desenvolvimento filosófico

Category: Termos chaves da Filosofia
Submitter: Murilo Cardoso de Castro

desenvolvimento filosófico

Há um terceiro problema, acerca do qual o historiador da filosofia, evidentemente, é obrigado a tomar posição. Dispõe a filosofia de uma lei de desenvolvimento, ou a sucessão de sistemas é contingente e depende do acaso de temperamentos individuais? Esta questão situa-se entre outras importantes: a história da filosofia tem, atrás de si, longo passado, que lhe pesa surdamente; particularmente, sob o ponto que nos interessa, das tradições, ás quais não pode, mais ou menos, deixar de acomodar-se. São tradições, que desejamos destacar para conveniente apreciação.

A ideia de considerar a história da filosofia no conjunto e unidade de seu desenvolvimento é relativamente recente. É um aspecto das doutrinas acerca do "progresso do espírito humano", que vieram à luz em fins do século XVIII. De um lado, a filosofia positiva de Augusto Comte e, de outro, a filosofia de Hegel incluem, como elemento necessário, uma história das tentativas filosóficas da humanidade: o espírito humano não se define isolando-se de sua própria história.

Essa não foi absolutamente a história da filosofia na aurora da época moderna. Nossa história da filosofia nasceu, verdadeiramente, na época do Renascimento, ao serem descobertos, no Ocidente, os compiladores dos fins da Antiguidade: Plutarco, cujos escritos compõem um tratado Sobre as Opiniões dos Filósofos, Sexto Empírico, Estobeu, os Estrômatos, de Clemente de Alexandria, e, sobretudo, as Vidas dos Filósofos, de Diógenes Laércio, que reúne, em inexprimível desordem, fragmentos de todas as obras antigas de história da filosofia, a partir dos trabalhos dos discípulos de Aristóteles. Para esses autores, abriam-se, acima da diversidade de seitas antigas, da sucessão de escolarcas e das próprias escolas, perspectivas que haviam escapado, inteiramente, ao pensamento medieval. As primeiras histórias imitaram, sem alterá-las, essas compilações; foram tratados, como o de Burleus, sobre as Vidas dos Filósofos (1477).

Deduz-se disso que a história se limita, a princípio, à filosofia antiga ou, mais exatamente, ao período que vai até o primeiro século de nossa era, isto é, até a época em que, geralmente, se detêm os compiladores a que aludimos. A história da filosofia antiga posterior introduz-se, em verdade, graças ao estudo direto das grandes obras neoplatônicas; mas a Antiguidade se encontra, desse modo, completamente separada da Idade Média, e a ideia de que pudesse haver continuidade de uma à outra escapa completamente. Esta separação é tão denunciada, que Jônsio, coletando as fontes da história da filosofia, se limita a mencionar, isso em 1649, à exceção de curto capítulo, escritores antigos que escreveram sobre a história da filosofia (De Scriptoribus historiae philosophicae, livro IV, 1649). Não obstante, por essa época, a história da filosofia do medievo começara a ser estudada por si mesma: Launoi escrevia uma história das escolas medievais. [De Scholis celebrioribus seu a Carolo magno seu post Carolum per occidentem instauratis, 1672.]

A história da filosofia é, portanto, nesse momento, mais do que outra coisa, a história das seitas. Desse modo, interpreta-a Bacon nos planos que traça acerca das ciências. [De Dignitate et augmentis scientiarum, liv. II, cap. IV.] A história das seitas constitui, para ele, uma parte, a última, da história literária. Esta, em seu conjunto, tem por objeto mostrar a origem, o progresso, os retrocessos e os renascimentos das "doutrinas e artes". "Que se acrescentem a ela, diz Bacon, as seitas e as controvérsias mais célebres de que se ocuparam os doutos; que se enumerem os autores, livros, escolas, os seguidores dos chefes de escola, as academias, sociedades, colégios, as congregações." Esse plano baconiano é perfilhado por Georges Horn, autor da primeira história geral da filosofia, que expressa seu desenvolvimento, desde as origens até o século XVIII. No prefácio, cita Bacon; e o título completo da obra indica bem sua característica baconiana: Historiae philosophicae libri sep-tem, quibus de origine, successione, sectis et vita philosophorum ab orbe condito ad nostram aetatem agitur. [Lugduni Batavorum, apud J. .Elzevirium, 1645.] O que interessa ao autor é menos a análise e o conhecimento preciso do conteúdo das doutrinas do que sua enumeração e sequência; manifesta, a respeito da história da filosofia propriamente dita, a posição que a história da Igreja tem acerca dos dogmas; e assim, como não existe, nesse momento, história dos dogmas, não existe, tampouco, verdadeira história da filosofia.

Em verdade, o objetivo dos homens do Renascimento não é o de informar-se do passado, mas restaurá-lo e fazer remontar o espírito às suas fontes vivas. Dessa maneira, apaixonam-se pela seita que estudam; não se é historiador do platonismo sem ser, ao mesmo tempo, platônico. Há, portanto, em relação a essa atitude, platônicos e estoicos, epicuristas e acadêmicos, e mesmo pré-socráticos. A história retira desses recontros o maior resultado: Marsílio Ficino dá a conhecer Platão e Plotino; na primeira metade do século XVII, Justo Lípsio estuda com atenção e classifica o conjunto de textos conhecidos sobre os estoicos; Bérigard, em seu Circulus Pisanus, chama atenção para os primeiros físicos da Grécia; Gassendi intenta dar um retrato fiel de Epicuro. [FICINO, Theologia platonica, 1482; BÉRIGARD. Circulus pisanus; de ve-tere et peripatética philosophia, 1643, 2a ed., 1661; JUSTO LIPSIO, Manuductio ad philosophiam stoicam, Physiologia Stoicorum, 1604; GASSENDI, Commentarius de vita, moribus et placitis Epicuri seu animadversiones in decimum librum Diogenis Laertii, 1649; Syntagma philosophiae Epicuri, 1659; cf. ainda MA-GNENO, Democritus reviviscens, 1648.]

Nesses trabalhos dos "sectários", mais do que nos trabalhos de pura erudição, é onde se deve procurar a história propriamente dita das doutrinas. Uma dessas seitas apresenta, em relação ao ponto de vista de que nos ocupamos, especial importância, é a dos acadêmicos e pirrônicos; um dos argumentos tradicionais do cepticismo é, com efeito, à existência da diversidade de seitas; e uma das fontes principais do historiador reside no grande tratado de Sexto Empírico: Contra os Dogmáticos, editado e traduzido, em parte, por Henry Estienne, em 1562. Sexto Empírico ali expõe, demoradamente, as variações de opinião acerca do mesmo assunto. Há, nessa época, muitos acadêmicos, mas nenhum deixa de utilizar o mesmo processo. [Cf., por exemplo, GUY DE BRUÈS, Les dialogues contre les nouveaux académiciens, Paris, 1557, onde, em um diálogo entre Baïf e Ronsard, o autor expõe as diversas opiniões dos filósofos "que não trazem senão confusão a nossos espíritos" (p. 65).]

Destarte, de toda a erudição do Renascimento, não se recolhe mais do que um resultado: a fragmentação do pensamento filosófico em uma infinidade de seitas; ou se escolhe uma dessas seitas, convertendo-se em sectário, ou se as destrói, cada uma pela que lhe é oposta, e se acaba céptico. Não havia como fugir a essa fatalidade, senão separando completamente a filosofia da filologia, o que foi o empreendimento dos grandes pensadores do século XVII. Desde 1645, observa Horn, com grande acerto, que seu século, com Descartes e Hobbes, é o século dos filósofos, ao passo que o precedente havia sido o dos filólogos. O que se quer, agora, não é mais restaurar uma seita, nem substituir uma seita nova pelas antigas, mas encontrar, acima da opinião sectária, na própria natureza do espírito humano, as origens da verdadeira filosofia.

Nessas condições novas, ou bem a história da filosofia continuará a ser, pura e simplesmente, história de seitas, e então adstringir-se-á a enumerar erros ou aberrações do espírito humano, tornando-se aborrecida erudição, ou então deverá transformar profundamente perspectivas e métodos.

O tema comum dos racionalistas dos séculos XVII e XVIII é que a história da filosofia se assemelha a uma espécie de museu das extravagâncias do espírito humano. Para explicar tão desfavorável julgamento sobre o passado, é preciso ver de que modo as histórias da filosofia haviam apresentado essa questão. No grande trabalho de Brücker, Historia critica philosophiae (1741-44), que, até fins do século XVIII e em particular entre os enciclopedistas, é a obra mais utilizada, se encontra um esquema tradicional do desenvolvimento histórico, que provém da Cidade de Deus, de Santo Agostinho [Liv. VIII, cap. IX; comparar com CLEMENTE DE ALEXANDRIA. Estrômatos. liv. I, no inicio; Justo LÍPSIO no começo de seu Manuductio ad physioiogiam stoicam, utiliza esses textos.] e vem sobrevivendo aos séculos: a filosofia parte do começo do mundo; os gregos mentiram ao afirmar que eram os primeiros filósofos; em realidade, tomaram suas doutrinas a Moisés, ao Egito e á Babilônia. A primeira idade da filosofia não é, portanto, a idade grega, mas a idade bárbara. Quase todos os historiadores, até Brücker, começam por uma longa série de capítulos sobre "a filosofia bárbara": a filosofia, que tem origem divina, é transmitida aos patriarcas judeus, depois aos babilônios, aos magos caldeus, aos egípcios, aos etíopes, aos indianos e até mesmo aos germanos. Só depois é que os gregos recolheram essas tradições, que se desvaneceram lentamente e degeneraram entre eles, em uma infinidade de seitas; levaram, de um lado, ao cepticismo da Nova Academia, que é a extinção da filosofia, de outro lado, ao neoplatonismo, que se esforça por corromper a filosofia cristã.

Em uma palavra, a história da filosofia é a história de uma decadência gradual e contínua do espírito humano. A prova de tal decadência evidencia-se pelo número de seitas, que substituíram a unidade original. O pensamento grego, em especial, não é ponto de partida nem significa progresso; o livre curso da fantasia individual influiu decisivamente e quase destruiu o que as tradições orientais conservavam ainda de verdade. Os gregos não têm, de modo algum, nas velhas histórias da filosofia, a situação e o valor que pretenderão mais tarde. Essa crítica dos gregos é oriunda dos Padres da Igreja. Quase todos os filósofos do século XVIII, especialmente Voltaire, que não cessa de escarnecer de Platão, aderem plenamente ao velho preconceito. E há mais: prevalecem as mesmas restrições acerca da filosofia moderna; tal é a substância do Traité des systèmes, de Condillac (1749), segundo c qual todos os sistemas filosóficos são fruto da "imaginação". "Um filósofo sonha facilmente. Quantos sistemas se fizeram? Quantos não serão feitos? Se ao menos se encontrasse algum que fosse aceito, uniformemente, por todos os partidários! Mas que confiança podem inspirar esses sistemas que sofrem mil mudanças, ao passar por milhares de diferentes mãos?" [Oeuvres complètes, Paris, 1803; t. III, pp. 7, 27.]

Tal é, no decurso do século XVIII, o julgamento final da filosofia sobre seu próprio passado, e que resulta do conflito entre uma concepção de história datando do Renascimento e uma nova concepção da filosofia. Simultaneamente, por movimento inverso, desde o século XVII, a concepção histórica e a perspectiva sob a qual se considera o passado se transformam. O novo tema centra-se na ideia de que a unidade do espírito humano permanece visível através da diversidade de seitas. Desde o começo do século XVII (1609), em seu Conciliator philosophicus, Goclênio esforçava-se por classificar as contradições das seitas em cada questão. Mas ressalta essa lista de antinomias apenas para resolvê-las e mostrar que eram somente aparentes. Esse "sincretismo", que afirma a concordância do. pensamento filosófico consigo próprio, é considerado por Horn como o verdadeiro resultado da história da filosofia. [Historia philosophica, Leida, 1645, p. 323.]

A esse sincretismo, que dissimula as diferenças entre as seitas, liga-se o ecletismo que, por sua vez, se situa acima das seitas, mas que, em lugar de agrupar, seleciona e diferencia. "Não existe senão uma seita, já dissera Justo Lípsio, na qual poderíamos nos inscrever com segurança: a seita eclética, a que lê com aplicação e seleciona com discernimento.

Alheia ao espírito de facção, chegará facilmente a ser companheira da verdade." Tal espírito de conciliação e ecletismo, que encontra em Leibniz, no século XVII, um ilustre representante, [Ver também J.-C. STURM, Philosophia eclectica, 1686, e Physica eclectica, 1697-1722, e J.-B. DU HAMEL, De consensu veteris et novae philosophiae, 1663; visão conjunta da história da filosofia, de Leibniz, Oeuvres, ed. Gerhardt, t. VII, pp. 146-156.] anima a grande Historia critica philosophiae, de Brücker, [Jacobi Brucken historia critica philosophiae a mundi incunabulis ad nostram aetatem perducta, Lípsia, 1742-44, 5 vols.] a fonte em que todos os escritores da segunda metade do século XVIII se abeberaram dos conhecimentos de história da filosofia. O verdadeiro papel da história é dar a conhecer os caracteres que distinguem a verdadeira filosofia da falsa. A história da filosofia "desenvolve uma espécie de história da inteligência humana" e mostra "qual o poder da inteligência, de que maneira foi arrancada às trevas e iluminada pela luz da verdade, como chegou, através de acasos e provas, ao conhecimento da verdade e da felicidade, por entre que meandros ela se transviou, de que maneira foi reconduzida ao caminho real". (BRÜCKER, pp. 10-21) A história das seitas não é, portanto, senão um meio de nos libertarmos das seitas. O ecletismo de Brücker penetra na Enciclopédia; Diderot, no artigo Ecletismo, louva o eclético "que ousa pensar de si mesmo e fazer de todas as filosofias, que analisou sem contemplação e parcialidade, uma particular e doméstica".

Mas sincretismo e ecletismo não são a única maneira de interpretar o passado e dominar a diversidade de seitas. Tem-se procurado também, mantendo desde logo essa diversidade, encontrar entre elas um vínculo e continuidade histórica. Em obra um pouco anterior à de Brücker, Deslandes protesta contra a ideia de uma história de seitas. [Histoire critique de la Philosophie, que trata de sua origem, progresso e diversas revoluções que sofreu até nossos dias; Amsterdã, 1737; t. I, pp. 3, 5.] "Coletar, isoladamente, os diversos sistemas de filósofos antigos e modernos, penetrar o detalhe de suas ações, fazer análises exatas de suas obras, acolher suas sentenças, apotegmas, e mesmo palavras mordazes, é precisamente o que a história da filosofia contém de menos instrutivo. O principal, a meu juízo, é remontar á origem dos principais pensamentos dos homens, examinar-lhes a variedade infinita e, ao mesmo tempo, a relação imperceptível, as conexões delicadas que têm entre si. É fazer ver como esses pensamentos surgiram uns depois dos outros e, muitas vezes, uns dos outros, é relembrar as opiniões de antigos filósofos e mostrar que eles não podiam, efetivamente, dizer senão aquilo que disseram."

Esses esforços para desembaraçar a história da filosofia da poeira das seitas encontram, naturalmente, apoio entre os teóricos do progresso. Para Condorcet, a divisão da filosofia em seitas é um estado necessário, mas transitório, do qual a filosofia se liberta pouco a pouco, tendendo a "não mais admitir senão verdades provadas", e não apenas opiniões. Nessa perspectiva histórica, a Grécia desfruta de uma situação especial, porque a espécie humana deve nela reconhecer a iniciadora, "cujo gênio lhe abriu todos os caminhos da verdade". [Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain (escrito em 1793); quarta e nona épocas.]

O helenismo deixa de ser considerado como decadência, para ser iniciação. Assim se estabelece um quadro do desenvolvimento histórico da filosofia, onde se vislumbra uma filosofia puramente ocidental, que começa com os pensadores gregos da Jônia, e cujo tipo se encontra em Sócrates, que desejava "não fazer adotar pelos homens um novo sistema e submeter-lhes a imaginação à sua, mas ensinar-lhes a fazer uso da própria razão". E essa é a filosofia que, após o longo eclipse da Idade Média, se realiza plenamente com Descartes. Termina, assim, a miscelânea da pretensa filosofia bárbara e oriental e as acusações de plagiato contra os gregos. Em compensação, é preciso salientar tudo o que deixa de fora esse esquema referente aos progressos do espírito humano, tão difundido em finais do século XVIII e que, em suma, continuou sendo o de nossos historiadores de filosofia: todo o cristianismo e todo o Oriente.

Os pensadores do século XVIII têm procurado introduzir unidade e continuidade na história da filosofia. Ora, toda a primeira parte do século XIX foi testemunha de um esforço para construir o que não havia sido senão delineado. Busca-se, agora, um princípio de vinculação interna que permita compreender em si mesmas as doutrinas e delas apreender a significação histórica. Protesta-se contra a irreflexão com que são rejeitadas, por absurdas, ideias que não são as nossas, embora sejam aspectos necessários do espírito humano. O que faltava de maior importância aos historiadores era o sentido histórico, a percepção delicada das nuanças do passado. É o que ressalta muito bem Reinhold, em artigo de 1791 sobre o conceito de história da filosofia: "A razão, diz ele, pela qual a história da filosofia aparece nos manuais como história da loucura dos homens mais do que de sua sabedoria, pela qual os mais célebres e, frequentemente, os mais meritórios da Antiguidade são injuriados da forma mais indigna e suas visões mais profundas do santuário da verdade mal interpretadas e julgadas como os mais crassos dos erros — reside em que eram mal compreendidas suas ideias, e que mal se devia compreendê-las porque, ao julgá-las, os críticos se adstringiam aos princípios posteriores de uma das quatro seitas metafísicas principais, ou porque se haviam acostumado aos métodos da filosofia popular, que consistiam em prejulgar as investigações mais profundas segundo os oráculos do senso comum." [Uber den Begrif der Geschichte der Philosophie, em FULLEBORN, Beiträge zur Geschichte der Philosophie, I, 1791, p. 33.]

Esse é o programa de Reinhold que Tennemann seguiu em sua história da filosofia, [Geschichte der Philosophie, Lipsia, 1798-1819, 11 vols.] e que não deve pressupor, segundo seu ponto de vista, qualquer ideia da filosofia. Não é senão o esboço da formação gradual da filosofia, dos esforços da razão por realizar a ideia de uma ciência das leis da natureza e da liberdade.

Mas o princípio de unidade interna apresenta-se de duas maneiras: de uma parte, como princípio de uma classificação de doutrinas, que se gaba de fazer caber todas as seitas possíveis em um pequeno número de üpos, dependente da natureza do espírito. De outra parte, como um desenvolvimento gradual, de que cada doutrina importante constitui um momento necessário.

O primeiro ponto de vista é o de J.-M. de Gerando. [Histoire comparée des systèmes de philosophie relativement aux principes des connaissances humaines, Paris, ano XII, 1804, 3 vols.] Ele declara, positivamente, que abandona, por ser de uma só vez estéril e impossível, o antigo método de história das seitas. "As, opiniões filosóficas que ocorreram nos diversos países e nas diversas idades são de tal modo variadas e tão numerosas, que a mais sábia e fiel recopilação não fará senão provocar desordem e confusão em nossas ideias e oprimir-nos sob o peso de uma erudição estéril, a menos que aproximações preparadas com felicidade venham orientar a atenção."4 A "história narrativa" é preciso substituir, segundo as expressões de Bacon, a "história indutiva e comparada." Ela consiste, primeiramente, em determinar o menor número de questões primitivas, às quais deve responder cada sistema; após as respostas, pode-se apreender o espírito de cada um deles e agrupá-los em classes naturais. Feita essa classificação, poder-se-á compará-los, destacar-lhes os pontos divergentes, e, finalmente, considerando cada um deles como outras tantas experiências sobre a marcha do espírito humano, julgar qual o melhor. De fato, a questão primitiva, que dá à de Gerando a base de sua classificação, é a da natureza do conhecimento humano. A história dos sistemas torna-se um " ensaio de filosofia experimental", que submete à prova o valor de cada solução dada ao problema da origem do conhecimento.

O método de Victor Cousin não se adapta muito ao de J.-M. de Gerando. É uma espécie de meio-termo entre o método do botânico, que classifica as plantas, por família, e a explicação psicológica que as relaciona aos fatos primitivos do espírito humano. "O que perturba e desencoraja, diz ele no início do curso de 1 829, nos começos da história da filosofia, é a prodigiosa quantidade de sistemas pertencentes a todos os países e em todos os tempos." A seguir, "características, diferentes ou semelhantes, desprenderam-se de si mesmas e reduziram essa multidão infinita de sistemas a um pequeno número de sistemas principais que compreendem todos os outros". Depois da classificação, vem a explicação. Essas grandes famílias de sistemas procedem do espírito humano. Eis porque o espírito humano, tão constante para si mesmo como a natureza, os reproduz incessantemente. A história da filosofia retorna, finalmente, á psicologia, que, como ponto de partida de toda sã filosofia, "proporciona à história a mais segura luz". [Histoire générale de la philosophie, 4e éd., Paris, 1867, p. 4.] Domina-se, pois, a história, negando-a, uma vez que se substitui o desenvolvimento das doutrinas em sua duração pela classificação das mesmas.

O segundo ponto de vista que permite introduzir unidade na história da filosofia é o da conexão dinâmica entre os sistemas, onde cada um surge como um momento necessário de uma história única. A história da filosofia não faz aqui senão refletir as tendências gerais do começo do século XIX, que deu nascimento às ciências morais e sociais. Já não se crê que a história geral se oriente para o êxito de determinada religião ou de um império, mas progride para uma civilização coletiva que interessa à humanidade inteira. Do mesmo modo, a história da filosofia não se orienta em benefício de uma seita; tem uma lei imanente que se pode reconhecer por uma observação direta.

"Nenhuma ciência poderia ser compreendida sem sua própria história, que é sempre inseparável da história geral da humanidade", [Système de Politique positive (1851-54), Paris, Crès, 1921, t. III, p. 2.] e não há observação que condense mais claramente as ideias de Augusto Comte sobre a história intelectual: impossibilidade de separar o presente do passado, de considerar a situação atual da inteligência de outra maneira senão inclusa no progresso dinâmico, no qual se originou dos estados passados; impossibilidade de separar a história do desenvolvimento intelectual da do conjunto da civilização. O positivismo afirma a "continuidade humana" negada pelo "catolicismo, que maldizia a Antiguidade, pelo protestantismo, que condenava a Idade Média, e pelo deísmo, que negava toda filiação". O pensamento de Comte vincula-se ao movimento geral que vimos desenvolver-se no século XVIII contra a ideia de urna historia da filosofia tida como simples enumeração de seitas incoerentes. "A continuidade dinâmica" (p. 27) impede-nos de acreditar que jamais tenham havido "mudanças radicais" nas opiniões humanas; estas se modificam em virtude do mesmo impulso que continua modificando-as, ou seja, o impulso para uma subordinação crescente de nossos juízos à ordem objetiva. Cada uma dessas etapas tem seu lugar normal e necessário. A "lógica puramente subjetiva" (p. 31) do fetichista que anima os fenômenos "é, desde a origem, tão normal como o são hoje os melhores métodos científicos".

Essa visão de marcha contínua, que não pode retroceder, leva Comte a transformar, inteiramente, o valor que os historiadores do século XVIII davam a cada período do passado, especialmente ao pensamento grego e ao da Idade Média. Protesta, formalmente, contra as "irracionais hipóteses de alguns eruditos sobre uma pretensa anterioridade do estado positivo para o estado teológico" (p. 73), alusão, sem dúvida, a uma objeção que se pode extrair da ciência positiva dos gregos em relação ao pensamento medieval. Essas hipóteses, acrescenta, "têm sido destruídas irrevogavelmente à base de melhor erudição". A união da teologia e da metafísica, que caracteriza o medievo, união que, aos olhos dos escritores protestantes, como Brücker, e dos enciclopedistas, constitui um escândalo e uma aliança monstruosa, é precisamente o que determina a superioridade da Idade Média sobre a Antiguidade, e o que prepara a Idade Moderna. A teologia sem metafísica é, necessariamente, o politeísmo, e este "constitui o único e verdadeiro estado teológico, em que a imaginação livremente prevalece. O monoteísmo resulta sempre de uma teologia essencialmente metafísica, que restringe a ficção mediante o raciocínio".

Comte entende, pois, por filosofia, menos os sistemas técnicos de especialistas da filosofia do que um estado mental difundido através da sociedade, o qual manifestar-se-á tão bem ou melhor nas instituições jurídicas, nas obras literárias ou de arte do que nos sistemas dos filósofos. Um sistema filosófico determinado poderá, é certo, mostrar, com especial clareza, esse estado de espírito, porque concentra traços esparsos alhures e os situa em plena luz; [Politique positive, 4e ed., t. III, p. 34, sobre a necessidade de fixação de crenças em um ensinamento. "A anarquia moderna pôde suscitar o sonho subversivo de uma fé sem órgão."] mas não será estudado senão a título de símbolo ou sintoma. O que interessa aos historiadores animados de espírito positivista são as "representações coletivas"; e as peculiaridades individuais não conseguem sua atenção a não ser quando refletem o coletivo. Daí, uma mudança de método, que se exprime pelo escasso cuidado que se obtém do pormenor em qualquer questão técnica de filosofia. O que interessa são os teoremas fundamentais do filósofo, o conteúdo de sua opinião, e não a verdade absoluta. Cada sistema de opiniões está em relação com uma época,e extrai dessa relação a única justificação que poderia pretender.

Antes de Augusto Comte, Hegel manifestou igual cuidado ao fazer apologia dos sistemas, mostrando que sua diversidade não se opunha à unidade do espírito. "A história da filosofia, diz ele, [Encyclopadie (1817), Einleitung, § 13, 14.] torna claro, nas diversas filosofias emergentes, que não há mais do que uma filosofia com diversos graus de desenvolvimento, e também, que os princípios particulares sobre os quais se apoia um sistema não são senão ramos de um só e mesmo conjunto. A filosofia ulterior é o resultado de todas as filosofias precedentes e deve conter os princípios de todas essas filosofias." Não se trata quer do sectarismo que excomunga, quer do cepticismo que explora as divergências de sistemas para repudiá-los em bloco; sectarismo e cepticismo supõem que existem muitas filosofias; e a história mostra que não existe senão uma. "Para justificar o desprezo da filosofia, admite-se que existem filosofias diferentes, de que cada uma é uma filosofia e não a filosofia, como se existissem cerejas que não fossem frutos." A história da filosofia é o desenvolvimento de um "único espírito vivo", que toma posse de si mesmo, e não faz senão expor, no tempo, o que a própria filosofia, "liberta de circunstâncias históricas exteriores, expõe, em estado puro, como elemento de pensamento".

Unidade do espírito humano e continuidade de seu desenvolvimento, tais são as convicções a priori que se impõem ao historiador, antes mesmo que ele tenha iniciado sua pesquisa, e lhe põem às mãos o fio que lhe permitirá orientar-se. O que essa tese supõe é a existência de uma espécie de a priori histórico, a priori que consiste na natureza do espírito e cujo conhecimento não é, de modo algum, avaliado pelos métodos históricos. A história da filosofia é a história das manifestações do Espírito; como tal, está livre de contingências e acidentes; o historiador está certo de encontrar um vínculo dialético entre os sistemas que se sucedem. [De modo análogo, COMTE fundamenta, por fim (Politique positive, t. III), sua lei dos três estados, não sobre uma indução histórica, mas sobre a natureza do espirito humano.]

Com Hegel e Comte, encontramo-nos no extremo oposto da situação em que o Renascimento deixara a história da filosofia; o passado não mais se opõe ao presente, mas o condiciona; e, justificado por ele, não faz mais que desenvolver a unidade de um plano sistemático e preconcebido. Toda a evolução da história da filosofia até nossos dias repousa sobre uma discussão desse postulado.

Com efeito, o conhecimento da lei imanente a esse desenvolvimento não é o resultado da observação e da indução históricas. A unidade da filosofia, em Hegel, não é uma comprovação, mas um postulado. É um postulado que não pode ser aceito senão com a filosofia de que faz parte. A história apresenta-se, assim, sem prevenções? "Todo homem, a um simples julgamento, em presença do espetáculo que oferece a história da filosofia, terá dela, de imediato, uma ideia singularmente diversa da que pretenderia o sofisma da filosofia hegeliana." Renouvier, que formula essa opinião, [Esquisse d’une classification systématique des doctrines philosophiques, "La Critique religieuse", julho. 1882, p. 184.] vai, com efeito, além do ecletismo francês, além de Hegel e Diderot, à tradição do sectarismo, contra a qual se insurgiram os séculos XVIII e XIX, porque não correspondia ao desejo apaixonado de unidade do espírito humano. Segundo Renouvier, a divisão dos filósofos em seitas opostas não é um acidente histórico, resultante de preconceitos temporários e que as "Luzes" farão desaparecer, mas um fenômeno normal que se funda na constituição do espírito humano. "Durante vinte e cinco séculos, manifestaram-se no Ocidente as maiores oposições entre os filósofos. Sem dúvida; a controvérsia e o progresso dos conhecimentos positivos puderam eliminar algumas questões e suprimir certas divergências, mas a maior parte e as mais graves de todas não fizeram senão retroceder ou transferir-se para outro lugar." O espírito humano é de natureza antinómica; a controvérsia dominante é a que existe entre a doutrina da liberdade e a do determinismo. A essa controvérsia se reduzem, segundo Renouvier, todas as outras, e é possível classificar todos os sistemas, inserindo cada um deles em uma ou outra dessas doutrinas. Além disso, não é previsível que uma tendência possa jamais convencer a outra com razões constrangedoras. Assim se explica e se justifica a existência de seitas. O erro do ecletismo e do hegelianismo é terem visto unicamente nas seitas, ora um extrato arbitrário da fantasia, ora um momento necessário, mas totalmente provisório no desenvolvimento do pensamento.

Do ponto de vista de Renouvier, a história da filosofia congela-se num diálogo intemporal entre duas teses contraditórias e sempre renascentes; entre uma e outra época não há diferenças, filosoficamente, importantes; as "variações da terminologia, a diversidade de relações sob as quais se pode abordar cada problema" e que permitem "dar forma e expressões novas a opiniões em realidade antigas", eis a única matéria de que dispõe a história como tal. Tem, em compensação, quadros permanentes, os mesmos que permitem "a classificação sistemática de doutrinas"; mas esses quadros são exigências do pensamento e não fatos históricos. A única iniciativa que resta ao espírito humano é, não a construção de sistemas, que, no essencial, são predeterminados (analogamente, como em Gerando ou Cousin), mas a adoção livre de uma das duas direções possíveis. A originalidade não está, como se crê, na invenção intelectual de um sistema, mas na atitude da vontade a respeito de sistemas preformados.

O ponto de vista de Renouvier já assinala o abandono da doutrina de pretensa necessidade histórica. Sua própria época e, mais ainda a nossa, proporcionam-nos o espetáculo de uma espécie de desagregação de grandes sínteses históricas. Nosso tempo manifesta repulsa para com as grandes construções, sejam elas hegelianas ou positivistas. Os sinais exteriores desse estado de espírito manifestam-se nas obras relevantes da história da filosofia, que não mais são histórias de conjunto, porém obras limitadas a um período, como a Filosofia dos Gregos, de Edouard Zeller, ou a uma nação ou problema, tal como o Sistema do Mundo de Platão a Copérnico, de Duhem, ou então as compilações filológicas, como os Fragmentos dos Pré-socráticos e os Doxógrafos Gregos, de H. Diels ou, ainda, as monografias de Hamelin, sob os títulos de Système d’Aristo te ou Système de Descartes. As histórias gerais da filosofia possuem um método mais analítico do que sintético e visam mais a compilar resultados de trabalhos utilizados nas monografias do que a descobrir uma lei imanente de desenvolvimento, como sejam a Philosophie analytique de l’histoire, de Renouvier; História da Filosofia Europeia, de Weber; Histoire de la Philosophie par problèmes, de Janet e Séailles e, mais claramente, a grande História da Filosofia, de Ue-berweg, que não se propõe mais do que manter o leitor ao corrente dos trabalhos originais sobre cada questão.

As causas dessa situação, que é nova, são de duas espécies: a primeira, o imenso labor filológico, que, desde 1850, aproximadamente, graças a edições críticas, a descobertas de textos, a coletâneas de fragmentos, ao mesmo tempo em que orientava e enriquecia nossa informação, tornava difíceis ou mesmo impossíveis as visões de conjunto de que se jactavam os historiadores de antanho. Não poderia ser de outra forma, se se pensa nas condições do método filológico: segundo seu ponto de vista, os períodos da história se distinguem menos pelos acontecimentos positivos que assinalariam seu começo e fim do que pela natureza e situação das fontes que nos dão a conhecer. Tomando-se um exemplo simples, que diferença apresentam o estado de nossas fontes relativas à filosofia antiga, com suas raras obras originais e o estado das fontes da filosofia medieval ou moderna, cuja abundância assombra a imaginação. O trabalho de crítica e de interpretação de textos deve seguir, nos dois casos, métodos diferentes, e isto implica hábitos mentais muito diferentes para que se não possa ufanar de possuí-los simultaneamente. Outro-tanto poder-se-ia dizer de períodos bem mais curtos, como o estoicismo e o epicurismo, por exemplo, conhecidos através de fragmentos de textos, que não podem ser estudados da mesma maneira que o sistema de Aristóteles, cujo ensinamento foi integralmente conservado.

De outra parte, as conclusões do filólogo, quando se trata de interpretar um pensamento e de ajustar-lhe o sentido, são sempre provisórias ou estão à mercê de um novo descobrimento ou de novo contato. As interpretações de sistemas antigos, como o platonismo, ou mesmo as doutrinas modernas, como as de Descartes ou de Kant, sãq inumeráveis. Como encontrar um ponto de apoio sólido para uma construção sintética?

Às exigências do método filológico acresce uma segunda razão, talvez mais imperiosa ainda, para dissuadir-nos da ambição de descrever o conjunto do passado filosófico. Comte e Hegel, e mesmo Renouvier, ocupam-se da filosofia e não de filósofos. Quer considerem essas representações do universo estudado como quadros eternos impostos pela própria natureza da razão, ou como espécies de representações coletivas, evoluindo coletivamente e transformando-se com a sociedade, fazem da filosofia algo de impessoal, [No que concerne a Renouvier, certamente a escolha de uma das duas doutrinas opostas é pessoal e livre; mas as doutrinas entre as quais a escolha se exerce são inteiramente determinadas.] ou, pelo menos, a expressão pessoal que um filósofo proporciona dos pensamentos de seu tempo não é senão acidental. O essencial, doutra parte, está nesse dictamen racional ou social, espécie de deidade, à qual se submetem naturalmente as consciências individuais, sejam as de um Platão ou de um Descartes.

Logo, a história da filosofia evolveu como história em geral; a minúcia consagrada à pesquisa das origens não se explicaria sem a vontade do historiador de apreender o que há de individual, de irredutível, de pessoal no passado; suas pesquisas seriam inteiramente inúteis, se se tratasse, como outrora, de determinar tipos ou leis. De que serviria um exemplar novo de um tipo já conhecido, se o exemplar não envolvesse valor em si mesmo e naquilo que o diferencia?

Essa preferência do individual, que é, talvez, o traço predominante de nossa crítica literária, faz-nos ver o passado sob perspectiva inteiramente nova. Não mais se trata de "seitas", como no Renascimento, nem de "sistemas", como em Cousin, ou ainda de "mentalidades coletivas", que o historiador tenta atingir; são indivíduos, em toda riqueza variada do espírito. Platão, Descartes ou Pascal não são expressões de seu meio nem momentos históricos, mas verdadeiros criadores. O que impressiona, à primeira vista, é a descontinuidade de seus esforços. Não há, observa Windelband, progresso contínuo "já que cada um dos grandes sistemas dá fórmula nova ao problema e resolve-o como se os outros não tivessem existido". [Geschichte der Philosophie, Friburgo, 1892.]

E de acrescentar que essas duas razões, exigências do método filológico e pesquisa do individual, se bem que se oponham uma e outra à síntese histórica, não orientam o espírito no mesmo sentido. O filólogo tende a procurar afinidade entre pensamentos e fórmulas; esta tendência, às vezes, se torna exagerada se não se subordina à preferência e ao sentido de pensamentos vivos, e leva a fazer, de uma doutrina nova, um mosaico de doutrinas passadas, até confundir o inventor com o compilador. Por uma atitude inversa, o crítico não quer buscar nas doutrinas senão a multiplicidade, e reveste a história das ideias de um estilo impressionista, manifestando preferência pela variedade das ideias, mais do que pela unidade profunda que ela poderia encerrar.

As diversidades puramente doutrinais da Idade Antiga e medieval, a Idade Moderna ajunta outra: a diversidade dos conteúdos nacionais, que emprestam sua característica a cada uma das filosofias, inglesa, alemã ou francesa. É preciso ter presente, ainda, a imensa complexidade da cultura moderna, a ponto de dissolver-se, como previa e receava Augusto Comte, em uma série de culturas especiais e técnicas, cada uma das quais absorve a vida e as possibilidades de um homem. O filósofo, limitando-se a um dos aspectos dessa cultura, é hoje lógico ou epistemólogo, filósofo de matemáticas ou filósofo de religião, sem que haja nítida correlação e, menos ainda, unidade entre um e outro ponto de vista. Oscila-se entre uma cultura geral, que é superficial, e uma cultura profunda, que é restrita.

Não se registram diversidades doutrinais irredutíveis à razão: diversidades devidas a diferenças de personalidades, de caráter nacional, e modos e graus de cultura? Como poderá o historiador inserir no mesmo plano doutrinas de proveniência tão diversa?

Vemos, também, os melhores historiadores de nosso tempo hesitar quanto ao método a seguir. Como exemplo, Victor Delbos, [La méthode en histoire de la philosophie, art. 2.", "Revue de métaphysique et de morale", 1917, pp. 279-289.] que, sem renunciar à ideia de um encadeamento racional entre os aspectos sucessivos do pensamento filosófico, vê seu desejo de unidade abalado pelo temor de não ser exato e de deixar escapar a própria substância da história. De fato, esse vigoroso espírito deixou uma admirável série de monografias, cujo título [Figures et doctrines de philosophes. Paris. 1919: La philosophie française, idem.] já assinala a dificuldade, talvez, insuperável, que deveria ter encontrado ao escrever uma história geral da filosofia.

A mesma hesitação, entretanto mais dissimulada, revela-se em Windelband. [Geschichte des Philosophie, Friburgo, 1892. p. 9.] O desenvolvimento da filosofia, como ele reconhece no seu prefácio, deriva de três fatores, ou melhor, deriva de três histórias justapostas:

1a) História pragmática, ou seja, evolução interna da filosofia, baseando-se no desacordo entre as soluções antigas e as novas representações da realidade.

2a) História em relação com a história da cultura, em que a filosofia recebe seus problemas de ideias que dominam a civilização de uma época.

3a) Finalmente, história das individualidades.

Sob o primeiro aspecto, a história tem uma espécie de lei de desenvolvimento. Mas qual é exatamente o alcance desse aspecto em relação aos dois outros, que fazem depender de numerosos acasos o curso da vida espiritual, o autor não nos deixa pressentir.

Seria essa a situação definitiva da história da filosofia? Deve-se abandonar toda esperança de ser ela mesma filosófica para converter-se em um capítulo da filologia e da crítica literária? Está condenada a oscilar, perpetuamente, entre o método do mosaico e o método impressionista, incapaz de fazer nada melhor do que conciliar os dois métodos um com o outro?

Sem dúvida, e apesar das aparências, subsiste algo das ideias de Comte ou de Hegel, Eles nos ensinaram a ver nos sistemas de filosofia do passado mais do que seitas herméticas ou fantasias individuais, aspectos do espírito humano. Aprenderam a aceitar o passado intelectual inteiramente a sério e compreenderam melhor que outros a solidariedade intelectual das gerações. Não obstante a crise que atinge a história da filosofia, não se pode remediá-la retomando uma dessas fórmulas gerais de desenvolvimento, caras aos positivistas e aos hegelianos. Tudo que, recentemente, foi tentado nesse sentido é irrealizável ou, pelo menos, prematuro. [Dentre essas tentativas, uma que julgamos interessante é a Philosophie comparée, de P. MASSON-OURSEL (Paris, 1923), que intenta destacar uma lei de desenvolvimento, comparando a marcha geral do pensamento filosófico na Europa e no Extremo Oriente. Ver, também, a engenhosa interpretação da história, por J. DE GAULTIER, Mercure de France, 1.° de janeiro de 1923, p. 11.] Como os dois primeiros problemas que apresentamos, este terceiro não pode ser resolvido senão de maneira aproximativa e provisória, com todas as incertezas que comporta a história.

É de notar, em primeiro lugar, que a erudição filológica, se existe, como assinalamos, faz desabar a construção comtista ou hegeliana e nos conduz na via de uma solução positiva. À medida que se avança no conhecimento íntimo e detalhado do passado, vê-se melhor que as novas doutrinas encontram seu ponto de inserção nas doutrinas anteriores, e se estabelecem continuidades e transições onde antes não se viam senão radical originalidade e absoluta oposição. Fórmulas gerais, como as de Comte ou de Hegel, para os quais o desenvolvimento deve proceder por oposição franca e nítida, tornam-se um mau sinal da realidade matizada que nos mostra a história. Em compensação, essa continuidade de espíritos que revela a crítica histórica não poderia exprimir-se por uma lei geral e deve propor-se como objeto mil buscas de detalhe. A ideia de estudar, em sua continuidade e gênese, os sistemas do mundo de Platão a Copérnico não poderia ocorrer aos historiadores imbuídos da ideia de oposição radical entre a Antiguidade e a Idade Média. Foi necessária a maravilhosa erudição de Duhem para reencontrar, através daquele tempo, a continuidade de dois ou três temas de pensamento. O sentido favorável que a história da filosofia da Idade Média encontrou não se baseia somente em motivos estranhos ao interesse da história, mas em verdadeiras descobertas, que mostram sua união com a filosofia moderna. O abandono do método a priori, longe de prejudicar a ideia de unidade da filosofia e da inteligência, permitiu dar-lhe um sentido mais amplo e concreto, conquanto mais difícil para traduzir em fórmulas, dado que não é a unidade de um plano que se realiza aos poucos, mas uma série de esforços originais e invenções múltiplas.

Em segundo lugar, o abandono da ideia de progresso fatal, que dominou a história da filosofia até 1850, não foi menos favorável a uma exata apreciação do desenvolvimento filosófico. A ideia de um desenvolvimento incessante e contínuo é inteiramente contrária à realidade histórica. Bacon vira mais claro que seus discípulos do século XVIII, quando mencionava, ao lado das fases de progresso, períodos de regressão e de estancamento, seguidos de renascimentos. A verdade é que a curva da vida intelectual, se se pode assim dizer, é extremamente complexa, e só estudos pormenorizados podem dar ideia de seus meandros. Ainda que possa dar tal ideia, tampouco para eles a obra da crítica filológica é destrutiva, mas, ao contrário, só nos mostra vários dos esquemas possíveis de desenvolvimento, onde o apriorismo histórico não vê mais do que um. Tanto pode haver marcha do pensamento para desacordos maiores, dissipando-se numa poeira de seitas, opostas umas às outras, como na Grécia, no período subsequente à morte de Sócrates, quanto, pelo contrário, caminhar para a unidade do pensamento, para o acordo quase completo, a exemplo da segunda metade do século XVIII, em que dominava o empirismo inglês. O pensamento filosófico, ou se faz móvel, sugestivo, transformando-se em método da vida espiritual, segundo uma direção mental, como em Sócrates ou Platão, ou adquire a feição de uma doutrina decisiva, com resposta pronta a todas as questões, pretendendo impô-la mediante uma dialética irrefutável, como em tempos da Escolástica. Há momentos em que o pensamento intelectual, parecendo fatigado, renuncia a afirmar o próprio valor e cede o passo a doutrinas que desejam atingir a realidade pela intuição, sentimento ou revelação. Tal, por exemplo, o intelectualismo do século XVIII, confiante na razão, seguido de perto pela orgia romântica, alternância bastante instrutiva e, talvez, uma lei geral da história do pensamento. [Cf. CAZAMIAN. L’Évolution psychologique de la littérature en Angleterre, Paris, 1920, pp. 4 sq. — Cf. indicações sobre as variações regulares de estilo em filosofia, em minha obra, La Philosophie et son passé, 1940, p. 8. Acerca dessa noção de estilo, ver a notável obra de JOEL, Wandlungen der Weltanschauung, Tubinga, 1928, p. 51] Vê-se, por esses exemplos, como a crítica, por si só, sem qualquer a priori, permitirá classificar e ordenar os sistemas.

A história permitirá, ainda, até certo ponto, julgá-los. Com efeito, o valor de um sistema não independe do impulso espiritual que o criou. As doutrinas filosóficas não são coisas, mas pensamentos, temas de meditação que se propõem para a posteridade e cuja fecundidade jamais se esgota, senão em aparência, direções mentais que podem sempre ser retomadas. As ideias de que tais doutrinas são feitas não são os materiais inertes de um edifício mental que poderia ser demolido, e cujos materiais seriam reaproveitados em outras construções; são germes que se querem desenvolver e pretendem ser um "bem capaz de comunicação". [SPINOZA, De emendatione intellectus, começo.] Ora, a pesquisa histórica deve permitir-nos captar o impulso original e a maneira pela qual se desenvolve, quando cessa, e se renova: a história não está terminada; é o que jamais deve esquecer o historiador do pensamento. Platão ou Aristóteles, Descartes ou Spinoza nunca deixaram de estar vivos. Um dos maiores serviços que a história pode prestar é, sem dúvida, mostrar de que maneira uma doutrina se transforma de modo bem diferente, segundo os casos. Acontece, às vezes, que a doutrina, fazendo-se permanente, obstina-se em dogma, e acaba por impor-se: assim, após três séculos de existência, o estoicismo, em Epicteto, é uma lei que não necessita ser demonstrada. Acontece, também, que um tema filosófico, tentando fixar-se em doutrina, converte-se em dogma, acaba por esgotar-se em uma espécie de complicação e maneirismo, que faz pensar nas brilhantes decadências de escolas artísticas de fórmulas já gastas. A filosofia jônica, por exemplo, ao tempo de Platão, reduziu-se aos balbucios dos últimos heraclíteos, os quais, por medo de deter o rio fluente das coisas, não mais querem utilizar a linguagem. Ou ainda, a descrição das coisas inteligíveis, nos últimos neoplatônicos, como Proclo e Damásio, chega a uma minuciosa precisão, que obriga a reconhecer todo o artifício de técnico profissional e falta de sinceridade. Outro tanto poder-se-ia dizer das últimas formas dos sistemas de Fichte e Schelling. Veem-se, assim, nascer, como categorias históricas, móveis, modificáveis, temas gerais de pensamento que devem substituir as categorias maciças que usaram, em outro tempo, os historiadores ecléticos ou hegelianos.

Essas três breves indicações excluem a possibilidade de terminar essa introdução, nada formulando que se assemelhe a uma lei de desenvolvimento do pensamento filosófico. Não se trata de construir, mas somente de descrever. O que já não se pode fazer é escrever a história como um profeta obsoleto, como se se quisesse dar a impressão de que o pensamento surgia aos poucos e se realizava progressivamente. Não mais podemos admitir com Aristóteles, pai da história da filosofia, que a história se orienta para uma doutrina que contém em potência. A história da filosofia nos ensina que o pensamento filosófico não é uma dessas realidades estáveis que, uma vez descobertas, subsistem como invenção técnica. Esse pensamento está, incessantemente, posto em discussão, continuamente em perigo de perder-se em fórmulas que, ao fixá-lo, o atraiçoam. A vida espiritual não reside senão no trabalho, e não na posse de uma pretensa verdade adquirida. [Sobre as questões de método em história da filosofia, ver minha obra, La Philosophie et son passé, 1949, pp. 1-78. Cf., também, em Activité philosophique en France et aux États-Unis, 1950. t. I: G. BOAS, L’Histoire de la philosophie (pp. 30-49), e t. II, meu artigo: L’Esprit de l’histoire de la philosophie en France (pp. 64-75); e ainda o prefácio de J. ORTEGA Y GASSET (em espanhol) na tradução espanhola desta História, Buenos Aires, 1944. Cf. R. MONDOLFO, "Problemas e métodos de investigação na história da filosofia", editado por MESTRE JOU. 1969; H. GOUHIER, L’histoire et sa philosophie, Paris, 1952; La filosofia delia storia delia Filosofia, por E. CASTELLI, E. GOUHIER, M. GUEROULT etc.. Arquivo de Filosofia, Roma-Milão, 1954; V. DE MAGALHÃES-VILHENA, Filosofia e História, 1956; Panorama do Pensamento Filosófico, I, Lisboa, 1959, P.-M. SCHUHL, "Transmissão, estabelecimento, edição de textos filosóficos" (Encyclopédie française, t. XIX, 1957, 20, 12); e Études platoniciennes, Paris, 1960, pp. 48-61. [Bréhier]

Submitted on:  Tue, 22-Dec-2009, 13:34