Kehre

Category: Heidegger - Termos originais
Submitter: Murilo Cardoso de Castro

Kehre

VIDE Umkehrung

"Os verbos wenden, kehren, drehen traduzem ‘virar’ em seu sentido literal de levar para uma outra posição, ao qual certas vezes acrescenta-se a ideia de encarar uma outra direção. [...] Kehren significa, de maneira geral, ‘fazer encarar uma outra direção’, denotando, certas vezes, meramente uma virada parcial. [...] Pode também implicar velocidade, força ou hostilidade. Tem também o sentido de ‘varrer [com uma vassoura]’" (DGS, 359s). Kehrt! é "Meia-volta!" Esta palavra forma diversos compostos: umkehren, "voltar atrás, retraçar os passos" , e sich umkehren, "virar-se imediatamente" ; einkehren, "hospedar-se [p.ex., em uma pousada]" ; bekehren, "converter [p.ex., a uma fé]" ; verkehren, "alterar, inverter, reverter etc." . O substantivo Kehre, uma "curva, virada" (radical), foi formado a partir deste verbo. Ele também forma compostos: Abkehr, "afastamento, virar para longe" , Ankehr, "aproximação, voltar-se para" , Wiederkehr, "retorno" , como no "eterno retorno/recorrência do mesmo" de Nietzsche (GA6T1, 25 etc.). Heidegger usa com frequência wenden e Wende, "virar, mudar" e "virada, mudança" , como sinônimos de kehre(n).

Em SZ, a existência de Dasein envolve várias “viradas”. Uma disposição de humor “descobre, não ao olhar para o ser-lançado, mas enquanto volta-se para e se afasta” (SZ, 135). Na decadência, Dasein “se afasta de si mesmo” (SZ, 185). A historicidade autêntica “compreende a história como o ‘retorno’ do possível, e sabe que a possibilidade só retorna se a existência lhe estiver aberta, decisivamente e em um instante de visão, na repetição decidida” (SZ, 391s). O homem erra: ele está “voltado para [zugewendet] o imediato acesso aos entes” e “afastado [weggewendet] do mistério”. Este “voltar-se para [Zu- und Weg-wenden] é posterior a uma virada [Wende] peculiar no para lá e para cá de Dasein” (GA9, 193s).

Heidegger usa posteriormente, Kehr, e também palavras com wenden, para uma virada radical em nosso pensamento sobre o ser, verdade etc., e também para uma virada no próprio ser. O mito da caverna de Platão iniciou "uma virada [Wendung] na determinação da essência da verdade" (p, 201/251). Na não realizada terceira seção da primeira parte de SZ, que deveria trazer o título "Tempo e ser" , "ocorre uma total reversão [kehrt sich das Ganze um]."Essa parte "foi suspensa, porque o pensamento falhou em encontrar uma fala adequada à virada [Kehre] [...]" . EV "fornece alguma visão do pensamento da virada de ‘ser e tempo’ para ‘tempo e ser’. Esta virada não é uma alteração do ponto de vista de SZ; na virada, o pensamento que se pretendia alcançar atinge, pela primeira vez, o posicionamento da sua dimensão, a partir da qual SZ se cumpre na experiência básica do esquecimento do ser" (CartaH [GA9], 325. Cf. GA26, 196, 201). "A virada" , die Kehre, é usada sobretudo para denotar uma virada radical no pensamento do próprio Heidegger, supostamente ocorrida entre SZ e CH [GA9]. Há certamente grandes diferenças, de estilo e conteúdo, entre SZ e os escritos datados do pós-guerra. Heidegger fala diversas vezes de SZ como uma obra de "transição [Über-gang]"da metafísica para a "questão básica" sobre o ser (GA65, 84, 223, 229,234 etc.). A mudança é, contudo, gradual, não uma Kehre. E o que o próprio Heidegger chama de Kehre em seu pensamento não envolve, como ele mesmo diz, mudança alguma de "ponto de vista" . Ele diz o mesmo de Kant: "a filosofia de Kant é cheia de ‘reviradas’ [’Umkippungen’]. Mas não se pode entendê-las pelo método fatal do senso comum, que considera qualquer coisa deste tipo como uma mudança de ponto de vista, i.e. uma comparação entre dois diferentes resultados. Uma revirada genuína, sustentada pela necessidade objetiva, é, pelo contrário, sempre sinal de continuidade interna e apenas se deixa compreender pela compreensão do nexo de problemas que abarca a mudança como um todo. Por isso, no caso de duas proposições opostas, precisamos nos dar ao trabalho de compreender o problema. Só assim podemos ver que não é questão de mudança de ponto de vista" (GA31, 267s).

Uma Kehre ou uma virada envolvem normalmente a inversão de dois termos. “Ser e tempo” transforma-se em “tempo e ser”. A resposta à questão sobre a essência da verdade é: “a essência da verdade é a verdade da essência” (GA9, 198). A inversão transforma os significados de “essência” e “verdade”. Wesen significa primeiramente “essência” no sentido tradicional, mas em sua segunda ocorrência é compreendida “verbalmente”, aproximando-se do “ser como a distinção prevalecente entre ser e entes”. Wahrheit começa como “verdade” no sentido de “correção”, mas toma-se “verdade” no sentido de “abrigo iluminador”. Assim, a “resposta à questão acerca da essência da verdade é o dito de uma virada [die Sage einer Kehre] dentro da história do ser. Já que o abrigo iluminador pertence ao ser, ele aparece primordialmente sob a luz da retirada que encobre” (GA9, 198s 137s Cf. GA65, 288, 415). A virada na história do ser é não apenas a iluminação original do ser pelos gregos, mas um paradoxo inerente ao próprio ser que torna isto possível: “Na virada [Kehre] do acontecimento, o essencializar da verdade é também a verdade do essencializar. E esta mesma tergiversação [Widerwendigkeit] pertence ao ser enquanto tal” (GA65, 258; cf. 189). Heidegger tenta explicar o acontecimento [Ereignis] em função das viradas, inversões, círculos e relações recíprocas, que encontrou inicialmentc cm nosso pensamento: “O acontecimento realiza a sua ocorrência mais íntima e a sua esfera mais ampla na virada. Essencializando no acontecimento, a virada é o solo escondido de todas as outras [204] viradas, ciclos e círculos subordinados — obscuros em sua origem, inquestionados, prontamente tomados como ‘definitivos’ por sua própria conta (cf., p.ex., a virada na estrutura da questão-guia, o círculo da compreensão). O que é esta virada original no acontecimento? Somente a investida [Anfall] do ser enquanto um fazer acontecer o ‘aí’ traz o Da-sein para si mesmo e, assim, para a realização (abrigo) da verdade insistentemente fundamentada dos entes, que encontram seu lugar no encobrimento iluminado do ‘aí’. [...] Se através do acontecimento o Da-sein, como centro aberto da individualidade que fundamenta a verdade, é pela primeira vez lançado para si mesmo e torna-se o si mesmo, Dasein deve por sua vez [wiederum] pertencer ao acontecimento como possibilidade escondida da fundamentação e essencialização do ser” (GA65, 407). Isto faz lembrar uma outra “virada [Kehre]; o lançador do projeto [Entwurf] é um lançador lançado, mas primeiramente em e através do lance” (GA65, 259), e também a “recíproca [kehrig]” fundamentação de Da-sein e do acontecimento, a “recíproca [kehrigen]” relação de Dasein e do ser (GA65, 261, 316). A recíproca interação da virada e da sua iniciação de uma nova época na história do ser aproxima-se da dialética de Hegel, mas Heidegger insistentemente rejeita qualquer afinidade com a “dialética” (GA9, 198).

Mais tarde, Heidegger fala de uma Kehre do esquecimento do ser, consumada pela tecnologia, para a “salvaguarda da essência do ser” ou da “verdade do ser” (GA79, 40; 42). Ela será imediata e “abrupta [jah]”. Não pode ser prevista pela extrapolação do presente, visto que este tipo de “caça ao futuro” ocorre dentro da atitude da “representação tecnológico-calculadora” e “aquilo que é meramente tecnológico nunca pode alcançar a essência da tecnologia” (GA79, 45s), o “risco desviante [kehrige]” que precisa vir à luz para que a virada aconteça (GA79, 40). [DH:204-206]

Submitted on:  Fri, 30-Jul-2021, 11:29