intencionalidade

Category: Heidegger - Ser e Tempo etc.
Submitter: Murilo Cardoso de Castro

intencionalidade

Intentionalität

As posturas comportamentais possuem a estrutura do dirigir-se-para, do ser-dirigido-para. Tomando de empréstimo um termo da escolástica, a fenomenologia designa essa estrutura como INTENCIONALIDADE. A escolástica fala da intentio da vontade, da voluntas, isto é, ela só fala da intentio em relação à vontade. Ela está bem longe de atribuir a intentio mesmo que apenas às outras posturas comportamentais do [90] sujeito ou, quiçá, de conceber fundamentalmente o sentido desta estrutura. Por isso, não é senão um erro historiológico tanto quanto material dizer, tal como acontece hoje na maioria das vezes, que a doutrina da INTENCIONALIDADE seria uma doutrina escolástica. Ainda que isso fosse verdade, porém, esta não seria nenhuma razão para rejeitá-la, mas antes apenas para perguntarmos se ela é em si sustentável. Todavia, a escolástica não conhece a doutrina da INTENCIONALIDADE. Em contrapartida, Franz Brentano, em sua Psychologie vom empirischen Standpunkt (Psicologia de um ponto de vista empírico – 1874), sob forte influência da escolástica, especialmente de Santo Tomás e Suarez, acentuou mais intensamente a INTENCIONALIDADE e disse que, no que concerne a esta estrutura, ou seja, ao modo do dirigir-se-para algo, o conjunto total das vivências psíquicas poderia e precisaria ser classificado. O título Psychologie vom empirischen Standpunkt (Psicologia de um ponto de vista empírico) tem em vista algo completamente diverso da expressão contemporânea “psicologia empírica”. Brentano influenciou Husserl, que elucidou pela primeira vez a essência da INTENCIONALIDADE nas Investigações lógicas e levou adiante essa elucidação no Ideias. Não obstante, é preciso que se diga: este fenômeno enigmático da INTENCIONALIDADE está longe de ser concebido filosoficamente de maneira suficiente. Nossa investigação concentra-se precisamente em ver mais esse fenômeno de maneira mais clara. GA24MAC: §9

Se nos lembrarmos daquilo que dissemos sobre a própria percepção, é possível elucidar inicialmente o conceito de INTENCIONALIDADE: toda postura comportamental é um comportar-se-em-relação-a, a percepção é um perceber-algo. Nós designamos esse comportamento-em-relação-a em sentido mais estrito como o intendere ou a intentio. Todo comportar-se-em-relação-a e todo dirigir-se-para possui o seu em-relação-ao-que do comportamento e o pelo que do estar-retificado. Nós designamos esse em-relação-ao-que do comportamento e esse para-que do estar-dirigido como intentum. A INTENCIONALIDADE abarca os dois momentos, a intentio e o intentum, em sua unidade até aqui ainda obscura. Os dois [91] momentos são, em toda postura comportamental, diversos; a diversidade da intentio ou do intentum constitui justamente a diversidade dos modos de comportamento. Eles são diversos em vista de sua INTENCIONALIDADE a cada vez própria. GA24MAC: §9

É preciso seguir agora esta estrutura das posturas comportamentais do ser-aí, levando particularmente em conta a percepção, e perguntar como essa estrutura mesma da INTENCIONALIDADE se parece. Antes de tudo, porém, é necessário indagar como ela se funda ontologicamente na constituição fundamental do ser-aí. De início, o que está em jogo é aproximar ainda mais de nós a INTENCIONALIDADE enquanto estrutura das posturas comportamentais do ser-aí, isto é, preservá-la das interpretações equivocadas naturais que constantemente afluem. Não temos tanto em vista aqui as interpretações equivocadas, com as quais a filosofia contemporânea sobrecarrega a INTENCIONALIDADE, interpretações que emergem todas de pontos de vista epistemológicos ou metafísicos preconcebidos. Deixamos totalmente de lado determinadas teorias do conhecimento, em geral, determinadas teorias filosóficas. Precisamos tentar ver o fenômeno da INTENCIONALIDADE de maneira simples e desprovida de preconceitos. Ainda que nos despojemos dos preconceitos que emergem das teorias filosóficas, contudo, ainda não estamos imunes de interpretações equivocadas. Ao contrário, os preconceitos mais perigosos e tenazes em relação à compreensão da INTENCIONALIDADE não são os preconceitos explícitos que possuem a forma de teorias filosóficas, mas os preconceitos implícitos que surgem da apreensão e da interpretação natural das coisas por meio da compreensibilidade cotidiana do ser-aí. Estas são as interpretações equivocadas menos notadas e as mais difíceis de serem repelidas. Não perguntaremos agora em que esses preconceitos vulgares possuem o seu fundamento e em que medida eles possuem o seu próprio direito no interior do ser-aí cotidiano. Procuraremos tornar de início compreensível uma interpretação equivocada da INTENCIONALIDADE que se funda precisamente na visão ingênua e natural das coisas. Neste caso, nós nos orientaremos uma vez mais pelo caráter intencional da percepção. GA24MAC: §9

Não obstante, nessa caracterização da INTENCIONALIDADE como uma relação entre dois entes presentes à vista, entre um sujeito psíquico e um objeto físico, perde-se fundamentalmente de vista tanto a essência quanto o modo de ser da INTENCIONALIDADE. O fato de se perder de vista a essência e o modo de ser da INTENCIONALIDADE acontece porque a [93] interpretação considera a relação intencional como algo que só se mostra respectivamente para o sujeito com base no imergir da presença à vista de um objeto. Temos aí implicada a opinião de que em si, como um sujeito psíquico isolado, esse sujeito é sem INTENCIONALIDADE. Em contraposição a isso, é importante ver que a relação intencional não surge por meio da aparição de um objeto para um sujeito, tal como a distância entre dois corpos presentes à vista, por exemplo, só surge e se acha presente quando um ente presente à vista se mostra para um outro ente presente à vista. A relação intencional com o objeto não toca ao sujeito com e por meio da presença à vista do objeto, mas o sujeito é em si estruturado de maneira intencional. Como sujeito, ele está dirigido extaticamente para... Suponhamos que alguém é tomado por uma alucinação. Alucinadamente, ele vê agora aqui, nesse auditório, que elefantes estão se movimentando. Ele percebe esses objetos, apesar de eles não estarem presentes à vista. Ele os percebe, ele está dirigido perceptivamente para eles. Temos aqui um estar dirigido perceptivamente para objetos, sem que esses objetos estejam presentes à vista. Eles lhe são dados, assim dizemos nós que não somos ele, de maneira puramente ilusória como presentes à vista. Esses objetos, contudo, em meio à alucinação, não podem ser dados senão de maneira ilusória, porque sua percepção sob o modo da alucinação é enquanto tal de tal modo que, nessa percepção, algo pode vir ao encontro – porque o perceber é em si mesmo um comportar-se em relação a, uma relação com o objeto, quer ele seja efetivamente real ou esteja apenas ilusoriamente presente à vista. Somente porque a percepção alucinada possui em si mesma o caráter do estar-dirigido-para, o alucinado pode visar algo de maneira ilusória. Só posso apreender algo de maneira ilusória se uiso efetivamente como aquele que apreende. Somente então o visar pode acolher a modificação do caráter ilusório. A relação intencional não surge apenas por meio da presença efetivamente real dos objetos, ela reside na própria percepção, quer seja isenta de enganos, quer se engane. O perceber precisa ser um perceber algo para que eu possa me iludir sobre algo. GA24MAC: §9

[94] Assim, fica claro o seguinte: o discurso acerca da relação da percepção com um objeto é ambíguo. Ele pode significar: a percepção como algo psíquico no sujeito presente à vista encontra-se em uma relação com um objeto presente à vista, que está ela mesma presente à vista com base nesses dois entes presentes à vista. Essa relação apresenta-se e cessa, por conseguinte, juntamente com a presença à vista dos membros da relação. Ou, contudo, o discurso acerca da “relação da percepção com um objeto” pode significar: a percepção é em si mesma, segundo a sua estrutura, constituída por meio dessa relação, quer isso com o que ela se relaciona esteja ou não presente à vista como objeto. O segundo significado da percepção de um objeto já toca mais o elemento peculiar da INTENCIONALIDADE. A expressão “relação da percepção” não visa uma relação, na qual a percepção primeiro entra em cena como um ponto referencial uno, que cabe à percepção em si mesma livre de relações, mas a uma relação que é o próprio perceber enquanto tal. Essa relação, que nós designamos com o termo INTENCIONALIDADE, é o caráter relacionai a priori daquilo que nós denominamos comportar-se. GA24MAC: §9

Como estrutura dos próprios comportamentos, a INTENCIONALIDADE é uma estrutura do sujeito que se comporta. Sob o modo de ser do sujeito que se comporta, ela é o caráter relacionai dessa relação. Ela pertence à essência dos comportamentos, de tal modo que o discurso sobre o comportamento intencional já é um pleonasmo e equivale, por exemplo, a quando digo: um triângulo no espaço. Inversamente, enquanto a INTENCIONALIDADE não é vista como tal, os comportamentos são pensados de maneira confusa, sem a ideia de espaço correspondente, que se encontra à sua base e que os possibilita. GA24MAC: §9

O resultado da clarificação até aqui foi: a INTENCIONALIDADE não é uma relação objetiva presente à vista entre dois [95] entes presentes à vista, mas, como o caráter relacionai do comportamento, uma determinação do sujeito. Os comportamentos são comportamentos tais do eu. Costuma-se chamá-los também as vivências do sujeito. As vivências são intencionais e pertencem, consequentemente, ao eu; ou, como se diz de maneira erudita, elas são imanentes ao sujeito, elas pertencem à esfera subjetiva. O sujeito, porém, e suas vivências, segundo uma convicção metodológica geral da filosofia moderna desde Descartes, são de início a única coisa que é dada para o sujeito, para o próprio eu, de maneira indubitavelmente certa. Levanta-se a questão: como é que esse eu, com as suas vivências intencionais, pode sair da esfera das vivências e assumir uma relação com o mundo presente à vista? Como é que o eu pode transcender a sua própria esfera e as vivências intencionais aí encerradas e no que consiste essa transcendência? Mais exatamente, é preciso perguntar: o que é que a estrutura intencional das vivências contribui para o esclarecimento filosófico da transcendência? Pois a INTENCIONALIDADE designa uma relação do sujeito com o objeto. Escutamos, porém, que a INTENCIONALIDADE é uma estrutura das vivências e pertence, com isso, à esfera subjetiva. Assim, o dirigir-se para... intencional também parece permanecer no interior da esfera subjetiva e, considerado por si, não contribuir em nada para o esclarecimento da transcendência. Como é que saímos das vivências intencionais que se acham dentro, no sujeito, para as coisas que se encontram fora como objetos? Em si, diz-se, as vivências intencionais como pertencentes à esfera subjetiva só se relacionam de maneira imanente com o que é imanente a essa esfera. As percepções como algo psíquico dirigem-se para sensações, imagens representativas, resíduos da memória e determinações, que o pensar do mesmo modo imanente ao sujeito acrescenta ao que é dado de início subjetivamente. Com isso o problema filosófico supostamente central precisa ser formulado antes de tudo: Como é que as vivências e aquilo para o qual elas se dirigem como vivências intencionais, o elemento subjetivo das sensações, as representações, relacionam-se com o objetivo? GA24MAC: §9

Esse questionamento também parece plausível e necessário, uma vez que nós mesmos dissemos: as vivências, que [96] devem ter o caráter da INTENCIONALIDADE, pertencem à esfera subjetiva. A questão seguinte para inevitável: Como é que as vivências intencionais que pertencem à esfera subjetiva se relacionam com o objeto? Por mais plausível que esse questionamento pareça e por mais difundido que ela possa se achar, até mesmo no interior da fenomenologia e das correntes do novo realismo epistemológico que se encontram próximas dela, por exemplo, no interior da concepção de Nicolai Hartmann, essa interpretação da INTENCIONALIDADE desconhece esse fenômeno. Ela o desconhece porque a teoria se mostra para ela como o que há de primeiro, antes mesmo do cumprimento da exigência de abrir os olhos e de tomar os fenômenos, contra todas as teorias solidamente enraizadas e apesar delas, tal como eles se dão, isto é, de orientar (retificar) a teoria pelos fenômenos e não o inverso, violentar os fenômenos por meio de uma teoria previamente concebida. GA24MAC: §9

Onde se encontra o foco da segunda interpretação falsa da INTENCIONALIDADE a ser agora clarificada? Dessa vez, ele não se encontra como no primeiro caso citado no caráter da intentio, mas do intentum, daquilo para o que se dirige o comportamento, em nosso caso a percepção. Diz-se: a INTENCIONALIDADE é um caráter das vivências. Essas vivências pertencem à esfera do sujeito. O que podería ser mais natural e lógico do que concluir agora: consequentemente, aquilo para o que se dirigem as vivências intencionais também precisa ser ele mesmo subjetivo. Porém, por mais natural e lógica que essa conclusão possa parecer e por mais crítica e precavida que possa se mostrar essa caracterização das vivências intencionais e daquilo para o que elas se dirigem, trata-se aqui, de qualquer modo, de uma teoria na qual as pessoas fecham os olhos para os fenômenos e não deixam que eles mesmos prestem contas. GA24MAC: §9

Aquilo para o que a percepção, segundo o seu sentido, está dirigida é o próprio percebido. O que reside nessa apresentação não obnubilada por teorias? Nada menos do que o fato de que o modo de formulação da questão acerca de como as vivências intencionais subjetivas podem se relacionar, por seu lado, com algo objetivamente presente à vista está fundamentalmente equivocado. Não posso, nem tenho o direito de perguntar: Como é que a vivência intencional interior chega a um fora? Não posso, nem tenho o direito de levantar a pergunta assim, porque o próprio comportamento intencional enquanto tal já se relaciona com algo presente à vista. Não preciso perguntar inicialmente como é que a [98] vivência intencional imanente recebe uma validade transcendental, mas o importante é ver que é precisamente a INTENCIONALIDADE, e nada além dela, em que consiste a transcendência. Com isso, a INTENCIONALIDADE e a transcendência não se encontram suficientemente clarificadas, mas se conquista inversamente o modo de formulação da questão que corresponde ao próprio conteúdo material, porque esse modo é haurido desse conteúdo. A concepção usual da INTENCIONALIDADE desconhece aquilo para o que se dirige – no caso da percepção – o perceber. Juntamente com isso, ela também desconhece a estrutura do dirigir-se-para, a intentio. A interpretação falsa reside em uma subjetivação às avessas da INTENCIONALIDADE. Estabelece-se um eu, um sujeito, e deixa-se que vivências intencionais pertençam à sua assim chamada esfera. O eu é aqui algo dotado de uma esfera, na qual são por assim dizer encapsuladas suas vivências intencionais. A partir de agora mostra-se para nós que os comportamentos intencionais mesmos constituem o transcender. Daí se segue que a INTENCIONALIDADE não pode ser mal interpretada com base em um conceito arbitrário de sujeito e de eu tanto quanto de uma esfera subjetiva e tomada como ensejo para um problema às avessas da transcendência, mas que se precisa determinar inversamente com base no caráter imparcialmente visto da INTENCIONALIDADE e de sua transcendência pela primeira vez o sujeito em sua essência. For conta da cisão usual de um sujeito com a sua esfera imanente e de um objeto com a sua esfera transcendente – por conta em geral do fato de a diferença entre um dentro e um fora ser construtiva e dar constantemente ensejo a outras construções –, não falaremos mais futuramente de um sujeito, de uma esfera subjetiva, mas compreenderemos o ente ao qual os comportamentos intencionais pertencem como ser-aí; e, em verdade, de tal modo que, com o auxílio do comportamento intencional corretamente compreendido, procuraremos caracterizar de maneira adequada precisamente o ser do ser-aí, uma de suas constituições fundamentais. Dizer que os comportamentos do ser-aí são intencionais significa dizer que o modo de ser de nosso si próprio, do ser-aí, é de acordo com sua essência de tal modo [99] que esse ente, na medida em que ele é, já se mantém sempre a cada vez junto a algo presente à vista. A ideia de um sujeito que só possui em sua esfera vivências intencionais e ainda não se acha fora, mas fechado em sua cápsula, é um disparate, que desconhece a estrutura fundamental ontológica do ente que nós mesmos somos. Se nós, tal como observamos anteriormente, denominamos de maneira sintética o modo de ser do ser-aí como existência, é preciso que se diga: o ser-aí existe e nunca se encontra presente à vista como uma coisa. Um caráter diferenciador entre existente e presente à vista já se acha precisamente na INTENCIONALIDADE. O ser-aí existe significa entre outras coisas que ele é de tal modo que ele se comporta, sendo, em relação a algo presente à vista, não como algo subjetivo. Uma janela, uma cadeira, em geral qualquer ente presente à vista no sentido mais amplo possível, nunca existem, porque eles não podem se comportar em relação ao ente presente à vista sob o modo do dirigir-se intencional para. Algo presente à vista não é um ente presente à vista senão entre outros entes presentes à vista. GA24MAC: §9

Com isso, tomamos apenas um primeiro impulso para protegermos o fenômeno da INTENCIONALIDADE das mais toscas incompreensões e para o visualizarmos aproximadamente. Esse é o pressuposto para que possamos transformar a INTENCIONALIDADE em problema, tal como procuraremos fazer na segunda parte da preleção. GA24MAC: §9

De saída, temos o intuito de clarificar fundamentalmente o fenômeno da percepção, rejeitando, no que concerne à INTENCIONALIDADE, duas incompreensões naturais e tenazes. Resumamos as duas interpretações equivocadas. Em primeiro lugar, contra a objetivação às avessas, é preciso dizer: a INTENCIONALIDADE não é uma relação presente à vista entre entes presentes à vista, um sujeito e um objeto, mas uma estrutura que constitui o caráter relacionai do comportamento do ser-aí enquanto tal. Em segundo lugar, é preciso contrapor à subjetivação às avessas o seguinte: a estrutura intencional não é algo que seja imanente ao assim chamado sujeito e que carecería em primeiro lugar da transcendência. Ao contrário, a constituição intencional dos comportamentos do [100] ser-aí é precisamente a condição de possibilidade ontológica de toda e qualquer transcendência. Transcendência, transcender, pertencem à essência do ente, que (com base nela) existe como um ente intencional, isto é, que existe sob o modo do manter-se junto ao ente presente à vista. A intencionalidade é a ratio cognoscendi da transcendência. Essa é a ratio essendi da INTENCIONALIDADE em seus diversos modos de ser. GA24MAC: §9

A partir dessas duas definições vem à tona o seguinte: a INTENCIONALIDADE não é nem algo objetivo, presente à vista como um objeto, nem algo subjetivo no sentido de algo que ocorrería no interior do assim chamado sujeito, cujo modo de ser permanece completamente indeterminado. Intencionalidade não é nem objetiva, nem subjetiva no sentido usual, mas antes as duas coisas ao mesmo tempo em um sentido muito mais originário, na medida em que a INTENCIONALIDADE, pertencente à existência do ser-aí, possibilita o fato de esse ente, o ser-aí, assumir, existindo, um comportamento em relação a algo presente à vista. Com a interpretação suficiente da INTENCIONALIDADE, o conceito tradicional do sujeito e da subjetividade torna-se questionável; e não apenas aquilo que a psicologia compreende por sujeito, mas também aquilo que ela precisa pressupor tacitamente enquanto ciência positiva sobre a ideia e a constituição do sujeito e que a filosofia mesma só determinou até aqui de maneira extremamente imperfeita e deixou no escuro. Mesmo o conceito filosófico tradicional do sujeito é determinado insuficientemente com vistas à constituição fundamental da INTENCIONALIDADE. Não se pode decidir algo sobre a INTENCIONALIDADE a partir de um conceito de sujeito, porque essa INTENCIONALIDADE é a estrutura essencial, ainda que não seja a estrutura mais originária do próprio sujeito. GA24MAC: §9

Em face das assim chamadas interpretações falsas, não é autoevidente o que se tem em vista com o discurso tradicional acerca do fato de a percepção se relacionar com algo percebido. O fato de se falar hoje com tanta frequência sobre INTENCIONALIDADE a partir da influência da fenomenologia ou de se introduzir um outro termo para tanto ainda não prova que [101] se viu fenomenologicamente o fenômeno que é assim designado. O fato de os comportamentos: representação, juízo, pensamento, vontade serem estruturados intencionalmente não é um princípio que se possa notar e saber, a fim de retirar daí, por exemplo, conclusões, mas é uma indicação para nos conscientizarmos do que se tem em vista com isso, a estrutura dos comportamentos, para nos assegurarmos constantemente de maneira nova da correção desse enunciado junto aos fenômenos. GA24MAC: §9

As interpretações falsas não são casuais. Elas também não estão fundamentadas exclusiva e primariamente em uma superficialidade do pensamento e da confrontação filosófica. Ao contrário, elas têm o seu fundamento na concepção natural das próprias coisas, tal como essas se encontram no ser-aí segundo a sua essência. De acordo com isso, o ser-aí tem a tendência de conceber todo ente, seja esse ente algo presente à vista no sentido da natureza, seja ele dotado do modo de ser do sujeito, de saída no sentido de algo presente à vista; compreendo-o como presença à vista. Essa é a tendência fundamental da ontologia antiga, que até hoje ainda não foi superada, porque ela pertence concomitantemente à compreensão de ser e ao modo da compreensão de ser do ser-aí. Na medida em que nessa concepção de tudo o que é dado como algo presente à vista a INTENCIONALIDADE não tem como ser encontrada como relação no interior das coisas presentes à vista, é preciso atribuí-la aparentemente ao sujeito; se ela não é nada objetivo, então ela é algo subjetivo. Também se concebe aqui uma vez mais o sujeito a partir da mesma indeterminação de seu ser como um ente presente à vista, tal como esse se mostra no cogito sum de Descartes. Assim, quer a apreendamos objetiva ou subjetivamente, a INTENCIONALIDADE permanece algo que está de algum modo presente à vista. Em contrapartida, é precisamente com o auxílio da INTENCIONALIDADE e da peculiaridade de que ela não é nada nem objetivo, nem subjetivo, que precisamos nos colocar em um estado de perplexidade e perguntar: Com base nesse fenômeno que não é nem objetivo, nem subjetivo, o ente ao qual ela evidentemente pertence não precisa ser apreendido de uma maneira diversa da que tinha se dado até aqui? GA24MAC: §9

[140] Nós perguntamos por isso: Como é que esse caráter do ter sido percebido de um ente percebido se relaciona com aquilo que dissemos até aqui sobre a constituição intencional em geral? Ter sido percebido é uma percepção do percebido. Como é que ele pertence ao percebido? Podemos alcançar por meio da análise do ter sido percebido daquilo que é efetivamente real o sentido da realidade efetiva desse ente efetivamente real? Orientados pela INTENCIONALIDADE da percepção, precisamos dizer: a percepção constitutiva de um percebido recai evidentemente no intentum, isto é, naquilo para o que se dirige a percepção. Precisamos continuar acompanhando inicialmente aquilo que significa o intentum da percepção. Já dissemos que residiría no sentido da direção intencional do perceber visar o percebido enquanto um ente em si mesmo presente à vista. O sentido da direção intencional do próprio perceber, quer esse perceber se engane ou não, aponta para algo presente à vista enquanto presente à vista. Perceptivamente, eu me encontro dirigido para aquela janela lá como essa coisa de uso determinado. A percepção possui uma conformidade com esse ente, com o ente presente à vista no sentido mais amplo possível. A janela serve ao mesmo tempo para a proteção e para a iluminação do auditório. A partir daquilo para que ela serve, a partir de sua serventia, está prelineada sua constituição, isto é, tudo aquilo que pertence à sua realidade determinada no sentido kantiano, à sua coisidade. De maneira cotidiana, podemos descrever ingenuamente esse ente presente à vista perceptivamente, assim como fazer enunciados pré-científicos, mas também científico-positivos sobre esse objeto. A janela está aberta, não está hermeticamente fechada, está bem na parede; a moldura é de tal e tal cor, tem tal e tal espessura. O que assim encontramos junto a esse ente presente à vista são por um lado determinações que lhe pertencem como coisa de uso ou, como também dizemos, como utensílio-, por outro lado também há determinações como dureza, peso, extensão, que não são próprias à “janela qua janela”, mas como pura coisa material. Podemos encobrir os caracteres utensiliares que vêm ao encontro inicialmente na lida natural com tais coisas como a [105] janela, caracteres que constituem o seu caráter de uso, considerando a janela apenas como coisa presente à vista. Nos dois casos, porém, quer consideremos ou descrevamos a janela como coisa de uso, como utensílio ou como pura coisa natural, já compreendemos de certo modo o que significa utensílio e o que significa coisa. Na lida natural com o utensílio, com o instrumento, com o instrumento de medida, nós compreendemos algo assim como utensiliaridade, e nós compreendemos, ao encontrarmos coisas materiais, algo assim como a coisidade. Buscamos, porém, o ter sido percebido do percebido. Dentre todas as determinações de coisa que constituem o caráter de utensílio do percebido, mas também dentre todas as determinações que pertencem ao caráter universal de coisa do ente presente à vista, não encontramos seu caráter de percebido, que ele de qualquer modo possui. Nós dizemos de qualquer forma: o presente à vista é o percebido. Portanto, o ter sido percebido também não é nenhum “predicado real”. Como é que ele pertence ao ente presente à vista? Pelo fato de que eu o percebo, o presente à vista não sofre evidentemente nenhuma mudança. Ele não experimenta nenhum acréscimo e nenhuma diminuição naquilo que ele é enquanto esse presente à vista. Ele não é de modo algum danificado e não se torna inútil por meio do perceber. Ao contrário, reside no sentido da apreensão perceptiva mesma precisamente descobrir o percebido de acordo com o modo como ele se mostra em si. Assim, o ter sido descoberto não é nada objetivo no objeto. Mas talvez, concluir-se-á, ele seja, então, algo subjetivo, não pertencente ao percebido, ao intentam, mas ao perceber, à intentio’? GA24MAC: §9

A questão é que, em meio à análise da INTENCIONALIDADE, já tínhamos colocado em questão a legitimidade dessa distinção usual entre sujeito e objeto, subjetivo e objetivo. O perceber como intencional recai tão pouco em uma esfera subjetiva que ele imediatamente transcende essa esfera, no momento mesmo em que se procura falar dela. O caráter de ter sido percebido talvez pertença ao comportamento intencional do ser-aí, isto é, ele não é nada subjetivo e também não é nada objetivo, ainda que sempre precisemos insistir uma vez [106] mais: o ente percebido, o presente à vista, é percebido, tem o caráter do ter sido percebido, uma construção estranha e enigmática é esse ter sido percebido; pertence em certo sentido ao objeto, ao percebido, e, contudo, não é nada objetivo, pertence ao ser-aí e à sua existência intencional e, no entanto, não é nada subjetivo. É sempre importante aguçar uma vez mais a máxima metodológica da fenomenologia de não fugir prematuramente da enigmaticidade dos fenômenos e de não afastar essa enigmaticidade por meio de um ato de violência próprio a uma teoria ousada, mas antes intensificá-la. É somente assim que ela se torna palpável e concebível, isto é, compreensível e tão concreta que, a partir da própria coisa enigmática, saltam e vêm ao nosso encontro as indicações para a dissolução do fenômeno. No que se refere ao ter sido percebido, mas também, como ainda se mostrará, no que se refere, correspondentemente, a outros caracteres, levanta-se o problema: Como é que algo pode pertencer em certa medida ao ente presente à vista, sem ser um ente presente à vista, e pertencer ao mesmo tempo como um ente presente à vista ao ser-aí, sem significar algo subjetivo? Ainda não resolveremos esse problema agora. Por enquanto, nós iremos apenas acentuá-lo, a fim de mostrar na segunda parte que o esclarecimento da possibilidade de um tal fenômeno enigmático reside na essência do tempo. GA24MAC: §9

[107] Com a referência ao fato de que a percepção se refere a algo percebido, a percepção ainda não se acha suficientemente demarcada ante a mera representação, ante o mero trazer algo à mente. A mera representação também se relaciona com algo, com um ente, de um modo determinado e, tal como a percepção, também pode se relacionar com algo presente à vista. Assim, posso trazer agora à mente a estação de trem de Marburgo. Nesse caso, não me refiro a uma representação e não viso nada representado, mas a estação de trem como algo presente à vista. Não obstante, nesse puro trazer à mente, esse ente presente à vista é concebido e dado de uma maneira diversa do que na percepção imediata. Essas diferenças essenciais entre a INTENCIONALIDADE e o intentum não nos interessam aqui. GA24MAC: §9

Nós perguntamos: O que pertence a um descobrir de um ente, em nosso caso ao descobrir perceptivo de algo presente à vista? O modo do descobrir e o modo da descoberta de algo presente à vista precisam ser evidentemente determinados pelo ser descoberto por eles e por seu modo de ser. Não tenho como perceber relações geométricas no sentido da percepção natural, sensível. Mas como é que o modo do descobrir deve ser normatizado e predelineado por assim dizer pelo ente a ser descoberto e por seu modo de ser, se não de tal maneira que o ente mesmo já se encontre anteriormente descoberto, para que o modo da apreensão se oriente (se retifique) por ele? Por outro lado, esse descobrir deve tomar por medida, por sua vez, o ente a ser descoberto. O modo da descoberta possível do ente presente à vista na percepção já precisa ser ele mesmo predelineado no próprio perceber, isto é, o descobrir perceptivo de algo presente à vista já precisa [108] compreender desde o princípio algo assim como a presença à vista. Na intentio do perceber, já precisa residir previamente algo do gênero da compreensão da presença à vista. Essa é simplesmente uma exigência a priori, que precisamos apresentar, uma vez que de outro modo permanecería incompreensível o descobrir perceptivo de algo presente à vista, ou é possível mostrar que, na INTENCIONALIDADE da percepção, isto é, no descobrir perceptivo, reside algo do gênero do compreender da presença à vista’? Não é apenas possível mostrar isso. Nós já o mostramos, dito de maneira mais cautelosa, nós já fizemos uso dessa compreensão da presença à vista que pertence à INTENCIONALIDADE da percepção, sem termos caracterizado expressamente até aqui essa estrutura. GA24MAC: §9

Em meio à primeira caracterização do intentum, daquilo pelo que a percepção se orienta (se retifica), o que importava era mostrar, em relação às falsas interpretações subjetivistas segundo as quais a percepção só se orientaria (se retificaria) de início por algo subjetivo, ou seja, por sensações, que a percepção está dirigida para o próprio ente presente à vista. Nessa ocasião dissemos que, para ver isso, não precisávamos senão inquirir a tendência de apreensão que se encontra na própria percepção ou seu sentido direcional. De acordo com o seu sentido direcional, a percepção tende intencionalmente para algo presente à vista em sua presença à vista. Isso pertence ao seu sentido direcional, ou seja, a intentio está dirigida para a descoberta do presente à vista em sua presença à vista. Nela mesma já reside uma compreensão de presença à vista, ainda que apenas uma compreensão pré-conceitual. Nessa compreensão está desvelado aquilo que significa presença à vista, está aberto, nós dizemos descerrado. Falamos do descerramento dado na compreensão da presença à vista. Essa compreensão da presença à vista reside previamente como compreensão pré-conceitual na intentio do descobrir perceptivo enquanto tal. Esse “prévio” não tem em vista o fato de que eu precisaria, para perceber algo presente à vista, para descobri-lo, clarificar anteriormente para mim o sentido de presença à vista. O compreender prévio de presença à vista não é prévio na ordem do tempo do relógio, tempo esse [109] que é por nós medido. O caráter prévio da compreensão da presença à vista que pertence ao descobrir perceptivo significa muito mais inversamente: essa compreensão de presença à vista, realidade efetiva no sentido kantiano, é tão prévia, isto é, pertence a tal ponto ao comportamento perceptivo, que não preciso de modo algum realizá-lo primeiramente de maneira expressa, mas reside, tal como veremos, na constituição fundamental do ser-aí mesmo o fato de ele, existindo, também já compreender o modo de ser do ente presente à vista, em relação ao qual ele se comporta existindo; abstraindo-nos completamente de saber até que ponto esse ente presente à vista é descoberto e se ele é ou não descoberto de maneira suficiente e apropriada. Não pertencem à INTENCIONALIDADE da percepção apenas intentio e intentum, mas para além disso a compreensão do modo de ser daquilo para que se tende no intentum. GA24MAC: §9

Posteriormente nos ocuparemos em saber como essa compreensão prévia e pré-conceitual da presença à vista (realidade efetiva) reside na descoberta do ente presente à vista – o que esse residir significa e como ele é possível. Agora, a única coisa que importa é efetivamente ver que o comportamento descobridor em relação ao ente presente à vista se mantém em uma compreensão de presença à vista e que pertence a esse comportamento, isto é, à existência do ser-aí, o descerramento de presença à vista. Essa é a condição de possibilidade para que o ente presente à vista possa ser descoberto. A possibilidade da descoberta, isto é, a perceptibilidade de algo presente à vista, pressupõe o descerramento da presença à vista. No que concerne à sua possibilidade, o ter sido percebido funda-se na compreensão da presença ã vista. Assim, somente quando tivermos trazido de volta o ter sido percebido do percebido para os seus fundamentos, isto é, somente quando tivermos analisado essa compreensão de presença à vista mesma que pertence à INTENCIONALIDADE da percepção, estaremos em condições de clarificar o sentido da presença à vista assim compreendida, ou, dito em termos kantianos, o sentido de ser-aí e existência. GA24MAC: §9

[110] Sem que tenha clareza quanto a isso, é a essa compreensão de ser que Kant manifestamente recorre, quando ele diz que ser-aí, realidade efetiva, seria igual à percepção. Sem que venhamos já a dar a resposta à pergunta sobre como seria preciso interpretar a realidade efetiva, precisamos manter presente para nós o fato de que, ante a interpretação kantiana de que realidade efetiva é igual à percepção, uma profusão de estruturas e momentos estruturais daquilo ao que Kant no fundo recorre se oferece. De início, deparamo-nos com a INTENCIONALIDADE. A essa INTENCIONALIDADE pertence não apenas intentio e intentum, mas de maneira igualmente originária um modo do ter sido descoberto do intentum. Ao ente, que é percebido na percepção, contudo, não pertence apenas o fato de ele ser descoberto, o ter sido descoberto do ente, mas também o fato de o modo de ser do ente descoberto ser compreendido, isto é, descerrado. Por isso, não cindimos apenas terminologicamente, mas também por razões materiais entre o ter sido descoberto de um ente e o descerramento de seu ser. O ente só pode ser descoberto, seja pela via da percepção, seja por algum outro modo de acesso, se o ser do ente já se encontrar descerrado – se eu o compreendo. Somente então posso perguntar se ele real e efetivamente é ou não e posso pôr mãos à obra para de alguma maneira constatar a realidade efetiva do ente. Precisamos conseguir, agora, expor mais exatamente a conexão entre o ter sido descoberto do ente e o descerramento de seu ser, mostrando como o descerramento (desvelamento) do ser funda, isto é, fornece o fundamento para a possibilidade do ter sido descoberto do ente. Formulado de outro modo, precisamos conseguir apreender conceitualmente a diferença entre ter sido descoberto e descerramento e apreendê-la conceitualmente como uma diferença possível e necessária, concebendo do mesmo modo, porém, também a unidade dos dois. Nisso reside ao mesmo tempo a possibilidade de apreender a diferença entre o ente descoberto no ter sido descoberto e o ser descerrado no descerramento, isto é, fixando a diferenciação entre ser e ente, a diferença ontológica. Na esteira do problema kantiano, chegamos à questão acerca da diferença [111] ontológica. Somente na medida em que resolvermos esse problema ontológico fundamental, conseguiremos não apenas fundamentar positivamente a tese kantiana de que o “ser não é nenhum predicado real”, mas ao mesmo completá-la positivamente por meio de uma interpretação radical do ser em geral como presença à vista (realidade efetiva, ser-aí, existência). GA24MAC: §9

Vemos agora que manifestamente a possibilidade de expor a diferença ontológica está em conexão com a necessidade de investigar a INTENCIONALIDADE, isto é, o modo de acesso ao ente. Com isso, porém, não se está dizendo que o modo de acesso a todo e qualquer ente seria representado pela percepção em sentido kantiano. GA24MAC: §9

A clarificação prévia da INTENCIONALIDADE conduziu-nos mais longe. Ela nos levou até a diferença na constituição ontológica do objetivamente ente e na constituição ontológica do elemento subjetivo ou do ser-aí, que existe. Evidentemente, essa distinção entre o ente que nós mesmos somos e o ente que não somos, dito formalmente em termos fichtianos, entre o eu e o não eu, não é nenhuma distinção casual, mas uma distinção tal que já precisa se impor de algum modo à consciência vulgar e em torno da qual a filosofia se empenha desde os seus primórdios. Nós a discutiremos na terceira tese, de modo que a conexão da primeira tese com a quarta e a terceira já fique clara. GA24MAC: §9

Por conseguinte, na estrutura especificamente intencional do produzir, isto é, em sua compreensão de ser, reside um caráter peculiar de liberação e de deixar livre ante aquilo em relação ao que esse comportamento se comporta. De maneira correspondente, o ter sido produzido (realidade efetiva como o efetivado) encerra em si, em verdade, uma ligação com o ser-aí produtor, mas precisamente uma ligação tal que, de acordo com o seu próprio sentido ontológico, compreende o produzido como liberado para ele mesmo e, assim, como sendo em si. Algo como a INTENCIONALIDADE caracterizada e como o modo que lhe é peculiar da compreensão de ser precisa ser visto simplesmente com olhos que não estejam cegados ou extraviados por nenhuma teoria do conhecimento. Por mais que os conceitos possam ser rigorosamente lógicos, quando eles são cegos não servem para nada. Ver de maneira imparcial algo como uma tal estrutura intencional do produzir e interpretá-la na análise, torná-la acessível para si e retê-la, ajustando a formação conceitual ao que foi assim retido e visto – esse é o sentido sóbrio da assim chamada visão fenomenológica das essências, algo que já deu ensejo a tanto falatório. Quem obtém suas informações sobre fenomenologia do Vossische Zeitung ou do Uhu deve estar convencido de que a fenomenologia seria algo assim como uma mística, algo assim como a “lógica da contemplação indiana do umbigo”. Isso não é para rir, uma vez que essa posição circula entre pessoas que querem ser levadas a sério. GA24MAC: §12

O que tentamos trazer à luz assim por meio da análise fenomenológica em relação à estrutura intencional não é algo imaginado e inventado, mas já se encontra no comportamento produtivo cotidiano e pré-filosófico do ser-aí. O ser-aí vive produtivamente em uma tal compreensão de ser, sem que conceba essa compreensão ou a apreenda enquanto tal. Por isso, não foi por acaso que a ontologia antiga em sua ingenuidade específica se orientou em um bom sentido por esse comportamento cotidiano e natural, uma vez que tende a surgir por si mesmo no comportamento produtivo para o ser-aí um comportamento em relação ao ente, no interior do qual o ser em si do ente é imediatamente compreendido. Ora, mas essa interpretação do ser do ente como um produzido não encerra em si uma unilateralidade insuportável? Todos os entes podem ser concebidos como produzidos e os conceitos ontológicos podem ser conquistados e fixados com vistas ao comportamento produtivo? Nem tudo aquilo que dizemos que é ganha o ser por meio do ser-aí produtor. Precisamente aquele ente que os gregos transformaram primordialmente em ponto de partida e em tema de suas investigações [171] ontológicas, o ente como natureza e como cosmos, não é, de qualquer modo, produzido pelo ser-aí produtor. Como é que a ontologia grega orientada primariamente pelo cosmos pode ter compreendido o ser do cosmos a partir do produzir, uma vez que justamente a Antiguidade não conhece algo assim como criação e produção do mundo, mas está muito mais convencida da eternidade do mundo? Para ela, o mundo é o aei ón, o já sempre presente à vista, agenetos, anolethros, inengendrado e imperecível. Em face desse ente, do cosmo, o que pode significar a referência ao produzir? Não fracassa aqui a nossa interpretação de ousia, eivai, existere como presença à vista e ter sido produzido? Essa interpretação não seria em todo caso não grega, por mais que ela possa se mostrar como consistente? Se nos dermos por vencidos com tais argumentos e admitirmos que o comportamento produtivo evidentemente não poderia ser o horizonte-diretriz para a ontologia antiga, então revelaremos com essa confissão que, apesar da análise agora mesmo realizada da INTENCIONALIDADE do produzir, esse produzir ainda não foi visto de maneira suficientemente fenomenológica. Na compreensão de ser própria ao comportamento produtivo, esse comportamento liberta como um ligar-se a algo precisamente aquilo com o que ele se liga. Parece que só o ente que é produzido poderia ser compreendido nesse sentido. A questão é que essa é apenas uma aparência. GA24MAC: §12

A caracterização da análise kantiana da personalidade e a discussão crítica dessa caracterização deveria deixar claro precisamente o fato de não ser de maneira alguma óbvio alcançar a constituição ontológica do sujeito ou mesmo apenas perguntar sobre ela da forma correta. No que concerne ao aspecto ôntico, estamos maximamente próximos do ente [228] que nós mesmos somos e do ente que denominamos ser-aí; pois nós mesmos somos esse ente. Mão obstante, esse elemento onticamente mais próximo é em termos ontológicos precisamente o que há de mais distante. Descartes intitula a segunda de suas Meditações metafísicas “De natura mentis humanae: quod ipsa sit notior quam corpus”, “Sobre a essência do espírito humano, sobre o fato de esse ser mais conhecido do que o corpo vivo e do que o corpo físico”. Apesar disso ou precisamente por causa desse caráter supostamente conhecido de maneira preferencial do sujeito, seu modo de ser é desconhecido e desconsiderado não apenas em Descartes, mas em todo o tempo subsequente, de tal modo que nenhuma dialética do espírito pode tornar retroativo uma vez mais este descuido. Em verdade, a cisão aguda entre res cogitans e res extensa parece garantir que, dessa maneira, precisamente o modo de ser próprio ao sujeito é alcançado. A questão é que sabemos por reflexões anteriores feitas por ocasião da discussão da primeira tese de que os comportamentos do ser-aí possuem caráter intencional, que o sujeito, com base na INTENCIONALIDADE, já se encontra em relação com aquilo que ele mesmo não é. GA24MAC: §15

Com essa determinação, a concepção subjetivista unilateral do conceito de sujeito já parece ter sido superada. Natorp diz: “Haveria por conseguinte três momentos no todo, que se acham concebidos de maneira una e estreita na expressão consciência (isto é, res cogitans): 1) O algo, de que [229] se está consciente; 2) Aquilo para o que algo é consciente ou aquilo que é consciente disto; 3) A relação entre os dois, o fato de alguma coisa ser consciente para alguém. Simplesmente em função do caráter sintético da designação, denomino o primeiro (o conscientizado) o conteúdo, o segundo o eu, o terceiro o fato de se ter consciência”. Com esta última expressão, com o fato de se ter consciência, Natorp parece ter em vista o mesmo que a fenomenologia designa com a INTENCIONALIDADE. Em termos formais, dizer isto é pertinente. Cima consideração mais próxima, porém, poderia mostrar que esse fato de se ter consciência para Natorp, tal como ele diz, é “algo irredutivelmente derradeiro” e que ele não pode, além disso, sofrer nenhuma modificação. Não há, segundo Natorp, nenhum modo diverso de se ter consciência de algo, mas toda diferença de consciência é diferença do conscientizado, do conteúdo. Segundo o seu conceito, a res cogitans é um eu ligado por meio do fato de ter consciência a um conteúdo consciente. Pertence ao eu a relação com o objeto e, inversamente, é próprio ao objeto a relação com um sujeito. A relação é uma correlação. GA24MAC: §15

No entanto, mesmo que não se admita a correção do ponto de partida junto a um sujeito isolado, mas se procure antes partir da relação sujeito-objeto, é preciso perguntar: Por que um sujeito “exige” um objeto e vice-versa? Pois algo presente à vista não se toma por si um objeto, para em seguida requisitar um sujeito, mas ele só se torna objeto na objetivação por meio de um sujeito. Clm ente é sem sujeito, mas só há objetos para um sujeito que o objetifica. Portanto, a existência da relação sujeito-objeto depende do modo de existência do sujeito. Mas por quê? Com a existência do ser-aí já está sempre a cada vez posicionada tal relação? O sujeito poderia de qualquer modo se privar da relação com objetos. Ou será que ele não poderia? Se não, então não é o objeto o responsável pelo fato de haver uma relação subjetiva com ele, mas articular-se pertence à constituição ontológica do próprio sujeito. Reside no conceito do sujeito se relacionar. O sujeito é nele mesmo algo que se relaciona. Nesse sentido, é necessário formular a questão acerca do ser do sujeito de tal modo que essa determinação essencial do relacionar-se-com, isto é, a INTENCIONALIDADE, seja copensada no conceito do sujeito, ou seja, de tal modo que a relação com o objeto não seja algo que se ache articulado ocasionalmente com o sujeito com base no estar casualmente presente à vista de um objeto. À existência do ser-aí pertence a INTENCIONALIDADE. Com a existência do ser-aí, já sempre se desvelou a cada vez de algum modo para esse ser-aí um ente e um nexo com o ente, sem que ele tenha sido expressamente objetivado. Existir significa, então, entre outras coisas: ser se comportando junto ao ente. Pertence à essência do ser-aí existir de tal modo que ele já sempre se encontra junto a um outro ente. GA24MAC: §15

Mas o que conquistamos com isso para o esclarecimento da existência do ser-aí? Ora, nós já nos encontramos anteriormente, por ocasião da exposição da INTENCIONALIDADE, junto ao fenômeno da percepção; e isto em meio à discussão da primeira tese. Lá, caracterizamos a INTENCIONALIDADE como determinada por intentio e intentum e, ao mesmo tempo, por meio do fato de pertencer a todo e qualquer comportamento intencional uma compreensão de ser do ente, com o qual esse comportamento se relaciona. Com isso, porém, deixamos em aberto a questão de saber como a compreensão de ser “pertence” ao comportamento intencional. Não perguntamos mais amplamente sobre isso depois da primeira caracterização da INTENCIONALIDADE, mas apenas dissemos que ela era enigmática. GA24MAC: §15

Agora, contudo, no contexto da questão acerca da interpretação do ser do sujeito, impõe-se a seguinte questão: Como é que se determina o eu por meio da INTENCIONALIDADE de todo e qualquer comportamento? Em meio às determinações anteriores da INTENCIONALIDADE, deixamos de lado o eu. Se INTENCIONALIDADE significa dirigir-se-para, então é manifestamente o eu que se encontra dirigido. Mas o que se tem em vista afinal por esse eu? Trata-se de um ponto ou de um centro ou, como também se diz na fenomenologia, um polo, do qual irradiam atos do eu? A questão decisiva se levanta uma vez mais: que modo de ser possui esse polo do eu? Temos efetivamente o direito de perguntar sobre um polo do eu? Temos o direito de, a partir do conceito formal de INTENCIONALIDADE, descerrar um dirigir-se para algo, um eu como suporte desse ato? Ou será que não precisamos perguntar fenomenologicamente de que maneira é dado ao próprio ser-aí o seu eu, o seu si mesmo, isto é, de que maneira o ser-aí é, existindo, ele mesmo, próprio em relação a si, próprio no sentido mais rigoroso do termo? O si mesmo, que o ser-aí é, está de algum [233] modo copresente em todos os comportamentos intencionais. A INTENCIONALIDADE pertence não apenas um dirigir-se para e não apenas compreensão de ser do ente, para o qual ele se dirige, mas também o ser concomitantemente desvelado do si mesmo, que se relaciona. O “dirigir-se intencionalmente para” não é simplesmente um brilho de um ato que emana de um centro egoico, que só ulteriormente precisaria ser ligado ao eu, de tal modo que esse eu se dirigiria de volta em um segundo ato ao primeiro (o primeiro dirigir-se-para). Ao contrário, pertence à INTENCIONALIDADE o codescerramento do si mesmo. Mas a questão persiste: De que maneira o si mesmo é dado? Não do modo como se poderia pensar em articulação com Kant, de tal forma que um eu-penso acompanharia todas as representações e seguiria junto com os atos dirigidos para algo presente à vista, ou seja, como um ato reflexivo, que estaria dirigido para o primeiro ato. Formalmente, o discurso acerca do eu como consciência de algo, que é ao mesmo tempo consciente de si mesmo, é irretocável, e a caracterização da res cogitans como cogito me cogitare, como autoconsciência, é correta. Essas determinações formais, no entanto, que fornecem o aparato para a dialética da consciência do idealismo, estão de qualquer maneira muito distantes de uma interpretação dos estados de fato fenomenais do ser-aí, isto é, do modo como esse ente se mostra para ele mesmo em sua existência fática, quando não se violenta o ser-aí com os conceitos preconcebidos de eu e de sujeito característico da epistemologia. GA24MAC: §15

O si mesmo que se reflete a partir das coisas não está “nas” coisas no sentido de que ele estaria presente à vista [237] entre elas ou junto a elas como se fosse uma parte delas. Se é que o si mesmo deve vir ao nosso encontro a partir das coisas, o ser-aí precisa estar de algum modo junto a elas. O modo de ser do ser-aí, sua existência, precisa tornar concebível o fato de que a maneira segundo a qual o reflexo afirmado do si mesmo impróprio é possível a partir das coisas. O ser-aí precisa estar junto às coisas. Também já ouvimos: os comportamentos do ser-aí, nos quais ele existe, são dirigidos intencionalmente para. O estar dirigido dos comportamentos expressa um ser junto àquilo com o que temos de lidar, um ter uma estada junto a, um acompanhamento das dações. Com certeza. No entanto, a INTENCIONALIDADE assim concebida não torna de qualquer modo concebível em que medida nós nos reencontramos nas coisas. O ser-aí não se transpõe de qualquer forma para a posição das coisas, nem se coloca como um ente de seu tipo em sua sociedade, a fim de se constatar lá ulteriormente como presente à vista. Com certeza não. Mas é apenas com base em uma “transposição” prévia que podemos retornar a partir das coisas até nós mesmos. A questão é somente como essa “transposição” precisa ser compreendida e como ela é possível a partir da constituição ontológica do ser-aí. GA24MAC: §15

Uma coisa é certa: o recurso à INTENCIONALIDADE dos comportamentos em relação às coisas não torna concebível o fenômeno com o qual nos ocupamos, ou, dito de maneira mais cautelosa, a única caracterização da INTENCIONALIDADE até aqui usual na fenomenologia se comprova como insuficiente e extrínseca. Por outro lado, porém, o ser-aí não se transpõe para as coisas de tal modo que saltaria para fora de uma esfera supostamente subjetiva e se lançaria para o interior de um círculo de objetos. Mas talvez ocorra uma “transposição” de um tipo próprio, de tal forma, em verdade, que poderíamos visualizar sua peculiaridade precisamente quando não deixamos desaparecer do campo de visão fenomenológico o fenômeno que se encontra em discussão do compreender a si mesmo impróprio. Como as coisas se encontram no que diz respeito a essa “transposição”, que afirmamos? GA24MAC: §15

Duas coisas são aqui importantes: por um lado, conceber da maneira mais radical a própria INTENCIONALIDADE e, em seguida, esclarecer o que ela tem em comum com a citada “transposição” do ser-aí para as coisas. Em outras palavras: O que precisamos compreender por aquilo que se costuma designar na filosofia como transcendência? Comumente se ensina na filosofia que transcendentes seriam as coisas, os objetos contrapostos. O que é, contudo, originariamente transcendente, isto é, o que originariamente transcende, não são as coisas em contraposição ao ser-aí, mas o transcendente em sentido rigoroso é o próprio ser-aí. A transcendência é uma determinação fundamental da estrutura ontológica do ser-aí. Ela pertence à existencialidade da existência. Transcendência é um conceito existencial. Mostrar-se-á que a INTENCIONALIDADE se funda na transcendência do ser-aí e só é unicamente possível sobre esta base – que não se pode inversamente esclarecer a transcendência a partir da INTENCIONALIDADE. A tarefa de trazer à luz a constituição ontológica do ser-aí leva de início à dupla tarefa em si una de interpretar os fenômenos da INTENCIONALIDADE e da transcendência de maneira mais radical. Em meio a essa tarefa de vislumbrar juntamente com a concepção originária da INTENCIONALIDADE e da transcendência uma determinação fundamental da existência do ser-aí em geral, deparamo-nos ao mesmo tempo com um problema central, que permaneceu desconhecido para toda a filosofia até aqui e que a enredou em aporias estranhamente insolúveis. Não podemos esperar solucionar o problema central em um único impulso, sim, não podemos nem mesmo tor-ná-lo suficientemente transparente como problema. GA24MAC: §15

Em quinto lugar: A característica do ser-no-mundo como uma estrutura fundamental do ser-aí deixa claro que todo comportar-se em relação ao ente intramundano, isto é, aquilo que designamos até aqui como o comportamento intencional em relação ao ente, está fundado na constituição fundamental do ser-no-mundo. Intencionalidade pressupõe a transcendência específica do ser-aí, mas a transcendência não pode ser esclarecida inversamente a partir do conceito até aqui concebido de maneira usual da INTENCIONALIDADE. GA24MAC: §15

Em sexto lugar: à INTENCIONALIDADE como comportamento em relação ao ente pertence respectivamente uma compreensão de ser do ente, ao qual a intentio se refere. A partir daí fica claro que essa compreensão de ser do ente está em conexão com a compreensão de mundo, que é pressuposta para a experiência de um ente intramundano. Ora, mas na medida então em que a compreensão de mundo – uma vez que o ser-no-mundo constitui uma determinação do ser-aí – é ao mesmo tempo um compreender a si mesmo do ser-aí, a [258] compreensão de ser pertencente à INTENCIONALIDADE abarca tanto o ser do ser-aí quanto o ser do ente intramundano que não possui o caráter de ser-aí. Isto significa: GA24MAC: §15

Não nos deteremos mais particularmente no nexo entre o fenômeno da INTENCIONALIDADE e a temporalidade ekstático-horizontal. A INTENCIONALIDADE – o estar-dirigido para algo e a copertinência que reside aí entre a intentio e o intentum –, que é designada pura e simplesmente na fenomenologia como o fenômeno originário derradeiro, tem a condição de sua possibilidade na temporalidade e em seu caráter ekstático-horizontal. O ser-aí só é intencional porque ele é determinado em sua essência pela temporalidade. Do mesmo modo, está em conexão com o caráter ekstático-horizontal a determinação essencial do ser-aí, o fato de ele em si mesmo transcender. Mostrar-se-á para nós em que medida estes dois caracteres, INTENCIONALIDADE e transcendência, estão em conexão com a temporalidade. Ao mesmo tempo, compreenderemos em que medida a ontologia, uma vez que transforma o ser em tema, é uma ciência transcendental. De início, porquanto não interpretamos expressamente a temporalidade a partir do ser-aí, precisamos nos familiarizar um pouco mais com esse fenômeno. [390] GA24MAC: §19

Nós sintetizamos nosso caminho na medida em que desenvolvemos retroativamente a exposição da temporialidade até aqui. A manualidade do à mão determina-se a partir de uma presença. A presença pertence enquanto esquema horizontal a um presente, o qual se temporaliza como ekstase na unidade de uma temporalidade, que possibilita no caso precedente a lida com o à mão. Pertence a este comportamento em relação ao ente uma compreensão de ser, porque a temporalização das ekstases – aqui a do presente – já sempre se projetou em si mesmo para o seu horizonte (presença). A possibilidade da compreensão de ser reside no fato de o presente como a possibilitação da lida com o ente como presente, como ekstase, ter o horizonte da presença. A temporalidade em geral é o projeto puro e simples de si mesmo ekstaticamente horizontal, com base no qual a transcendência do ser-aí é possível, transcendência essa na qual a constituição fundamental do ser-aí, o ser-no-mundo ou o cuidado, se enraiza. Essa constituição possibilita, por sua vez, a INTENCIONALIDADE. GA24MAC: §21

Nossa crítica dizia respeito ao conteúdo positivo da tese. Nós não a criticamos de tal maneira que contrapomos a esse conteúdo um assim chamado outro ponto de vista e apresentamos a partir daí objeções contra Kant. Ao contrário, o que estava em questão para nós inversamente aí era acompanhar sua tese e sua tentativa de interpretação do ser, perguntando em meio ao acompanhamento comprobatório o que a tese exige de acordo com o seu conteúdo em termos de um esclarecimento ulterior, se é que ela deve realmente permanecer sustentável como uma interpretação fundamentada a partir do próprio fenômeno. Ser é posição; a presença à vista ou, como Kant diz, a existência é posição ou percepção absolutas. Nós nos deparamos de início com uma plurissignificância característica na expressão “percepção”, segundo a qual ela significa: perceber, algo percebido e ter sido percebido. Essa plurissignificância não é casual, mas expressa um estado de fato fenomenal. Aquilo que designamos com o termo percepção tem em si mesmo uma estrutura tão multifacetada e una que possibilita essa designação plurissignificativa em diversos aspectos. O que é designado com a percepção é um fenômeno, cuja estrutura é determinada pela INTENCIONALIDADE. A INTENCIONALIDADE, o referir-se a algo, parecia à primeira vista ser algo trivial. O fenômeno, porém, revelou-se como enigmático, logo que reconhecemos claramente o fato de a compreensão correta desta estrutura ter de evitar duas inversões usuais, ainda não superadas mesmo na fenomenologia (o objetivismo invertido e o subjetivismo invertido). Intencionalidade não é nenhuma ligação presente à vista entre um sujeito presente à vista e um objeto presente à vista, mas uma constituição que determina o caráter de relação do comportamento do sujeito enquanto tal. Enquanto estrutura do comportamento do sujeito, ela não é algo imanente ao sujeito, que carecería ulteriormente de uma transcendência. Ao contrário, a transcendência e, com isso, a INTENCIONALIDADE pertencem à essência do ente, que se comporta intencionalmente. Intencionalidade não é nem algo objetivo, nem algo subjetivo no sentido tradicional. GA24MAC: §21

Além disso, conquistamos uma intelecção essencial ulterior sobre um momento que pertence essencialmente à [456] INTENCIONALIDADE. A ela pertencem não apenas intentio e intentum, mas toda intentio tem um sentido direcional, que precisa ser interpretado em ligação com a percepção como se segue: a presença à vista precisa ser anteriormente compreendida, se algo presente à vista deve ser passível de descoberta enquanto tal; no ter sido percebido do percebido reside já uma compreensão da presença à vista do que se acha presente à vista. GA24MAC: §21

Mesmo no que se refere ao ter sido percebido veio à tona o elemento enigmático que retornou na quarta tese: ter sido percebido é um modo do ter sido descoberto e desvelado, isto é, um modo da verdade. O ter sido percebido do percebido é uma determinação do ente presente à vista percebido e não possui, porém, o modo de ser desse ente, mas o modo de ser do ser-aí que percebe. Ele é de certa maneira objetivo, de certa maneira subjetivo e, contudo, não é nenhum dos dois. Nós acentuamos na primeira consideração da INTENCIONALIDADE o seguinte: a questão sobre como o sentido direcional, a compreensão de ser, pertence à intentio e sobre como ela mesma é possível como essa relação necessária, não apenas não é esclarecida no interior da fenomenologia, mas não é nem mesmo questionada. Essa questão deve nos ocupar mais tarde. GA24MAC: §21

Sabemos, porém, que este dirigir-se para algo, a INTENCIONALIDADE, só é possível se o ser-aí enquanto tal é em si mesmo transcendente. Ele só pode ser transcendente se a constituição de ser do ser-aí se fundar originariamente na temporalidade ekstático-horizontal. A percepção no todo de sua estrutura intencional do perceber, do percebido e do ter sido percebido – e toda e qualquer outra INTENCIONALIDADE – fundamenta-se na constituição ekstático-horizontal da temporalidade. De acordo com o seu próprio sentido comportamental, no perceber, o ser-aí deixa aquilo para o que ele se dirige vir de tal modo ao seu encontro que ele o compreende em seu caráter corporalmente vital como em si. Essa compreensão também tem lugar, quando a percepção é uma percepção ilusória. Mesmo na alucinação, o que é alucinado é compreendido de acordo com o sentido direcional da alucinação como uma percepção ilusória enquanto algo corporalmente presente à vista. A percepção como o comportamento intencional juntamente com o seu sentido direcional citado é um modo insigne da presentificação de algo. A ekstase do presente é o fundamento para a transcendência especificamente intencional da percepção do ente presente à vista. À ekstase enquanto tal, ao deslocamento, pertence um esquema horizontal; ao presente pertence a presença. Na percepção intencional já pode residir uma compreensão de ser, porque a temporalização da ekstase enquanto tal, a presentificação enquanto tal, compreende aquilo que ela presentifica em seu horizonte, isto é, a partir da presença, como algo que se presenta. Formulado de outro modo: na INTENCIONALIDADE da percepção só pode residir um sentido direcional, na medida em que o estar orientado do perceber se compreende a partir do horizonte do modo temporal, que possibilita o perceber enquanto tal: a partir do horizonte da presença. Por isso, quando Kant diz: existência, o que significa para nós [458] presença à vista, é percepção, essa tese é extremamente rudimentar e passível de incompreensões, e, não obstante, ela aponta na direção correta do problema. Interpretando agora a afirmação de que ser é percepção significa o mesmo que: ser é comportamento intencional de um tipo próprio, isto é, presentificação, ou seja, ekstase na unidade da temporalidade com um esquema próprio, com a presença. Interpretado de maneira originária, ser é igual à percepção significa fenomenologicamente o mesmo que ser é igual à presentidade, presença. Com isso, vem à tona ao mesmo tempo o fato de que Kant interpreta em geral o ser e a presença à vista exatamente como a filosofia antiga, para a qual o ente é o hypokeimenon, que possui o caráter da ousia. Nos tempos de Aristóteles, ousia ainda significava em sua compreensão cotidiana e pré-filosófica o mesmo que propriedade de raiz (Anwesen). Como termo filosófico, contudo, ela assumiu o significado de presentidade. Com certeza, tal como acontece com Kant, os gregos também não tinham a menor ideia de que interpretavam o ser no sentido do ente presente à vista em sua determinação como presença à vista a partir do tempo; nem a partir de que contexto originário eles levavam a termo essa interpretação do ser. Eles seguiam muito mais a inclinação imediata do ser-aí existente que, de acordo com o seu modo de ser cotidiano compreende de forma inexpressamente temporal o ente de início no sentido do ente presente à vista e o ser desse ente. A referência ao fato de que os gregos compreenderam o ser a partir do presente, isto é, a partir da presença, é uma prova que não tem como ser superavaliada para a nossa interpretação da possibilidade da compreensão de ser a partir do tempo, mas não é, contudo, uma fundamentação. Ao mesmo tempo, porém, ela é um documento em prol do fato de que não estamos tentando outra coisa aqui com a nossa interpretação do ser senão repetir os problemas da filosofia antiga para, na repetição, radicalizá-los a partir de si mesmos. GA24MAC: §21

Enquanto unidade ekstático-horizontal da temporalização, a temporalidade é a condição de possibilidade da INTENCIONALIDADE fundada na transcendência. Com base no caráter [462] ekstático, a temporalidade possibilita o ser de um ente que, como um si mesmo existindo com outros e como um tal existente, lida com um ente como à mão ou como presente à vista. Ela possibilita o comportamento do ser-aí como um comportamento em relação ao ente, seja esse um comportamento em relação a si mesmo, aos outros seres-aí ou ao à mão e ao ente presente à vista. Com base na unidade dos esquemas horizontais que pertence à sua unidade ekstática, a temporalidade possibilita a compreensão de ser, de tal modo que é apenas sob a luz dessa compreensão de ser que o ser-aí pode se comportar em relação a si mesmo, em relação aos outros como entes e ao ente presente à vista como ente. uma vez que a temporalidade perfaz a constituição fundamental do ente que denominamos ser-aí, ente esse ao qual pertence a compreensão de ser como determinação de sua existência, e uma vez que o tempo constitui pura e simplesmente o autoprojeto originário, o ser já sempre se desvelou a cada vez em cada ser-aí fático, se é que ele existe, e isto significa: o ente já é sempre descerrado ou descoberto. Com a e na temporalização das ekstases são projetados os esquemas temporais horizontais – isto se acha incluído em si mesmo na essência do deslocamento para... – de tal modo, em verdade, que os comportamentos ekstaticamente estruturados, ou seja, intencionalmente estruturados em relação a algo, já sempre compreenderam esse ente a cada vez como ente, isto é, em seu ser. Mas não é necessário que o comportamento em relação ao ente, apesar de ele compreender o ser do ente, distinga esse ser assim compreendido do ente expressamente do ente em relação ao qual ele se comporta. É ainda menos necessário, por sua vez, que essa diferença entre ser e ente seja mesmo concebida. Ao contrário, até mesmo o próprio ser é de início considerado como um ente e explicado com o auxílio de determinações do ente, tal como acontece no começo da filosofia antiga. Quando Tales responde a pergunta sobre o que seria o ente e diz “água”, ele explica o ente a partir do ente, apesar de, no fundo, buscar aquilo que o ente seria enquanto ente. Na questão, ele compreende algo assim como ser; na resposta, porém, ele interpreta o ser como um ente. Este tipo [462] de interpretação do ser permaneceu usual por longo tempo na filosofia antiga, mesmo depois dos progressos essenciais na formulação do problema que aconteceram em Platão e em Aristóteles. No fundo, essa interpretação é até hoje a usual na filosofia. GA24MAC: §22

Submitted on:  Sat, 28-Aug-2021, 09:37