presença [Dasein] é em compreendendo o seu pre [das Da], ela pode perder-se e desconhecer. E à medida que compreender está na disposição e, nessa condição, lançado existencialmente, a presença [Dasein] já sempre se perdeu e desconheceu. Em seu poder-ser, portanto, a presença [Dasein] já se entregou a possibilidade de se reencontrar em suas possibilidades. STMSC: §31

Com base no modo de ser que se constitui através do existencial do projeto, a presença [Dasein] é sempre “mais” do que é fatualmente, mesmo que se quisesse ou pudesse registrá-la como um SER SIMPLESMENTE DADO em seu teor ontológico. No entanto, ela nunca é mais do que é faticamente, porque o poder-ser pertence essencialmente a sua facticidade. Também a presença [Dasein], enquanto possibilidade de ser, nunca é menos, o que significa dizer que aquilo que, em seu poder-ser, ela ainda não é, ela é existencialmente. Somente porque o ser do “pre [das Da]” recebe sua constituição do compreender e de seu caráter projetivo, somente porque ele é tanto o que será quanto o que não será é que ela pode, ao se compreender, dizer: “venha a ser o que tu és!” {CH: mas quem “tu” és? Aquele como o qual tu te projetas a ti mesmo – aquele como tu te tornas}. STMSC: §31

Deve-se proteger o termo “visão” de mal-entendidos. Ele corresponde a iluminação, que caracterizamos como a abertura do pre [das Da]. “Ver” significa não só não perceber com os olhos do corpo como também não apreender, de modo puro e com os olhos do espírito, algo simplesmente dado em seu SER SIMPLESMENTE DADO. Para o significado existencial de visão, a única coisa a ser levada em conta é a particularidade do ver em que o ente a ele acessível se deixa encontrar descoberto em si mesmo. E o que todo “sentido” realiza em seu setor genuíno de descoberta. A tradição da filosofia, porém, orienta-se, desde o princípio, primariamente pelo “ver” enquanto modo de acesso para o ente e para o ser. A fim de manter um nexo com a tradição, pode-se formalizar a visão e o ver de modo tão amplo a ponto de se conquistar um termo universal capaz de caracterizar como acesso todo acesso ao ser. STMSC: §31

Ao se mostrar que toda visão funda-se primariamente no compreender – a circunvisão da ocupação é o compreender enquanto compreensibilidade – retira-se da intuição pura a sua primazia que, noeticamente, corresponde à primazia ontológica tradicional do SER SIMPLESMENTE DADO. “Intuição” e “pensamento” {CH: como “compreensão” dianoia, mas não entender a compreensão a partir do entendimento} já são ambos derivados distantes do compreender. Também a “intuição ou visão da essência” (Wesensschau) fenomenológica está fundada no compreender existencial. Contudo, só se deve decidir alguma coisa sobre esse modo de ver depois de obtidos os conceitos explícitos de ser e da estrutura de ser, único modo em que os fenômenos podem vir a ser fenômenos em sentido fenomenológico. STMSC: §31

Mas, ver nesse circulo um vicio, buscar caminhos para evitá-lo e também “senti-lo” apenas como imperfeito inevitável, significa um mal-entendido de principio acerca do que e compreender. Não se trata de equiparar compreender e interpretação a um ideal de conhecimento, que determinado em si mesmo não passa de uma degeneração e que, na tarefa devida de apreender o SER SIMPLESMENTE DADO, perdeu-se na incompreensão de sua essência. Para se preencher as condições fundamentais de uma interpretação possível, não se deve desconhecer as suas condições essenciais de realização. O decisivo não e sair do círculo, mas entrar no circulo de modo adequado. Esse círculo do compreender não e um cerco em que se movimenta qualquer tipo de conhecimento. Ele exprime a estrutura-prévia existencial, própria da presença [Dasein]. O circulo não deve ser rebaixado a um vitiosum, mesmo que apenas tolerado. Nele se esconde a possibilidade positiva do conhecimento mais originário que, decerto, só pode ser apreendida de modo autentico se a interpretação tiver compreendido que sua primeira, única e ultima tarefa e de não se deixar guiar, na posição prévia, visão prévia e concepção prévia, por conceitos populares e inspirações. Na elaboração da posição prévia, da visão prévia e concepção prévia, ela deve assegurar o tema científico a partir das coisas elas mesmas. Porque, de acordo com seu sentido existencial, compreender e o poder-ser da própria presença [Dasein]; as pressuposições ontológicas do conhecimento histórico ultrapassam, em principio, a ideia de rigor das ciências mais exatas. A matemática não e mais rigorosa do que a historia. E apenas mais restrita, no tocante ao âmbito dos fundamentos existenciais que lhe são relevantes. STMSC: §32

O ente sustentado na posição prévia, por exemplo, o martelo, numa primeira aproximação, está à mão como um instrumento. Se ele se torna “objeto” de um enunciado, já se realiza previamente com o enunciado proposicional uma mudança na posição prévia. Aquilo com que lidava manualmente o fazer, isto é, a execução, torna-se aquilo “sobre” o que o enunciado mostra. A visão prévia visa a algo simplesmente dado no que está à mão. Através da visualização e para ela o manual vela-se como manual. Dentro deste descobrir do SER SIMPLESMENTE DADO que encobre a manualidade, determina-se o encontro de tudo que é simplesmente dado, em seu modo de dar-se. Só agora é que se abre o acesso às propriedades. O conteúdo com que o enunciado determina algo simplesmente dado é haurido do SER SIMPLESMENTE DADO como tal. A estrutura-”como” da interpretação modificou-se. O “como” já não basta para cumprir a função de apropriar-se do que se compreende numa totalidade conjuntural. No tocante às suas possibilidades de articular relações de remissão, o “como” separou-se da significância constitutiva do mundo circundante. O “como” é forçado a revelar-se com o SER SIMPLESMENTE DADO. Afunda-se na estrutura de mera visão que determina o simplesmente dado. A vantagem do enunciado consiste nesse nivelamento que transforma o “como” originário da interpretação, guiada pela circunvisão, no “como” de uma determinação do que é simplesmente dado. Somente assim o enunciado adquire a possibilidade de pura visualização demonstrativa. STMSC: §33

A analítica da presença [Dasein] que conduz ao fenômeno da cura deverá preparar a problemática ontológica fundamental, isto é, a questão do sentido de ser em geral. Para se ver, a partir do que já se obteve, mais do que a tarefa particular de uma antropologia a priori e existencial, deve-se reexaminar, de modo ainda mais penetrante, os fenômenos estreitamente ligados à questão do ser. Até agora, os modos explicitados de ser foram a manualidade e o SER SIMPLESMENTE DADO que determinam os entes intramundanos, destituídos do caráter de presença [Dasein]. Porque, na tradição, a problemática ontológica compreendeu primariamente o ser no sentido de SER SIMPLESMENTE DADO (”realidade”, “mundo”-real) e, por outro lado, o ser da presença [Dasein] permaneceu indeterminado do ponto de vista ontológico, é preciso discutir o nexo ontológico entre cura, mundanidade, manualidade e SER SIMPLESMENTE DADO (realidade). Isso leva a uma determinação mais precisa do conceito de realidade no contexto de uma discussão das questões epistemológicas de realismo e idealismo, orientadas por essa ideia. STMSC: §39

Para se compreender o que se quer dizer com fuga decadente de si mesma, inerente à presença [Dasein], é preciso lembrar que a constituição fundamental da presença [Dasein] é ser-no-mundo. Aquilo com que a angústia se angustia é o ser-no-mundo como tal. Como se distingue fenomenalmente o com quê a angústia se angustia daquilo que o medo teme? O com quê da angústia não é, de modo algum, um ente intramundano. Por isso, com ele não se pode estabelecer nenhuma conjuntura essencial. A ameaça não possui o caráter de algo prejudicial que diria respeito ao ameaçado na perspectiva determinada de um específico poder-ser fático. O com quê da angústia é inteiramente indeterminado. Essa indeterminação não apenas deixa faticamente indefinido que ente intramundano “ameaça” como também diz que o ente intramundano é “irrelevante”. Nada do que é simplesmente dado ou que se acha à mão no interior do mundo serve para a angústia com ele angustiar-se. A totalidade conjuntural do manual e do SER SIMPLESMENTE DADO que se descobre no mundo não tem nenhuma importância, ela se perde em si. O mundo possui o caráter de total insignificância. Na angústia, não se dá o encontro disso ou daquilo com o qual se pudesse estabelecer uma conjuntura ameaçadora. STMSC: §40

A interpretação do compreender mostrou, ao mesmo tempo, que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, ela já se colocou na compreensão de “mundo”, segundo o modo de ser da decadência. Mesmo onde não se trata somente de uma experiência ôntica e sim de uma compreensão ontológica, a interpretação de ser orienta-se, de início, pelo ser dos entes intramundanos {CH: aqui deve-se separar: physis, idea, ousia, substantia, res, objetividade, SER SIMPLESMENTE DADO}. Com isso, salta-se por cima do ser do que, imediatamente, está à mão, concebendo-se primordialmente o ente como um conjunto de coisas simplesmente dadas (res). O ser recebe o sentido de realidade {CH: “realidade” como “atividade” e realitas como “coisidade”; posição intermediária do conceito kantiano de “realidade objetiva”}. A determinação fundamental do ser torna-se substancialidade. De acordo com este deslocamento da compreensão de ser, a compreensão ontológica da presença [Dasein] volta-se para o horizonte desse conceito de ser. A presença [Dasein], assim como qualquer outro ente, é um real simplesmente dado. Assim, o ser em geral adquire o sentido de realidade. Em consequência, o conceito de realidade assume uma primazia toda especial na problemática ontológica. Tal primazia obstrui o caminho para uma analítica da presença [Dasein] genuinamente existencial, turvando inclusive a visualização do ser dos entes intramundanos imediatamente à mão e forçando, por fim, a problemática de ser a tomar uma direção desviante. Os demais modos de ser determinam-se então de maneira negativa e privativa com referência à realidade. STMSC: §43

A questão se o mundo é real e se o seu ser pode ser provado, questão que a presença [Dasein] enquanto ser-no-mundo haveria de levantar – e quem mais poderia fazê-lo? – mostra-se, pois, destituída de sentido. Trata-se ademais de uma questão ambígua. Confunde-se e não se chega a distinguir mundo enquanto o contexto do ser-em e “mundo” enquanto ente intramundano em que se empenham as ocupações. No entanto, com o ser da presença [Dasein], o mundo já se abriu de modo essencial; com a abertura de mundo, já se descobriu o “mundo”. Sem dúvida, o ente intramundano no sentido de real, de SER SIMPLESMENTE DADO, pode ficar encoberto. Entretanto, somente com base num mundoaberto é que o real pode vir a ser descoberto ou ficar encoberto. Coloca-se a questão da “realidade” do “mundo externo” sem se esclarecer previamente o fenômeno do mundo. De fato, o “problema do mundo externo” orienta-se, constantemente, pelos entes intramundanos (coisas e objetos) e, desse modo, todas as discussões conduzem a uma problemática que, do ponto de vista ontológico, é quase indeslindável. STMSC: §43

De início, deve-se observar explicitamente que Kant usou o termo “presença [Dasein]” (Dasein) para designar o modo de ser que, na investigação precedente, chamamos de “SER SIMPLESMENTE DADO”. “Consciência (Bewusstsein) de minha presença [Dasein]” significa para Kant: consciência (Bewusstsein) de meu ser enquanto SER SIMPLESMENTE DADO no sentido de Descartes. O termo “presença [Dasein]” significa tanto o SER SIMPLESMENTE DADO da consciência (Bewusstsein) como o SER SIMPLESMENTE DADO das coisas. STMSC: §43

A prova da “presença [Dasein] das coisas fora de mim” sustenta-se em que transformação e permanência pertencem, de modo igualmente originário, à essência do tempo. O meu SER SIMPLESMENTE DADO, ou seja, o SER SIMPLESMENTE DADO no sentido interno de uma multiplicidade de representações é transformação simplesmente dada. Todavia, a determinação temporal pressupõe alguma coisa permanente simplesmente dada. Essa, porém, não pode estar (ser) “em nós” “porque minha presença [Dasein] (existentia) no tempo só pode ser determinada mediante algo permanente”. Com a transformação simplesmente dada de maneira empírica “em mim” dá-se necessariamente também uma permanência simplesmente dada “fora de mim”. Algo permanente é a condição de possibilidade do SER SIMPLESMENTE DADO da transformação “em mim”. A experiência do ser-no-tempo das representações coloca, de modo igualmente originário, algo que se transforma “em mim” e algo que permanece “fora de mim”. STMSC: §43

Do ponto de vista ontológico, porém, mesmo que se abrisse mão do primado ôntico do sujeito isolado e da experiência interior, manter-se-ia a posição de Descartes. O que Kant prova – admitindo-se que a prova e a sua base sejam corretas – é o SER SIMPLESMENTE DADO necessariamente em conjunto de um ente que se transforma e um que permanece. Essa equiparação de dois seres simplesmente dados ainda não diz o simplesmente dar-se em conjunto de sujeito e objeto. E mesmo que isso se provasse, permaneceria encoberto o que, do ponto de vista ontológico, é decisivo: a constituição fundamental do “sujeito”, da presença [Dasein], como ser-no-mundo. O simplesmente dar-se em conjunto do físico e do psíquico é, do ponto de vista ôntico e ontológico, inteiramente distinto do fenômeno do ser-no-mundo. STMSC: §43

Kant pressupõe a diferença e o nexo entre “em mim” e “fora de mim” – o que é faticamente correto, mas incorreto no sentido a que tende a sua prova. Com isso, porém, não se comprova que o que se estabeleceu a partir do tempo sobre o SER SIMPLESMENTE DADO em conjunto do que se transforma e do que permanece também diga respeito ao nexo entre o “em mim” e o “fora de mim”. Mas mesmo que se visse o todo da diferença e o nexo entre “dentro” e fora”, pressuposto na prova, e se concebesse ontologicamente o que nessa pressuposição é pressuposto, ainda ruiria a possibilidade de se considerar como necessária e ainda ausente a prova da “presença [Dasein] (existentia) das coisas fora de mim”. STMSC: §43

Partindo da impossibilidade de se provar o SER SIMPLESMENTE DADO das coisas fora de nós, a distorção do problema não seria superada em se concluindo que elas “só podem ser admitidas pela ”. Permaneceria o preconceito de que, no fundo e idealmente, pode-se fornecer uma prova. A “fé na realidade do mundo exterior” afirma igualmente o princípio inadequado do problema ao reconhecer explicitamente o próprio “direito” dessa fé. Pois, assim, admite-se em princípio a exigência de uma prova, mesmo que se busquem caminhos diversos de uma prova constringente. STMSC: §43

Conquanto se pretendesse sustentar que o sujeito já sempre deve pressupor, inconscientemente, que o “mundo externo” é algo simplesmente dado, o ponto de partida construtivo de um sujeito isolado ainda estaria em jogo. O fenômeno do ser-no-mundo permaneceria tão desapercebido como na comprovação de um SER SIMPLESMENTE DADO em conjunto do físico e do psíquico. Nessas pressuposições, a presença [Dasein] chega sempre “muito tarde” porque, do momento em que realiza em seu ser essa pressuposição – e de outro modo essa pressuposição não seria possível – a presença [Dasein] como ente sempre é e está em um mundo. “Antes” de toda pressuposição e atitude caracterizadas pela presença [Dasein], o “a priori” da constituição do ser se oferece no modo de ser da cura. Fé na realidade do “mundo exterior”, legítima ou ilegítima, provar essa realidade, seja de modo suficiente ou insuficiente, pressupor essa realidade, implícita ou explicitamente, todas estas tentativas, não possuindo transparência a respeito de seu solo, pressupõe, de início, um sujeito desmundanizado ou inseguro acerca de seu mundo que, antes de tudo, precisa assegurar-se de um mundo. Nesses casos, o ser-no-mundo é, desde o início, colocado diante de um apreender, de um presumir, de um assegurar-se e crer, de uma atitude que, em si mesma, já é um modo derivado de ser-no-mundo. STMSC: §43

O “problema da realidade”, no sentido da questão se um mundo exterior é simplesmente dado e se é passível de comprovação, apresenta-se como um problema impossível. Não porque tenha por consequência aporias intransponíveis, mas porque o próprio ente, que nesse problema é tematizado, recusa por assim dizer esse modo de colocar a questão. O que se deve não é provar que e como um “mundo exterior” é simplesmente dado, e sim demonstrar por que a presença [Dasein], enquanto ser-no-mundo, possui a tendência de primeiro sepultar epistemologicamente o “mundo exterior” em um nada negativo para então permitir que ele ressuscite mediante provas. A razão disso reside na decadência da presença [Dasein] e no deslocamento aí motivado da compreensão primordial do ser para um ser como algo simplesmente dado. Se, nessa orientação ontológica, o modo de colocar a questão for “crítico”, encontra então um mero “interior” enquanto o único SER SIMPLESMENTE DADO certo e seguro. Após a desagregação do fenômeno originário do ser-no-mundo, desdobra-se, com base no que resta, ou seja, no sujeito isolado, a correlação com um “mundo”. STMSC: §43

Com a presença [Dasein] enquanto ser-no-mundo, o ente intramundano já sempre se descobriu. Esse enunciado ontológico-existencial parece concordar com a tese do realismo em que o mundo externo é real, ou seja, é algo simplesmente dado. Na medida em que, no enunciado existencial, não se nega o SER SIMPLESMENTE DADO dos entes intramundanos, ela concorda – por assim dizer doxograficamente – com a tese do realismo. Ela se diferencia, porém, em seus fundamentos de todo realismo porque o realismo toma a realidade do “mundo” como algo que necessita de prova e, ao mesmo tempo, como algo que pode ser comprovado. Em contrapartida, no enunciado existencial ambos são negados. O que a separa totalmente do realismo é a incompreensão ontológica de que sofre o realismo. Ele tenta esclarecer a realidade onticamente mediante o contexto efetivo e real entre as coisas reais. STMSC: §43

Realidade como título ontológico remete ao ente intramundano. Se esse título servir para designar esse modo de ser, a manualidade e o SER SIMPLESMENTE DADO mostram-se como modos da realidade. Se, porém, essa palavra mantiver-se no significado legado a pela tradição {CH: hodierno}, ela significa o ser no sentido de coisas simplesmente dadas. Contudo, nem todo SER SIMPLESMENTE DADO é coisa simplesmente dada. A “natureza” que nos “envolve” é, na verdade, um ente intramundano que, no entanto, não apresenta o modo de ser do que está à mão e nem de algo simplesmente dado no modo de “coisidade da natureza”. Qualquer que seja a maneira de interpretar esse ser da “natureza”, todos os modos de ser dos entes intramundanos fundam-se, ontologicamente, na mundanidade do mundo e, assim, no fenômeno do ser-no-mundo. Disso resulta a seguinte compreensão: realidade não possui primazia no âmbito dos modos de ser dos entes intramundanos, assim como esse modo de ser não pode ser caracterizado adequadamente, do ponto de vista ontológico, como mundo ou presença [Dasein]. STMSC: §43

De fato, apenas enquanto a presença [Dasein] é, ou seja, a possibilidade ôntica de compreensão de ser, “dá-se” ser. Se a presença [Dasein] não existe, também nem “independência”, nem “em si” podem “ser”. Eles não seriam nem compreensíveis, nem incompreensíveis. O ente intramundano também não poderia ser descoberto nem permanecer oculto. Então nem se poderia dizer que o ente é ou não é. Agora pode-se realmente dizer que, enquanto houver compreensão de ser e com isso compreensão do SER SIMPLESMENTE DADO, então o ente prosseguirá a ser. STMSC: §43

A presença [Dasein] não precisa colocar-se diante dos próprios “entes” numa experiência “originária”, pois permanece, de modo correspondente, num ser para o ente. Em larga escala, a descoberta não se faz através de cada descobrimento próprio, mas sim apropriando-se do que é dito através de um ouvir dizer. O empenho pelo que se diz pertence ao modo de ser do impessoal. O que se diz como tal assume o ser com relação ao ente que se descobre no enunciado. Se, porém, esse ente deve ser apropriado no tocante à sua descoberta, isso significa: o enunciado deve ser verificado enquanto enunciado descobridor. O enunciado pronunciado é, no entanto, um manual de tal modo que traz em si mesmo uma remissão ao ente descoberto, na medida em que preserva a descoberta. A verificação de seu ser descobridor diz agora: verificar a remissão para o ente do enunciado que preserva a descoberta. O próprio enunciado se oferece como manual. O ente para o qual ela traz uma remissão descobridora é um manual intramundano ou um SER SIMPLESMENTE DADO. A própria remissão se dá como algo simplesmente dado. A remissão, no entanto, reside em que a descoberta, preservada no enunciado, é sempre descoberta de... O juízo “contém algo que vale para os objetos” (Kant). Transformando-se numa relação entre seres simplesmente dados, a remissão recebe agora o caráter de SER SIMPLESMENTE DADO. Descoberta de... transforma-se em conformidade simplesmente dada de algo simplesmente dado, isto é, o enunciado pronunciado transforma-se em um SER SIMPLESMENTE DADO, o ente discutido E quanto mais a conformidade for vista como relação entre seres simplesmente dados, ou seja, quanto mais o modo de ser dos membros da relação forem compreendidos indiscriminadamente como algo simplesmente dado, mais a remissão se mostrará como concordância simplesmente dada entre dois seres simplesmente dados. STMSC: §44

Com o pronunciamento do enunciado, a descoberta dos entes volta-se para o modo de ser do manual intramundano. Na medida, porém, em que nela, enquanto descoberta de..., se mantém uma remissão a um SER SIMPLESMENTE DADO, a descoberta (verdade), por sua vez, torna-se uma relação simplesmente dada entre seres simplesmente dados (intellectus et res). STMSC: §44

O que, porém, no ordenamento dos contextos de fundação ontológico-existenciais ocupa o último lugar é o que, onticamente, vem em primeiro lugar e aparece antes de tudo. Quanto à sua necessidade, esse fato funda-se no modo de ser da própria presença [Dasein]. Ao empenhar-se na ocupação, a presença [Dasein] se compreende a partir do que vem ao encontro dentro do mundo. A descoberta inerente ao descobrimento se acha, inicialmente, no que se pronuncia dentro do mundo. Contudo, não apenas a verdade é encontrada como algo simplesmente dado. Também a compreensão de ser compreende, de início, todo ente como algo simplesmente dado. A mais próxima reflexão ontológica sobre a “verdade” que, de imediato, vem ao encontro onticamente, compreende o logos (enunciado) como logos tinos (enunciado sobre..., descoberta de...) e interpreta o fenômeno como algo simplesmente dado em sua possibilidade de SER SIMPLESMENTE DADO. Porque, no entanto, essa possibilidade é identificada com o sentido do ser em geral, a questão se esse modo de ser da verdade e sua estrutura que, de imediato, vêm ao encontro são originários ou não, não pode tornar-se viva. A própria compreensão de ser da presença [Dasein] que, de início, predomina e que, ainda hoje, não foi superada em seus fundamentos e explicitação, encobre o fenômeno originário da verdade. STMSC: §44

A resposta à questão do sentido do ser ainda precisa ser conquistada. Mas o que a análise fundamental da presença [Dasein], desenvolvida até aqui, preparou para a elaboração dessa questão? Mediante a liberação do fenômeno da cura, esclareceu-se a constituição de ser dos entes a cujo ser pertence uma compreensão de ser. O ser da presença [Dasein] foi, com isso, delimitado frente aos modos de ser (manualidade, SER SIMPLESMENTE DADO, realidade) que caracterizam os entes não dotados do caráter de presença [Dasein]. Elucidou-se o próprio compreender, garantindo-se, pois, a transparência metodológica do procedimento de compreensão e interpretação do ser. STMSC: §44

Não se pode eliminar o “anteceder-a-si-mesmo” enquanto momento essencial da estrutura de cura. Será, pois, pertinente o que daí concluímos? Mas a conclusão acerca da impossibilidade de uma apreensão de toda a presença [Dasein] não teria advindo de mera argumentação formal? E não se estaria, no fundo, supondo, sem nem se dar conta, a presença [Dasein] como SER SIMPLESMENTE DADO, da qual sempre escaparia algo que simplesmente ainda não se deu? Terá a argumentação apreendido o ainda-não-ser e o “anteceder” em sentido genuinamente existencial? Ter-se-á falado de “fim” e “totalidade” de modo fenomenalmente condizente com a presença [Dasein]? Teria a expressão “morte” um sentido biológico ou ontológico-existencial ou ainda um sentido delimitado de modo seguro e suficiente? Esgotaram-se, de fato, todas as possibilidades de a presença [Dasein] tornar-se acessível em sua totalidade? STMSC: §46

A presença [Dasein] dos outros, com sua totalidade alcançada na morte, também constitui um não mais ser presença [Dasein], no sentido de não-mais-ser-no-mundo. Morrer não significa sair do mundo, perder o ser-no-mundo? Levando-se ao extremo, o não-mais-ser-no-mundo do morto ainda é também um ser, na acepção do SER SIMPLESMENTE DADO de uma coisa corpórea. Na morte dos outros, pode-se fazer a experiência do curioso fenômeno ontológico que se pode determinar como a alteração sofrida por um ente ao passar do modo de ser da presença [Dasein] (da vida) para o modo de não mais ser presença [Dasein]. O fim de um ente, enquanto presença [Dasein], é o seu princípio como mero SER SIMPLESMENTE DADO. STMSC: §47

Interpretar o movimento de passagem da presença [Dasein] para o SER SIMPLESMENTE DADO perde a base fenomenal na medida em que o ente remanescente não é uma mera coisa corpórea. Do ponto de vista teórico, mesmo o cadáver dado é ainda objeto possível da anatomia patológica, cuja tendência de compreensão se orienta, não obstante, pela ideia de vida. O ser ainda simplesmente dado é “mais” do que uma coisa material, destituída de vida. Nele encontra- se algo não vivo, que perdeu a vida. STMSC: §47

Partindo-se da presente discussão sobre a possibilidade de uma apreensão ontológica da morte, também tornou-se claro, sem nem se notar, que a intromissão de entes, dotados de outro modo de ser (SER SIMPLESMENTE DADO ou ser-vivo), ameaçam confundir a interpretação do fenômeno e a primeira posição prévia a ele adequada. Só se poderá encontrar o fenômeno quando se tiver procurado, para a análise, uma determinação ontológica suficiente dos fenômenos constitutivos de fim e totalidade. STMSC: §47

Findar significa, de início, terminar, e isso num sentido ontológico diverso. A chuva acaba. Ela não mais está aí. O caminho termina. Esse findar não faz com que o caminho desapareça. Esse terminar qualifica o caminho como algo simplesmente dado. Findar enquanto terminar pode, pois, significar: passar a não ser mais simplesmente dado ou só SER SIMPLESMENTE DADO com o fim. Esse último findar pode, por sua vez, ou determinar um SER SIMPLESMENTE DADO que está inacabado – um caminho em construção está interrompido – ou construir o “acabamento” de um SER SIMPLESMENTE DADO – com a última pincelada, acaba-se o quadro. STMSC: §48

Mas o findar, enquanto acabar, não inclui em si a completude. Ao contrário, aquilo que se quer completar deve atingir seu acabamento possível. Completude é um modo derivado de “acabamento”. Este só é possível como determinação de um SER SIMPLESMENTE DADO ou de algo à mão. STMSC: §48

Enquanto fim da presença [Dasein], a morte não se deixa caracterizar adequadamente por nenhum desses modos de findar. Caso se compreendesse o morrer como estar-no-fim, no sentido de um findar nos modos discutidos, supor-se-ia a presença [Dasein] como SER SIMPLESMENTE DADO ou como algo à mão. Na morte, a presença [Dasein] nem se completa, nem simplesmente desaparece, nem acaba e nem pode estar disponível à mão. STMSC: §48

Recusou-se como inadequada a interpretação do ainda-não e com isso também do ainda-não mais extremo, isto é, do fim da presença [Dasein], no sentido do que está pendente. Isso porque essa interpretação implica um desvio ontológico da presença [Dasein] para o SER SIMPLESMENTE DADO. Existencialmente, estar-no-fim diz ser-para-o-fim. O ainda-não mais extremo possui o caráter daquilo com que a presença [Dasein] se relaciona. Para a presença [Dasein], o fim é impendente. A morte não é algo simplesmente ainda-não dado e nem o último pendente reduzido ao mínimo, mas, muito ao contrário, algo impendente , iminente. STMSC: §50

A possibilidade mais própria, irremissível e insuperável é certa. O modo de ser certa determina-se a partir da verdade (abertura) que lhe corresponde. A possibilidade certa da morte abre a presença [Dasein] como possibilidade apenas no sentido de, antecipando-a, essa possibilidade possibilitar a si mesma como o poder-ser mais próprio de si. A abertura da possibilidade funda-se no possibilitar antecipador. Manter-se nessa verdade, ou seja, estar certo do que se abriu, exige justamente o antecipar. A certeza da morte não pode ser computada a partir da constatação de casos de morte ocorrentes. Ela não se detém, de forma alguma, numa verdade do SER SIMPLESMENTE DADO que, no tocante à sua descoberta, se dá ao encontro, no sentido mais puro, num deixar vir ao encontro meramente contemplativo dos entes em si mesmos. Para se alcançar a coisalidade, ou seja, a indiferença da evidência apodítica, a presença [Dasein] precisa, primeiramente, perder-se na conjuntura das coisas – o que pode até constituir uma tarefa e uma possibilidade da cura. Se o estar-certo da morte não possui esse caráter, não significa que ele tenha um grau inferior, mas que: ele não pertence, de modo algum, à ordem de gradações das evidências sobre o SER SIMPLESMENTE DADO. STMSC: §53

Entretanto, o resultado dessa investigação limitada da consciência não deve ser exagerado, nem diminuído e nem deturpado. Como fenômeno da presença [Dasein], a consciência não é um fato que ocorre e que, por vezes, simplesmente se dá. Ela “é”e “está” apenas no modo de ser da presença [Dasein] e, como fato, só se anuncia com e na existência fática. A exigência de uma “prova empírico-indutiva” para o “fato” da consciência e para a legitimidade de sua “voz” significa uma deturpação ontológica desse fenômeno. Dessa deturpação, no entanto, participa toda crítica da consciência que a interpreta como um fato que, às vezes, ocorre e que “não é e nem pode ser universalmente constatado”. O fato da consciência não se deixa, de forma alguma, submeter a tais provas e objeções. Isso não constitui uma deficiência, mas somente a característica de sua especificidade ontológica, que difere do SER SIMPLESMENTE DADO no mundo circundante. STMSC: §54

Não se pode desconsiderar esse dado fenomenal. Esse mesmo dado foi tomado como ponto de partida para a interpretação da voz enquanto força estranha que se abate sobre a presença [Dasein]. Prosseguindo nessa direção interpretativa, atribui-se essa força instalada a alguém que dela tem posse ou ainda se a toma como uma pessoa que anuncia (Deus). Por outro lado, recusa-se esta interpretação, eliminando a consciência mediante uma explicação “biológica”. Ambas as interpretações passam apressadamente por cima do dado fenomenal. Esse procedimento é facilitado pelo dogma não pronunciado, que guia a seguinte tese ontológica: o que é, de modo tão fatual quanto o apelo, deve SER SIMPLESMENTE DADO; o que não se deixa comprovar objetivamente como SER SIMPLESMENTE DADO não é. STMSC: §57

Será que a análise da constituição ontológica da presença [Dasein], até aqui empreendida, aponta um caminho para a compreensão ontológica do modo de ser de quem faz apelo e com isso também do apelar? Que o apelo não se realiza explicitamente por mim, sendo sempre um “se” apela, isso ainda não justifica que se busque o quem apela num ente desprovido do caráter de presença [Dasein]. A presença [Dasein] sempre existe faticamente. Ela não é um projetar-se solto no ar, mas, como o estar-lançado determina-se como o fato desse ente que ele é, ela sempre já está e permanece entregue à responsabilidade da existência. No entanto, a facticidade da presença [Dasein] se distingue essencialmente da fatualidade do SER SIMPLESMENTE DADO. A presença [Dasein] que existe não encontra a si mesma como algo simplesmente dado dentro do mundo. Também o estar-lançado não adere à presença [Dasein] como um caráter inacessível e insignificante de sua existência. Lançada, a presença [Dasein] está lançada na existência. Ela existe como ente que tem de ser como ela é e pode ser. STMSC: §57

Com vistas a este fim, deve-se formalizar a ideia de “dívida” de tal maneira que fiquem de fora os fenômenos da culpa referidos ao ser-com os outros na ocupação. A ideia de dívida deve não apenas ultrapassar o âmbito das ocupações em seu prestar contas como também deve ser desligada de qualquer referência ao dever e à lei contra os quais alguém, numa falta, assume uma dívida. Pois nesse caso se determinaria, necessariamente, a dívida como falta, como violação de alguma coisa que deveria e poderia ser. Faltar, porém, significa não SER SIMPLESMENTE DADO. Falta no sentido de não SER SIMPLESMENTE DADO de dever é uma determinação ontológica do SER SIMPLESMENTE DADO. Nesse sentido, nada pode faltar de modo essencial à existência, não por ela ser perfeita mas porque seu caráter ontológico é inteiramente diverso de todo SER SIMPLESMENTE DADO. STMSC: §58

Por outro lado, a ideia de “dívida” não está isenta do caráter de não. Se a “dívida” deve poder determinar a existência, surge então o problema ontológico de se esclarecer, existencialmente, o caráter de não desse não. Ademais pertence à ideia de “dívida” o que, em seu conceito, se exprimiu de modo indiferente como “ser aquele a que algo se deve”, a saber: ser-fundamento de... Por isso, determinamos de maneira existencial e formal a ideia de “dívida” do seguinte modo: ser-fundamento de um ser determinado por um não, isto é, ser-fundamento de um nada. Se a ideia do não, constante do conceito de dívida compreendido existencialmente, exclui a referência a um SER SIMPLESMENTE DADO possível ou exigido e se, com isso, a presença [Dasein] não pode, em absoluto, ser medida por um SER SIMPLESMENTE DADO ou por um valor que ela mesma não é ou não é segundo seu modo de ser, isto é, que não existe, nesse caso cai por terra toda possibilidade de se avaliar como “faltoso” aquilo que é fundamento de uma falta. Partindo-se de uma falta “causada”, inerente ao modo de ser da presença [Dasein], partindo-se do não preenchimento de uma exigência, não se pode chegar ao faltoso da “causa”. O ser-fundamento de... não precisa ter o mesmo caráter de não do privativo que nele se funda e dele emerge. O fundamento não precisa retirar o seu nada do que é por ele fundamentado. Isso significa: o ser e estar em dívida não resulta primordialmente de uma causa, ao contrário, a causa só é possível “fundamentada” num ser e estar em dívida originário. Será que isso pode ser demonstrado no ser da presença [Dasein]? Como isso é existencialmente possível? STMSC: §58

Sendo-fundamento, ou seja, existindo como lançada, a presença [Dasein] permanece constantemente aquém de suas possibilidades. Ela nunca pode existir antes e diante de seu fundamento mas sempre e somente a partir dele e enquanto ele. Ser-fundamento diz, portanto, nunca poder apoderar-se do ser mais próprio em seu fundamento. Esse não pertence ao sentido existencial do estar-lançado. Sendo-fundamento, a própria presença [Dasein] é um nada de si mesma. Nada não significa, em absoluto, não SER SIMPLESMENTE DADO, não subsistir, mas o não constitutivo desse ser da presença [Dasein], de seu estar-lançado. O caráter desse não determina-se, existencialmente, da seguinte maneira: sendo si-mesma, a presença [Dasein] é o ente que está-lançado enquanto si mesmo. Não por si mesma, mas em si mesma solta desde seu fundamento para ser enquanto esse fundamento. A presença [Dasein] não é o fundamento de seu ser porque este fundamento resultaria do próprio projeto. Mas enquanto ser si-mesmo, ela é o ser do fundamento. Esse é sempre e apenas fundamento de um ente cujo ser tem de assumir ser-fundamento. STMSC: §58

Já para a interpretação ontológica do fenômeno da dívida não são suficientes os conceitos, aliás pouco transparentes, de privação e falta, embora estes permitam uma aplicação abrangente quando apreendidos com suficiência formal. Nada impede mais uma aproximação do fenômeno existencial da dívida do que orientar-se pela ideia do mal, do malum como privatio boni. Sobretudo porque o bonun e a privatio possuem a mesma proveniência ontológica que a ontologia do SER SIMPLESMENTE DADO, que se aplica igualmente à ideia de “valor” dela “haurida”. STMSC: §58

Mas será que o “fato” de a voz vir depois exclui que, no fundo, é uma apelação? Que se apreenda a voz como aquilo que segue ao estímulo da consciência ainda não demonstra uma compreensão originária do fenômeno. E se a culpabilização fática e originária fosse apenas ocasião para o apelo fático da consciência? E se a interpretação caracterizada da “má” consciência só estivesse a meio caminho? A posição ontológica prévia a que o fenômeno é levado nesta interpretação esclarece que é assim. A voz é algo que emerge, que tem seu lugar na sequência de vivências simplesmente dadas e que sucede à vivência do ato. Mas nem o apelo, nem o ato e nem a culpa são ocorrências dotadas do caráter de um SER SIMPLESMENTE DADO que ocorre. O apelo possui o modo de ser da cura. Nele, a presença [Dasein] “é e está” antecedendo-a-si-mesma, de tal modo que ela retorna, ao mesmo tempo, para o seu estar-lançado. Somente partindo-se imediatamente da suposição de que a presença [Dasein] é uma sequência de nexos de vivências é que se pode considerar a voz como algo que vem depois, como alguma coisa posterior e, assim, necessariamente o que remonta para trás. A voz, sem dúvida, re-clama mas, ultrapassando o ato, reclama o ser e estar em dívida que, lançado, é “anterior” a toda e qualquer culpabilização. A reclamação, ao mesmo tempo, faz apelo ao ser e estar em dívida como algo a ser assumido na própria existência de tal modo que o ser-culpado propriamente existenciário “segue” o apelo e não o contrário. No fundo, a má consciência é tão pouco uma mera censura retroativa que ela reclama, sobretudo, numa referência antecipadora ao estar-lançado. A sucessão de vivências que decorrem uma após a outra não apresenta a estrutura fenomenal de existência. STMSC: §59

Esta última reflexão reside em que a experiência cotidiana da consciência não conhece nenhum fazer apelo para o ser e estar em dívida. Isso deve ser admitido. Mas será que, com isso, a experiência cotidiana da consciência já garante que nela se escutou todo o conteúdo possível do apelo da voz da consciência? Segue-se, portanto, que as teorias da consciência fundadas na sua experiência vulgar asseguraram um horizonte ontológico adequado para a análise do fenômeno? Será que, ao invés, não se mostra mais um modo de ser essencial da presença [Dasein], a decadência, no qual esse ente, de início e na maior parte das vezes, se compreende, onticamente, a partir das ocupações, determinando, ontologicamente, o ser no sentido de SER SIMPLESMENTE DADO? Daí decorre um duplo encobrimento: na maioria das vezes, a teoria vê uma sucessão, indeterminada quanto ao seu modo de ser, de vivências ou “processos psíquicos”. A experiência vem ao encontro da consciência como um juiz e admoestador com o qual a presença [Dasein] negocia os seus cálculos. STMSC: §59

Do ponto de vista ontológico, a presença [Dasein] é, em princípio, diversa de todo SER SIMPLESMENTE DADO e de todo real. Seu “teor” não se funda na substancialidade de uma substância e sim na “autoconsistência” do si-mesmo existente e cujo ser foi concebido como cura. O fenômeno do si-mesmo, também incluído na cura, necessita de uma delimitação existencial originária e própria frente à demonstração preparatória do impessoalmente-si-mesmo em sua impropriedade. Isso implica fixar as questões ontológicas possíveis referentes ao “si-mesmo” já que ele não é nem substância nem sujeito. STMSC: §61

Se já o caráter ontológico de seu próprio ser encontra-se distante da presença [Dasein] devido ao predomínio da compreensão ontológica decadente (SER SIMPLESMENTE DADO), o que não dizer então dos fundamentos originários desse ser? Não é, pois, de admirar que, à primeira vista, a temporalidade não corresponda ao que é acessível à compreensão vulgar como “tempo”. O conceito de tempo que pertence à sua experiência vulgar bem como a problemática daí decorrente não podem, portanto, sem um exame, constituir critérios adequados para uma interpretação do tempo. A investigação deve, sobretudo, familiarizar-se, preliminarmente, com o fenômeno originário da temporalidade para, a partir dele, esclarecer a necessidade e a espécie de origem da compreensão vulgar do tempo e também a razão de seu predomínio. STMSC: §61

Com a decisão antecipadora, a presença [Dasein] tornou-se fenomenalmente visível no tocante à sua possível propriedade e totalidade. A situação hermenêutica, que até aqui havia permanecido insuficiente para a interpretação do sentido ontológico da cura, conseguiu alcançar a originariedade exigida. Originariamente, ou seja, no tocante a seu poder-ser todo em sentido próprio, a presença [Dasein] já se acha na posição prévia; mediante o esclarecimento do poder-ser mais próprio, ganhou determinação a visão prévia orientadora, isto é, a ideia de existência; com a elaboração concreta da estrutura ontológica da presença [Dasein], torna-se de tal modo clara a sua especificidade ontológica frente a todo e qualquer SER SIMPLESMENTE DADO que a concepção prévia da existencialidade da presença [Dasein] adquire articulação suficiente para orientar, com segurança, a elaboração conceituai dos existenciais. STMSC: §63

A indicação formal da ideia de existência orientou-se pela compreensão ontológica subsistente na própria presença [Dasein]. Mesmo sem transparência ontológica, desvelou-se, na verdade, que o ente chamado presença [Dasein] sou sempre eu mesmo e isso enquanto poder-ser, pois o que nele está em jogo é seu ser esse estar sendo. Não obstante a falta de determinação ontológica suficiente, a presença [Dasein] se compreende como ser-no-mundo. Sendo desse modo, vêm-lhe ao encontro entes que possuem o modo de ser do manual e do SER SIMPLESMENTE DADO. Por mais que a diferença entre existência e realidade esteja longe de um conceito ontológico, por mais que a presença [Dasein] até compreenda, inicialmente, a existência como realidade, ela não apenas não é algo simplesmente dado mas ela já sempre se compreendeu, em qualquer interpretação mítica ou mágica. Pois, do contrário, ela não “viveria” num mito e não se ocuparia, no rito e no culto, de sua magia. A ideia de existência suposta é o prelineamento, existenciariamente não obrigatório, da estrutura formal de toda compreensão de presença [Dasein]. STMSC: §63

Como se deve conceber essa unidade? Como a presença [Dasein] pode existir, numa unidade, nos modos e possibilidades de seu ser? Manifestamente, só enquanto esse ser for ele mesmo em suas possibilidades essenciais, enquanto eu sempre {CH: a própria presença [Dasein] é esse ente} sou esse ente. Aparentemente, o “eu” “sustenta numa coesão”, a totalidade do todo estrutural. Na “ontologia” desse ente, o “eu” e o “si-mesmo” foram, desde sempre, concebidos como fundamento de sustentação (substância e sujeito). Já na caracterização preparatória da cotidianidade, a presente analítica deparou-se com a questão do quem da presença [Dasein]. Mostrou-se que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] não é ela mesma mas perdeu-se {CH: o “eu” como o si-mesmo, em certo sentido, “o mais próximo”, em primeiro plano e, assim, aparente} no impessoalmente-si-mesmo. Este é uma modificação existenciária do si-mesmo em sentido próprio. A questão da constituição ontológica do si-mesmo ficou sem resposta. Os fios condutores do problema foram, sem dúvida, fixados em princípio. Se o si-mesmo pertence às determinações essenciais da presença [Dasein], cuja “essência” reside na existência, então tanto a estrutura do eu quanto a do si-mesmo devem ser concebidas existencialmente. Mostrou-se também de forma negativa que a caracterização ontológica do impessoal proíbe qualquer aplicação das categorias de SER SIMPLESMENTE DADO (substância). Em princípio, esclareceu-se que: do ponto de vista ontológico, a cura não pode ser derivada da realidade e nem construída segundo as categorias de realidade. A cura já abriga em si o fenômeno do si-mesmo e, caso esta tese se justifique, a expressão “cura de si mesmo” é uma tautologia, cunhada em correspondência à preocupação enquanto cuidado com os outros. Nesse caso, o problema da determinação ontológica do si-mesmo da presença [Dasein] torna-se uma questão aguda, isto é, a questão do “nexo” existencial entre cura e si-mesmo. STMSC: §64

A caracterização do “nexo” entre cura e si-mesmo não visava apenas ao esclarecimento do problema específico da estrutura do eu, pretendendo servir também como último preparativo para a apreensão fenomenal da totalidade do todo estrutural da presença [Dasein]. Como, para a visão ontológica, o modo de ser da presença [Dasein] não deve desvirtuar-se num modo, mesmo que totalmente indiferente, de SER SIMPLESMENTE DADO, fez-se necessária a disciplina ininterrupta do questionamento existencial. A presença [Dasein] torna-se essencial na existência própria, que se constitui pela decisão antecipadora. Esse modo de propriedade da cura inclui a autoconsistência originária e a totalidade da presença [Dasein]. É na visão concentrada de ambas em uma compreensão existencial que se deve liberar o sentido ontológico do ser da presença [Dasein]. STMSC: §65

Em contrapartida, falta ainda uma indicação dessa espécie para o terceiro momento constitutivo da cura: o ser-decadente-junto-a... Isso não deve significar que a decadência não se fundaria também na temporalidade. Indica, sobretudo, que a atualização, na qual se funda primariamente a decadência das ocupações com o que está à mão e o SER SIMPLESMENTE DADO, também está incluída nos modos da temporalidade originária de porvir e vigor de ter sido. Decidida, a presença [Dasein] se recupera justamente da decadência a fim de ser e estar tanto mais propriamente “por aí” no instante da situação, que se abriu. STMSC: §65

A tentação de se passar por cima da finitude do porvir originário e próprio e, com isso, da temporalidade, considerando-a “a priori” impossível, nasce da constante imposição da compreensão vulgar de tempo. Se esta, com razão, só conhece um tempo infinito, isto ainda não prova que ela já compreenda este tempo e a sua “infinitude”. O que significa o tempo “prossegue e passa”? O que significa “no tempo” em geral e, de maneira específica, “no” e “do futuro”? Em que sentido “o tempo” é infinito? Estas perguntas devem ser esclarecidas para que as objeções vulgares contra a finitude do tempo originário não permaneçam infundadas. Este esclarecimento, porém, só pode realizar-se caso se alcance um questionamento adequado de finitude e in-finitude. Este, por sua vez, surge de uma visão compreensiva do fenômeno originário do tempo. O problema não pode ser, portanto: como é que o tempo infinito e “derivado”, “no qual” nasce e perece o SER SIMPLESMENTE DADO, torna-se temporalidade finita e originária, mas sim como o tempo im-próprio provém da temporalidade finita e própria, e como ela, sendo imprópria, temporaliza um tempo in-finito a partir do tempo finito. Somente porque o tempo originário é finito é que o tempo “derivado” pode temporalizar-se como m-finito. Na ordem da apreensão compreensiva, a finitude do tempo só se torna plenamente visível quando se explicita o “tempo sem fim” para contrapô-lo à finitude. STMSC: §65

A interpretação temporal da cotidianidade e da historicidade prende suficientemente a visão ao tempo originário e o faz de tal maneira que o descobre como condição de possibilidade e necessidade da experiência cotidiana do tempo. Primordialmente, a presença [Dasein] se aplica, em si e para si mesma, de forma expressa ou não, como o ente em que está em jogo o seu ser. Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a cura é ocupação guiada por uma circunvisão. Aplicando-se em virtude de si mesma, a presença [Dasein] se “desgasta”. Desgastando-se, a presença [Dasein] gasta a si mesma, ou seja, gasta o seu tempo. Gastando tempo, ela conta com ele. A ocupação que conta e controla na circunvisão descobre, de início, o tempo, e leva à elaboração de uma contagem do tempo. Contar com o tempo é constitutivo do ser-no-mundo. Contando com seu tempo, o descobrir da circunvisão nas ocupações deixa vir ao encontro no tempo o manual e o SER SIMPLESMENTE DADO descobertos. O ente intramundano é, então, acessível como “o que está sendo no tempo”. Chamamos de intratemporalidade a determinação temporal dos entes intramundanos. O “tempo” que nela, de início, se pode encontrar onticamente torna-se a base da formação do conceito vulgar e tradicional de tempo. O tempo enquanto intratemporalidade surge, no entanto, de um modo essencial de temporalização da temporalidade originária. Esta origem diz que o tempo “no qual” nasce e perece um ente simplesmente dado é um fenômeno autêntico do tempo e não a exteriorização para o espaço de um “tempo qualitativo”, como pretende fazer crer a interpretação do tempo feita por Bergson, que, do ponto de vista ontológico, é inteiramente insuficiente e indeterminada. STMSC: §66

A curiosidade é uma tendência ontológica privilegiada da presença [Dasein], segundo a qual ela se ocupa de um poder-ver. Tanto o “ver” quanto o conceito de visão não se restringem à percepção propiciada pelos “olhos do corpo”. Em sentido amplo, a percepção deixa vir ao encontro “corporalmente” em si mesmos o que está à mão e o SER SIMPLESMENTE DADO, no tocante ao seu aspecto. Esse deixar vir ao encontro funda-se numa atualidade. A atualidade fornece o horizonte ekstático no qual o ente pode ser corporalmente vigente. Entretanto, a curiosidade não atualiza o SER SIMPLESMENTE DADO a fim de, nele demorando-se, compreendê-lo. Ela busca ver apenas para ver e ter visto. Enquanto esta atualização presa em si mesma ao SER SIMPLESMENTE DADO, a curiosidade está numa unidade ekstática com um porvir e um vigor de ter sido correspondentes. A avidez do novo move-se, sem dúvida, em direção ao ainda-não-visto mas de tal maneira que a atualização tenta escapar do aguardar. A curiosidade é toda ela impropriamente porvindoura e isto a tal ponto que ela não aguarda uma possibilidade mas, em sua avidez, só cobiça a possibilidade como algo real. A curiosidade constitui-se de uma atualização que não se sustenta e, apenas atualizando, procura constantemente fugir do aguardar em que a atualização se “mantém” e se resguarda, embora insustentada. A atualidade “surge” da correspondente atualização que lhe pertence, no sentido mencionado de fuga. Mas a atualização em que “surge” a curiosidade se entrega tão pouco à “coisa” que, ao conquistar uma visão, já deixa de ver para ver a próxima. Do ponto de vista ontológico, o que possibilita o não demorar-se, característico da curiosidade, é a atualização que constantemente “surge” no aguardar a uma possibilidade apreendida e determinada. A atualização não “surge” do aguardar no sentido de que ela estaria onticamente desligada do aguardar para a ele se abandonar. O “surgir” é uma modificação ekstática do aguardar, de tal maneira que o aguardar ressurge da atualização. O aguardar abdica, por assim dizer, de si mesmo em não mais deixando que venham a si possibilidades impróprias da ocupação a partir daquilo de que se ocupa, à exceção daquelas que se oferecem para uma atualização que não se sustenta. A modificação ekstática do aguardar mediante a atualização que surge numa atualização que ressurge é a condição temporal e existencial da possibilidade de dispersão. STMSC: §68

De acordo com o estágio em que se encontra a consideração feita até aqui, impõe-se uma outra delimitação da interpretação da atitude teórica. Orientando-se pelo propósito de penetrar na constituição temporal do ser-no-mundo, investigaremos apenas a transformação formação da ocupação do manual, guiada pela circunvisão, em pesquisa do SER SIMPLESMENTE DADO dentro do mundo. STMSC: §69

A circunvisão movimenta-se nas remissões conjunturais de um nexo instrumental à mão. Ela própria, por sua vez, é submetida à direção de uma supervisão, mais ou menos explícita, do todo instrumental de cada mundo de instrumentos e de seu correspondente mundo circundante público. A supervisão não é apenas um ajuntamento posterior de seres simplesmente dados. O essencial da supervisão é a compreensão primária da totalidade conjuntural, dentro da qual a ocupação de fato sempre se coloca. A supervisão, que ilumina a ocupação, recebe sua “luz” do poder-ser da presença [Dasein], em virtude do qual a ocupação existe como cura. Através de uma interpretação do que se vê, a circunvisão “supervisora”, própria da ocupação, coloca mais perto da presença [Dasein] aquilo que, em cada uso e manejo, está à mão. Chamamos de reflexão a aproximação específica que interpreta, numa circunvisão, aquilo de que se ocupa. O seu esquema característico é: “se-então”, se isto ou aquilo, por exemplo, deve-se produzir, deve ser retirado do uso ou guardado, então se faz necessário este ou aquele meio, caminho, circunstância e ocasião. A reflexão guiada pela circunvisão ilumina cada posição fática da presença [Dasein] em seu mundo circundante de ocupações. Ela nunca é, portanto, mera “constatação” do SER SIMPLESMENTE DADO de um ente ou de suas propriedades. A reflexão também pode realizar-se sem que aquilo mesmo que se aproxima numa circunvisão esteja ao alcance da mão ou vigente no campo mais próximo da visão. Este colocar mais perto o mundo circundante, na reflexão guiada pela circunvisão, tem o sentido existencial de uma atualização. Pois o tornar atual é somente um modo daquela. Nela, a reflexão visa diretamente às necessidades que não estão à mão. A circunvisão que torna atual não se refere a “meras representações”. STMSC: §69

Neste caso, pertence à modificação da compreensão ontológica uma abolição de limites do mundo circundante. Mas, pela compreensão agora dominante no sentido de SER SIMPLESMENTE DADO, a abolição de limites se transforma, ao mesmo tempo, em demarcação da “região” do SER SIMPLESMENTE DADO. Quanto mais adequadamente se compreende o ser daquele ente a ser pesquisado a partir da compreensão de ser e quanto mais se articula, em suas determinações fundamentais, a totalidade de um ente enquanto possível região de objetos de uma ciência, tanto mais se poderá assegurar cada perspectiva da questão metodológica. STMSC: §69

O exemplo clássico do desenvolvimento histórico de uma ciência, e também da gênese ontológica, é o aparecimento da física-matemática. O decisivo para a sua elaboração não reside no alto apreço pela observação dos “fatos” nem na “aplicação” da matemática para se determinar os processos naturais. O decisivo reside no projeto matemático da natureza ela mesma. Este projeto descobre, antecipadamente, um SER SIMPLESMENTE DADO que é constante (matéria), e abre o horizonte para uma perspectiva orientadora, relativa a seus momentos constitutivos e passíveis de determinação quantitativa (movimento, força, lugar e tempo). Somente “à luz” de uma natureza assim projetada é que se pode encontrar um “fato” e se empreender um experimento delimitado e regulado pelo projeto. A fundamentação” das “ciências fatuais” só foi, portanto, possível porque o pesquisador compreendeu que, em princípio, não existem “meros fatos”. Primariamente, o decisivo no projeto matemático da natureza não é, pois, o matemático como tal, mas o abrir de um a priori. Assim, o caráter exemplar da ciência matemática da natureza também não reside em sua exatidão específica e na obrigatoriedade para “todos”, mas em que, nela, o ente temático é descoberto da única maneira em que pode ser descoberto, a saber, no projeto prévio de sua constituição de ser. Com a elaboração dos conceitos e fundamentos da compreensão de ser orientadora, determina-se a condução dos métodos, a estrutura da conceitualização, a possibilidade inerente de verdade e certeza, o modo de fundamentação e comprovação, o modo de obrigatoriedade e comunicação. O todo destes momentos constitui o pleno conceito existencial da ciência. STMSC: §69

Para que a tematização do SER SIMPLESMENTE DADO, ou seja, do projeto científico da natureza, seja possível, a presença [Dasein] deve transcender o ente tematizado. A transcendência não consiste na objetivação, mas esta pressupõe aquela. Caso, porém, a tematização do SER SIMPLESMENTE DADO dentro do mundo seja uma transformação da ocupação descobridora, guiada por uma circunvisão, então o ser “prático” junto ao que está à mão deve ter como base uma transcendência da presença [Dasein]. STMSC: §69

Se, ademais, a tematização modifica e articula a compreensão de ser, então o ente a ser tematizado, a presença [Dasein], já deve, em existindo, compreender algo como ser. Compreender ser pode permanecer neutro. Manualidade e SER SIMPLESMENTE DADO ainda não se diferenciam e, sobretudo, ainda não são concebidos ontologicamente. Mas para que a presença [Dasein] possa lidar com um nexo instrumental, ela deve compreender, mesmo que não tematicamente, algo como conjuntura: um mundo já se lhe deve ter aberto. Este se abre junto com a existência fática da presença [Dasein], uma vez que ela existe, essencialmente, como ser-no-mundo. E se, por fim, o ser da presença [Dasein] se funda na temporalidade, esta deve, pois, possibilitar o ser-no-mundo e, com ele, a transcendência da presença [Dasein] que, por sua vez, inclui o ser em ocupação, seja teórico ou prático, junto aos entes intramundanos. STMSC: §69

O ser que, faticamente, se ocupa junto ao que está à mão, a tematização do SER SIMPLESMENTE DADO e a descoberta objetivante deste ente já pressupõem mundo, isto é, só são possíveis como modos de ser-no-mundo. Fundando-se na unidade horizontal da temporalidade ekstática, o mundo é transcendente. Ele já deve ter-se aberto, ekstaticamente, para que, a partir dele, entes intramundanos possam vir ao encontro. Ekstaticamente, a temporalidade já se mantém nos horizontes de suas ekstases e, temporalizando-se, retorna para o ente que vem ao encontro no pre [das Da]. Com a existência fática da presença [Dasein], também já vêm ao encontro entes intramundanos. Que estes entes se descobrem junto com o próprio pre [das Da] da existência, isto não está à mercê da presença [Dasein]. Somente o que, cada vez, se descobre e se abre, em que direção se faz, até onde e como se faz é que são tarefas de sua liberdade, embora sempre nos limites de seu estar-lançado. STMSC: §69

Há significados de “história” que não possuem o sentido de ciência histórica nem a visam como objeto. Eles se referem ao próprio ente que nem sempre é, necessariamente, objetivado. Dentre estes sentidos reivindicam um uso privilegiado aqueles em que este ente é compreendido como passado. Este significado explicita-se na seguinte fala: isto ou aquilo já pertence à história. “Passado” significa aqui não ser mais simplesmente dado ou então ainda SER SIMPLESMENTE DADO, embora sem “efeito” sobre o “presente”. De todo modo, entendido como o passado, o histórico também possui o significado contrário, quando dizemos: não se pode escapar a da história. História significa, nesse caso, o passado {CH: que outrora antecedeu, mas agora ficou para trás} mas que ainda surte efeito. Como quer que seja, o histórico, na acepção de passado, é compreendido numa relação positiva ou privativa de efeito sobre o “presente”, no sentido do “aqui e agora” real. “Passado” tem ainda uma curiosa duplicidade de sentido. O passado pertence, indiscutivelmente, ao tempo anterior, aos acontecimentos de então. Mas pode, não obstante, ainda SER SIMPLESMENTE DADO “hoje”, como por exemplo as ruínas de um templo grego. com ele, um “pedaço do passado” ainda está “presente”. STMSC: §73

De fato, a história não é o contexto dos movimentos de alteração do objeto nem a sequência de vivências soltas do “sujeito”. Será que o acontecer da história diz respeito ao “encadeamento” de sujeito e objeto? Se o acontecer já remete à relação sujeito-objeto então ainda é preciso questionar o modo de ser deste encadeamento como tal, caso este encadeamento seja o que, no fundo, “acontece”. A tese da historicidade da presença [Dasein] não afirma que é histórico o sujeito sem mundo mas sim o ente que existe como ser-no-mundo. O acontecer da história é o acontecer de ser-no-mundo. Em sua essência, historicidade da presença [Dasein] é historicidade de mundo que, baseada na temporalidade ekstática e horizontal, pertence à sua temporalização. Como a presença [Dasein] existe faticamente, também vem ao encontro o que se descobriu dentro do mundo. Com a existência do ser-no-mundo histórico, tanto o manual quanto o SER SIMPLESMENTE DADO sempre já estão inseridos na história do mundo. Instrumento e obra, os livros, por exemplo, têm seu “destino”, construções e instituições têm sua história. Mas também a natureza é histórica. Sem dúvida ela não o é quando falamos de “história da natureza” e sim como paisagem, região de exploração e ocupação, como campo de batalha e lugar de culto. Como tal, este ente intramundano é histórico e sua história não significa algo “exterior” que simplesmente acompanha a história “interior” da “alma”. Chamamos este ente de pertencente à história do mundo. Deve-se, no entanto, atentar para o duplo significado da expressão “história do mundo”, aqui entendida ontologicamente. Significa, por um lado, o acontecer do mundo, em sua unidade existente e essencial com a presença [Dasein]. Mas, na medida em que, junto com o mundo faticamente existente, entes intramundanos são sempre descobertos, também significa o “acontecer” intramundano do manual e do SER SIMPLESMENTE DADO. Com efeito, o mundo só é histórico enquanto mundo dos entes intramundanos. O que “acontece” com o instrumento e a obra como tais possui um caráter próprio de movimentação que permanece, até agora, inteiramente obscuro. Um anel, por exemplo, ao ser “presenteado” e “usado” não sofre, nesse ser, apenas mudanças de lugar. A movimentação do acontecer em que algo “acontece com ele” não se deixa apreender a partir do movimento, entendido como mudança de lugar. Isso vale para todos os “processos” e acontecimentos pertencentes à história do mundo e, de certo modo, também para as “catástrofes naturais”. Mesmo desconsiderando que ultrapassaria os limites do tema, não podemos aprofundar aqui o problema da estrutura ontológica do acontecer próprio da história do mundo. Pois o propósito dessa exposição é conduzir ao enigma ontológico da movimentação do acontecer em geral. STMSC: §75

Trata-se apenas de delimitar o âmbito de fenômenos que, do ponto de vista ontológico, está necessariamente implicado ao se falar de historicidade da presença [Dasein]. Em razão da transcendência do mundo, que se funda no tempo, uma história do mundo já está sempre “objetivamente” presente no acontecer do ser-no-mundo , existente, sem que seja apreendida historiograficamente. E porque a presença [Dasein] fática se afunda na decadência das ocupações, ela compreende, de imediato, sua história como história do mundo. E, ademais, porque a compreensão vulgar do ser compreende indiferenciadamente o “ser” como SER SIMPLESMENTE DADO, ela experimenta e interpreta o ser da história do mundo no sentido do que, sendo simplesmente dado, vem, torna-se vigente e desaparece. STMSC: §75

É pelo conhecimento do caráter ontológico da própria presença [Dasein] humana e não por uma epistemologia ligada ao objeto da consideração histórica que Yorck alcança a compreensão penetrante e clarividente do caráter fundamental da história enquanto “virtualidade”: “O ponto nevrálgico da historicidade reside em que a totalidade dos dados psicofísicos não é (é = SER SIMPLESMENTE DADO da natureza. Observação do autor), mas vive. E uma reflexão sobre si mesmo, que não se dirige a um eu abstrato mas à plenitude do meu si-mesmo, é que haverá de me encontrar historicamente determinado tal como a física me reconhece cosmologicamente determinado. Tanto quanto natureza, eu sou história...” (p. 71). E Yorck, que via com profundidade toda a inautenticidade da “determinação de relações” e toda a “falta de solidez” dos relativismos, não hesita em tirar as últimas consequências desta visão profunda da historicidade da presença [Dasein]. “Mas, por outro lado, para a historicidade interior da autoconsciência é, metodologicamente, inadequada uma sistemática separada da história. Assim como a psicologia não pode abstrair da física, também a filosofia – e justamente quando é crítica – não pode abstrair da historicidade... – A atitude consigo mesmo e a historicidade são como a respiração e a pressão do ar e por mais paradoxal que possa parecer – no aspecto metodológico, a não historização me parece um resto metafísico” (p. 69). “Em minha opinião, existe uma filosofia da história – não se assuste – porque filosofar é viver – quem poderia escrevê-la! Decerto, não no sentido em que até agora se concebeu e buscou, contra o que o senhor irrefutavelmente se pronunciou. Falso, até impossível, embora não seja o único, tem sido o questionamento até hoje existente. Por isso já não há nenhum filosofar real que não seja histórico. A separação entre filosofia sistemática e exposição histórica é, essencialmente, incorreta” (p. 251). “O poder tornar-se prática é, sem dúvida, o fundamento próprio e justo de toda ciência. Mas a práxis matemática não é a única. A finalidade prática de nosso ponto de vista é a pedagógica, no sentido mais amplo e profundo do termo. Ela é a alma de toda verdadeira filosofia e a verdade de Platão e Aristóteles” (p. 42s). “O senhor sabe o que eu acho a respeito da possibilidade de uma ciência da ética. Apesar disso, sempre se pode fazer algo melhor. Para quem são propriamente esses livros? Arquivos e arquivos! O único valor digno de nota é o élan de passar da física para a ética” (p. 73). “A filosofia é manifestação da vida e não a expectoração de um pensamento, que não possui nem manifesta solidez por desviar a visão do solo da consciência. Nessa concepção, a tarefa será parcimoniosa em resultados mas complexa e trabalhosa em sua conquista. Liberdade dos preconceitos é a pressuposição, que já é muito difícil de se adquirir” (p. 250). STMSC: §77

O interesse de compreender a historicidade se coloca diante da tarefa de elaborar a “diferença genérica entre o ôntico e o histórico”. com isso, consolida-se a meta fundamental da “filosofia da vida”. O questionamento necessita, porém, de uma radicalização de princípio. Do contrário, como se poderia apreender filosoficamente e conceber “categorialmente” a diferença entre a historicidade e o ôntico, senão colocando-se o “ôntico” e o “histórico” numa unidade mais originária que dá perspectivas de comparação e possibilidade de diferenciação? Mas isso só é possível caso se perceba que: 1) a questão da historicidade é uma questão ontológica sobre a constituição do ser dos entes históricos; 2) a questão do ôntico é a questão ontológica sobre a constituição do ser dos entes não dotados do caráter de presença [Dasein], isto é, do SER SIMPLESMENTE DADO, no sentido mais amplo; 3) o ôntico é apenas uma região dos entes. A ideia do ser abrange o “ôntico” e o “histórico”. É ela que se deve deixar “diferenciar genericamente”. STMSC: §77

A presença [Dasein] cotidiana, que toma tempo, de início encontra preliminarmente o tempo no que está à mão e no SER SIMPLESMENTE DADO que vêm ao encontro dentro do mundo. Ela compreende o tempo assim “experimentado” no horizonte da compreensão ontológica imediata, ou seja, como algo, de alguma maneira, simplesmente dado. O como e por que se chega a formar o conceito vulgar de tempo exige um esclarecimento a partir da constituição ontológica, fundada no tempo, da presença [Dasein], que se ocupa do tempo. O conceito vulgar de tempo provém de um nivelamento do tempo originário. A comprovação dessa origem do conceito vulgar de tempo justifica a interpretação da temporalidade como tempo originário, já antes empreendida. STMSC: §78

O tempo, “no qual” se move e repousa o que é simplesmente dado, não é “objetivo”, caso este termo queira referir-se ao SER SIMPLESMENTE DADO em si dos entes que vêm ao encontro dentro do mundo. Mas tampouco o tempo é “subjetivo”, caso por subjetivo compreendamos o SER SIMPLESMENTE DADO e a ocorrência em um “sujeito”. O tempo do mundo é “mais objetivo” do que qualquer objeto possível porque, enquanto condição de possibilidade dos entes intramundanos, eleja se “objetivou” junto com a abertura de mundo, ekstática e horizontalmente. Apesar da opinião de Kant, o tempo do mundo encontra-se, preliminarmente e de forma igualmente imediata, tanto no físico quanto no psíquico. Assim, não se chega ao primeiro através do segundo. Numa primeira aproximação, o “tempo” se mostra justamente no céu, ou seja, lá onde impessoalmente se encontra quando a gente é orientado por ele de forma natural, a ponto de o “tempo” se identificar com o céu. STMSC: §80

Esse encobrimento nivelador do tempo do mundo, realizado pela compreensão vulgar do tempo, não é acidental. Mas justamente porque a interpretação cotidiana do tempo se mantém unicamente na direção da visão da compreensibilidade das ocupações, compreendendo somente o que se “mostra” em seu horizonte, é que se lhe devem escapar tais estruturas. O contado na medição temporal das ocupações, o agora, é compreendido conjuntamente na ocupação do que está à mão e do que é simplesmente dado. Como essa ocupação do tempo se volta para o tempo aí compreendido e o “observa”, ela vê os agora que, de algum modo, estão “pre [das Da]-sentes por aí”, no horizonte da compreensão de ser que, constantemente, orienta essa ocupação. Os agora também são e estão, portanto, de certo modo, simplesmente dados em conjunto: ou seja, tanto o ente como o agora vêm ao encontro. Embora não se diga explicitamente que os agora são, como as coisas, simplesmente dados, do ponto de vista ontológico, eles são “vistos” no horizonte da ideia de SER SIMPLESMENTE DADO. Os agora passam e os agora que passaram constituem o passado. Os agora advêm e os agora que advirão delimitam o futuro. Enquanto tempo-agora, a interpretação vulgar do tempo do mundo não dispõe de horizonte para, assim, poder tornar acessíveis para si mundo, significância e possibilidade de datação. Essas estruturas permanecem, necessariamente, encobertas, e tanto mais quanto a interpretação vulgar do tempo consolida ainda mais esse encobrimento através da maneira em que constrói, conceitualmente, a sua caracterização do tempo. STMSC: §81

A sequência de agora é ininterrupta e sem lacunas. Por “mais” que dividamos o agora em “partes”, ele sempre ainda é agora. A permanência do tempo é vista no horizonte de algo simplesmente dado e indissolúvel. É orientando-se ontologicamente por um SER SIMPLESMENTE DADO insistente que se busca resolver o problema da continuidade do tempo ou que se deixa subsistir a aporia. Assim deve ficar encoberta a estrutura específica do tempo do mundo, uma vez que ela se estica num lapso de tempo, junto com a possibilidade de datação, ekstaticamente fundada. Não é a partir da ex-tensão, horizontal da unidade ekstática da temporalidade, publicada na ocupação do tempo, que se compreende o esticar-se num lapso de tempo. Que todo agora, mesmo o mais momentâneo, sempre já é agora, deve ser concebido a partir do ainda “anterior”, de onde brota todo agora: a partir da ex-tensão ekstática da temporalidade, estranha a qualquer continuidade dos entes simplesmente dados, mas que, por sua vez, constitui a condição de possibilidade para o acesso a uma constância do que é simplesmente dado. STMSC: §81

Por mais elucidadora que possa parecer a diferença entre o ser da presença [Dasein] que existe e o ser dos entes não dotados do caráter de presença [Dasein] (SER SIMPLESMENTE DADO, por exemplo), ela não passa de um ponto de partida da problemática ontológica. Não é algo com que a filosofia possa tranquilizar-se. De há muito se sabe que a antiga ontologia trabalha com “conceitos de coisa” e que há o perigo de se “coisificar a consciência”. Mas o que significa coisificação? De onde ela surge? Por que, “numa primeira aproximação”, se “concebe” o ser justamente a partir de algo simplesmente dado e não do manual, que está ainda mais perto? Por que essa coisificação sempre chega a predominar? Como se estrutura positivamente o ser da “consciência” de forma que a coisificação lhe seja inadequada? Será que a “diferença” entre “consciência” e “coisa” é suficiente para se desenvolver originariamente a problemática ontológica? Estão a caminho as respostas a essas questões? E enquanto a questão do sentido do ser em geral não for colocada e esclarecida, poder-se-á simplesmente buscar a resposta? STMSC: §83


Submitted on 25.08.2021 19:46
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