ato de fé

Category: Termos chaves da Filosofia
Submitter: Murilo Cardoso de Castro

ato de fé

A fé pode ser entendida como virtude e como ato. Prescindimos neste estudo da fé como virtude, para nos limitar exclusivamente ao "ato de fé". Pois bem; o ato de fé é um ato complexo; quer dizer que consta de vários elementos. A análise pode decompô-lo e fazer-nos descobrir que o ato de fé é composto de elementos psíquicos, de elementos lógicos e de objetos reais. Por conseguinte, o ato de fé interessará, por sua complicada estrutura, a três ciências filosóficas: á psicologia, à lógica e à ontologia (teoria dos objetivos reais). Mas, de outra parte, os objetos que no ato de fé propriamente dito apreendemos são objetos muito particulares; pertencem a uma especial modalidade da realidade, que pode ser chamada a realidade sobrenatural ou realidade divina. Deste lado, pois, o ato de fé interessa também à ciência da realidade sobrenatural ou divina, cujo nome é teologia. São, pois quatro facetas que o ato de fé apresenta, dando frente para quatro ciências distintas: a psicologia, a lógica, a ontologia e a teologia. Na unidade de sua essência, o ato de fé apresenta, pois, problemas em grande número de direções diversas. Pode estudá-lo o teólogo; e estuda-o de fato como fundamento primordial da disciplina teológica, a qual é ciência, justa e precisamente porque o ato de fé é ato de conhecimento objetivo. Pode também estudá-lo o psicólogo como ato subjetivo da alma; e indagar se é ato de toda a alma ou de uma ou de várias faculdades da alma e se é ato de todas as almas ou de algumas tão-somente e de quais. Pode estudá-lo, outrossim, o lógico para procurar o fundamento de validez que se deve conceder às afirmações da fé. Por último, pode considerá-lo o metafísico ou o ontólogo quanto à índole da realidade ou objetividade sobre que incide. No estudo completo do ato de fé, teriam, pois, de colaborar amistosamente essas quatro ciências: a psicologia, a lógica, a ontologia e a teologia. As três primeiras pertencem ao conjunto de disciplinas que geralmente se chamam filosofia. O ato de fé oferece-nos, pois, um tema, no qual se verifica, de modo exemplar, a antiga concepção da filosofia como ciência auxiliar ou propedêutica da teologia. Sem tantos eufemismos, diziam singelamente os antigos que a filosofia era a serva ou criada da teologia, ancilla theologiae. Mas, de uns três séculos para cá, a filosofia chamada moderna emancipou-se, por assim dizer e já não quer servir à ciência de Deus. Rebelou-se até mesmo contra a ciência de Deus e ataca-a na sua própria base, negando-lhe seu objeto, pondo em interdição sua possibilidade e realidade objetivas. Por que a filosofia "moderna" julga inválido o conhecimento de Deus? Por que nega a validez objetiva do ato de fé? Qual é o germe primordial dessa sua atitude negativa? Preparar a resposta a essas perguntas é o objeto primordial da presente lição.

No ato de fé devemos distinguir antes de tudo o ato de uma parte e o objeto de outra. Como fenômeno psíquico, o ato de fé é intencional; quer dizer, refere-se a um objeto, recai sobre um objeto. Foi talvez a principal contribuição de Brentano à filosofia atual esta caracterização do fenômeno psíquico como intencional; quer dizer, como ato subjetivo referido a um objeto ou que recai sobre um objeto. Uma coisa é o pensamento e outra o pensado pelo pensamento; uma coisa é volição e outra o desejado pela volição. Todo pensamento é pensamento de algo; toda sensação é sensação de algo; todo desejo, toda aspiração, toda volição são desejos de algo, aspiração de algo, volição de algo. E este algo pensado, sentido ou pretendido, não pode ser confundido ou identificado com o ato subjetivo do pensá-lo, senti-lo, querê-lo. Esse algo é o objeto intencional do fenômeno psíquico ou, melhor dito, do ato. Com esta singela averiguação, já por si evidente, fica eliminado, a mil léguas do horizonte intelectual, esse vago e desconsertante "subjetivismo" que amorosamente cultivaram, como ninho de benquistas confusões, muitos filósofos modernos.

O ato e o objeto encontram-se, pois, um diante do outro. O ato de fé recai sobre o objeto, e o recair sobre o objeto é para ele essencial. Se não há objeto sobre o qual incida o ato, não há também ato de fé. Podem ser, pois, duas as causas que anulem ou aniquilem o ato de fé: ou que o ato fique sem objeto, ou que o objeto fique sem ato. Dito de outro modo: ou que queira o homem verificar o ato de fé, mas não encontra objeto sobre o qual possa fazê-lo recair, ou que havendo objeto sobre o qual possa o ato recair, não queira o homem verificar o ato de fé. Assim, por exemplo: se ante um juiz se apresenta para depor uma testemunha, na qual, por qualquer razão, está disposto a crer o juiz, e esta testemunha não declara nada concreto, o juiz não pode verificar ato de fé porque não há matéria sobre a qual recaia este ato. Inversamente, se ante o juiz se apresenta uma declaração terminante e concreta prestada por uma testemunha, na qual o juiz, por qualquer motivo, não está disposto a crer, então o juiz não verifica o ato de fé, embora exista objeto sobre o qual pudesse recair este ato.

Exige-se, pois, para que haja ato de fé a confluência do ato e do objeto. O ato, coloca-o o sujeito pensante. Em troca, o objeto encontra o sujeito diante de si — não o põe por si mesmo; pois se o pusesse por si mesmo não seria já o objeto, mas uma posição do sujeito, pertencente ao ato, não ao objeto do ato. Mas uma vez que confluem num mesmo ponto o ato do sujeito e a realidade do objeto; procedendo cada um de origem oposta, como se abraçam e juntam para constituir o ato de fé?

Em primeiro lugar, abraçam-se e juntam-se desta maneira: que o ato consiste em assentir ao objeto. Assentir ao objeto é dizer sim ao objeto, afirmar o conteúdo do objeto. Mas isto não distinguiria o ato de fé de qualquer outro juízo, porque em todo juízo encontramos sempre um ato de assentimento a um conteúdo ideal proposto. Que diferença há, pois, entre o ato de assentir ao objeto quando é juízo e quando é ato de fé? Há a seguinte diferença: que no assentimento do juízo a seu objeto, a causa do assentimento se acha no caráter de "evidente" que tem o objeto: enquanto que no ato de fé assentimos a um objeto que não tem esse caráter de evidência. Por exemplo, no juízo: dois e dois são quatro, o ato do juízo consiste no afirmá-lo: e o objeto do juízo consiste em "dois e dois são quatro". Mas se eu afirmo, quer dizer, se verifico o ato, é porque o objeto: dois e dois são quatro, é evidente. Ao contrário, no ato de fé, o objeto não é evidente. Assim, por exemplo, se verifico o ato de fé consistente em acreditar que Deus é uno em essência e trino em pessoas, afirmo, ou seja, verifico o ato; porém a afirmação recai sobre um objeto — trindade, unidade — que não é evidente. Mas logo perguntaremos: que é a evidência? [Morente]

Submitted on:  Thu, 18-Jun-2009, 16:00