mundo

Category: Heidegger - Ser e Tempo etc.
Submitter: Murilo Cardoso de Castro

mundo

Welt

Mundo é o acontecimento apropriador de clareira e iluminação. [Das Ereignis der Lichtung ist die Welt.] [GA7:285; tr. Schuback:244]



Pois na dimensão da história do ser (cf. Ser e tempo), o "mundo" significa a vigência inobjetivável da verdade do ser para o homem, desde que o homem entregue de modo essencial o que lhe é próprio ao ser. Na era em que apenas o poder tem poder, isto é, na era da afluência incondicional dos entes ao abuso do consumo, o mundo torna-se sem-mundo na mesma medida em que o ser ainda vige, embora sem vigor próprio. O ente é real enquanto operativo. Em toda parte, a operatividade. Em parte alguma, o fazer-se mundo do mundo. Apesar disso, embora esquecido, o ser. Para além da guerra e da paz, existe apenas a errância do uso e abuso dos entes no auto-asseguramento das ordens, oriunda do vazio propiciado ao se deixar o ser. [Superação da Metafísica, EC]


Nós designamos aquilo em direção do qual (horizonte) o ser-aí como tal transcende, o mundo, e determinamos agora a transcendência como ser-no-mundo. Mundo constitui a estrutura unitária da transcendência; enquanto dela faz parte, o conceito de mundo é um conceito transcendental. [MHeidegger SOBRE A ESSÊNCIA DO FUNDAMENTO]


Estas breves indicações tornaram visíveis vários aspectos: 1. Mundo quer dizer, muito antes, um como do ser do ente, que o próprio ente. 2. Este como determina o ente em sua totalidade. É, em última análise, a possibilidade de cada como em geral enquanto limite e medida. 3. Este como em sua totalidade é, de certa maneira, prévio. 4. Este como prévio, em sua totalidade, é ele mesmo relativo ao ser-aí humano. O mundo, por conseguinte, pertence ao ser-aí humano, ainda que abarque todos os entes, também o ser-aí, em sua totalidade.

Por mais certo que seja o resumo que se possa fazer desta compreensão, sem dúvida, ainda pouco explicita e crepuscular, do kosmos nos significados acima mencionados, tão inegável é também que esta palavra nomeia muitas vezes apenas o ente mesmo que se experimenta no tal como.

Não é, porém, nenhum acaso que no contexto da nova compreensão ôntica da existência que interrompeu no cristianismo, se radicalizasse e esclarecesse a relação de kosmos e ser-aí humano e com isto o conceito de mundo em geral. A relação é experimentada tão originariamente que kosmos passa a ser usado, de agora em diante, diretamente como expressão para um determinado modo fundamental de ser da existência humana. Kosmos houtos significa em Paulo (vide 1. Coríntios e Gálatas) não apenas e não primariamente o estado do "cósmico", mas o estado e a situação do homem, a espécie de sua postura diante do cosmos, seu modo de apreciar os bens. Kosmos é o ser-homem no como de uma mentalidade afastada de Deus (he sophia tou kosmou). Kosmos houtos designa o ser-aí humano, numa determinada existência "histórica" que se distingue de uma outra que já está despontando (aion ho mellon). Com inusitada frequência - sobretudo, em comparação com os sinóticos -, usa o Evangelho de São João o conceito de kosmos, e ao mesmo tempo em um sentido bem central. Mundo caracteriza a forma fundamental de afastamento de Deus do ser-aí humano, o caráter do ser-homem simplesmente. De acordo com isto, é então mundo um nome que designa de maneira geral todos os homens juntos, sem distinção entre sábios e tolos, justos e pecadores, judeus e pagãos. O significado central deste conceito de mundo, absolutamente antropológico, chega a expressar-se no fato de funcionar como conceito antônimo da filiação divina de Jesus, a qual é compreendida como Vida (zoe), Verdade (aletheia) e Luz (phos). [MHeidegger SOBRE A ESSÊNCIA DO FUNDAMENTO]


Mundo é, em tudo isto, a denominação para o ser-aí humano no núcleo de sua essência. Este conceito de mundo corresponde perfeitamente ao conceito existencial de mundo de Agostinho, só que perdeu a valoração especificamente cristã do ser-aí "mundano", de amatores mundi, e mundo passou a significar positivamente os "camaradas de jogo" no jogo da vida.

O significado existencial de conceito de mundo que por último foi extraído de Kant é, então, atestado pela expressão que surgiu na época posterior "Visão de mundo" [Weltanschauung]. Mas também fórmulas como "homem do mundo", "mundo elegante", mostram uma significação semelhante de conceito de mundo. "Mundo" não é também simplesmente uma expressão para uma região (ontológica) que designa a comunidade de homens à diferença da totalidade das coisas da natureza, mas mundo significa justamente os homens em suas relações com o ente em sua totalidade, isto é, do "mundo elegante" fazem também parte, por exemplo, os hotéis e os studs.

É, por conseguinte, enganoso recorrer à expressão mundo, quer como caracterização da totalidade das coisas da natureza (conceito natural de mundo), quer como nome para a comunidade dos homens (conceito pessoal de mundo). Muito antes, a relevância metafísica do significado, mais ou menos destacado, de kosmos, mundus, mundo, reside no fato de que visa à interpretação do ser-aí humano em sua referência ao ente em sua totalidade. Por razões que aqui não podem ser analisadas, a formação do conceito de mundo depara primeiro com a significação, de acordo com a qual ele caracteriza o como do ente em sua totalidade, e isto de tal maneira que sua relação com o ser-aí é primeiramente apenas compreendida de modo indeterminado. Mundo faz parte de uma estrutura referencial que caracteriza o ser-aí como tal, estrutura que já denominamos de ser-no-mundo. Esse emprego do conceito de mundo é - isto as indicações históricas tinham como finalidade mostrar - tão pouco arbitrário que justamente procura elevar um fenômeno existencial (Daseinsphaenomen), já conhecido, mas não captado de modo ontologicamente unitário, ao nível de clareza e precisão formal de um problema. [MHeidegger SOBRE A ESSÊNCIA DO FUNDAMENTO]


A polissemia da palavra “mundo” salta aos olhos em seu uso frequente, bem como nas considerações tecidas até aqui. Seu esclarecimento pode vir a ser uma indicação dos fenômenos e de seus nexos referidos nas diferentes significações.

1. Mundo é usado como um conceito ôntico, significando, assim, a totalidade dos entes que se podem simplesmente dar dentro do mundo.

2. Mundo funciona como termo ontológico e significa o ser dos entes mencionados no item 1. “Mundo” pode denominar o âmbito que sempre abarca uma multiplicidade de entes, como ocorre, por exemplo, na expressão “mundo” usada pelos matemáticos, que designa o âmbito dos objetos possíveis da matemática.

3. Mundo pode ser novamente entendido em sentido ôntico. Nesse caso, é o contexto “em que” uma presença [Dasein] fática “vive” como presença [Dasein], e não o ente que a presença [Dasein] em sua essência não é, mas que pode vir ao seu encontro dentro do mundo. Mundo possui aqui um significado pré-ontologicamente existenciário. Deste sentido, resultam diversas possibilidades: mundo ora indica o mundo “público” do nós, ora o mundo circundante mais próximo (doméstico) e “próprio”.

4. Mundo designa, por fim, o conceito existencial-ontológico da mundanidade. A própria mundanidade pode modificar-se e transformar-se, cada vez, no conjunto de estruturas de “mundos” particulares, embora inclua em si o a priori da mundanidade em geral. Terminologicamente tomamos a expressão mundo para designar o sentido fixado no item 3. Quando, por vezes, for usada no sentido mencionado no item 2, marcaremos este sentido, colocando a palavra entre aspas, “mundo”.

Terminologicamente, o adjetivo derivado mundano indica, portanto, um modo de ser da presença [Dasein] e nunca o modo de ser de um ente simplesmente dado “no” mundo. O ente simplesmente dado “no” mundo, nós o chamaremos de pertencente ao mundo {CH: justamente a presença [Dasein] é obediente ao mundo} ou intramundano. [STMSC:§14]


O que significa mundo? O que já se entendia antes pelo termo kosmos, mundus?

A consideração historiográfica realizada em Da essência do fundamento teve em geral por resultado o seguinte: os termos kosmos, mundus, mundo têm uma dupla significação: uma significação vulgar, o ente qua natureza; e uma filosófica, que sem dúvida alguma não é apreendida expressa e conceitualmente. Mundo não é nenhuma expressão regional, não designa esse ou aquele ente, mas o modo de ser do ente na totalidade. Nessa significação, porém, “mundo” está frequentemente tão relacionado ao ser-aí que o próprio ser-aí é diretamente designado como mundo. Portanto, mundo é o modo de ser do ente na totalidade e, contudo, está relacionado ao ser-aí que não é mais do que um ente entre outros. Como é que o mundo está relacionado ao ser-aí e vice-versa: como é que o ser-aí se comporta em relação ao mundo, e o que quer dizer afinal mundo?

Tese: afirmamos o seguinte: o ser-aí não se comporta apenas ocasionalmente, apenas vez por outra em relação ao mundo, mas a relação com o mundo pertence à essência do ser-aí como tal, ao existir como ser qua ser-aí; no fundo, “ser-aí” não significa outra coisa senão “ser-no-mundo”; essa estrutura precisa ser atribuída ao ser-aí como constituição fundamental.

Nesse processo, tudo depende de como e de até que ponto compreendemos corretamente a essência do mundo. A discussão mais exata do ser-no-mundo que atribuímos ao ser-aí como tal precisa intensificar para nós o problema do conceito de mundo. Ser-no-mundo é a estrutura da transcendência, da ultrapassagem.

O ente que ultrapassa é o ser-aí; aquilo que é ultrapassado é o ente na totalidade; isso em direção ao que a ultrapassagem acontece é o mundo. No entanto, “isso em direção ao que” não é nenhum ente. Não é absolutamente algo do gênero daquilo em relação ao que o ser-aí podería, rigorosamente falando, assumir um comportamento — e, contudo, falamos de relação com o mundo. Como é e o que significa, nesse contexto, o termo “mundo”? [GA27MAC:255-257]


O conceito ingênuo de mundo é compreendido de uma forma tal que o mundo diz tanto quanto o ente. Sem qualquer decisão até mesmo em relação à “vida” e à “existência”, ele diz simplesmente o ente. Em meio à caracterização do modo como vive o animal, vimos o seguinte: ao falarmos com sentido do mundo e da formação do mundo por parte do homem, mundo precisa designar algo como a acessibilidade do ente. Vimos, entretanto, uma vez mais, que recaímos em uma dificuldade e ambiguidade essenciais com esta caracterização. Se determinarmos o mundo desta forma, também poderemos dizer em certo sentido que o animal possui um mundo; a saber, que ele tem um acesso a algo, que experimentamos a partir de nós como sendo o ente. Em contraposição a isto mostrou-se, porém, que o animal tem efetivamente a possibilidade de acesso a algo, mas não ao ente enquanto tal. Daí resulta que mundo significa propriamente acessibilidade do ente enquanto tal. Esta acessibilidade funda-se, contudo, em uma abertura do ente enquanto tal. Por fim, veio à tona que esta abertura não é nenhuma abertura de um tipo arbitrário qualquer, mas a abertura do ente na totalidade enquanto tal. [GA29-30MAC:364]

Submitted on:  Mon, 18-Sep-2023, 00:10