desconstrução

Category: Termos chaves da Filosofia
Submitter: Murilo Cardoso de Castro

desconstrução

Derrida toma como seu objeto nada menos que a totalidade daquilo a que ele se refere como, no rastro de Heidegger, metafísica ou ontoteologia ocidental. Sua afirmação, ainda seguindo Heidegger, é de que essa tradição, pelo menos desde Platão, tentou determinar o ser como presença, mas que tal determinação é dogmática, apoiando-se em uma "decisão ético-teórica", e não em alguma demonstração teórica, e sempre pode ser exposta como falha em toda uma variedade de maneiras. No ponto de vista de Derrida, o pensamento ocidental tem avançado habitualmente num sentido de oposição, propondo pares binários de conceitos (dos quais alguns dos mais difundidos e gerais talvez sej am dentro/fora, bom/mau, puro/impuro, presença/ausência). Ao mesmo tempo em que apresenta esses pares como neutros e descritivos, o pensamento ocidental está na verdade determinando um desses termos como primário ou privilegiado e o outro como secundário, derivado, inferior, ou parasitário, com respeito ao primeiro. Os primeiros trabalhos de Derrida tentam demonstrar isso, de forma improvável, seguindo a orientação fornecida pela compreensão tradicional da relação entre fala e escrita (em Husserl, Platão, Rousseau, Saussure, Hegel entre outros). Derrida demonstra, num primeiro momento de exegese, como a fala é tradicionalmente valorizada em relação à escrita, fazendo reverter para si mesma todos os valores de presença, enquanto a escrita é (des)qualificada como corporificando exterioridade, materialidade, morte e ausência. Em um segundo momento, Derrida afirma que, mesmo em seus próprios termos, os autores em questão não conseguem deixar de expor, apesar de seus argumentos mais patentes, que os predicados habitualmente usados na descrição da escrita são, na verdade, predicados essenciais da linguagem em geral e, portanto, também da fala. Os filósofos parecem querer demonstrar que a fala é básica e a escrita, derivativa: terminam demonstrando, contra sua própria vontade, que a fala é ela própria, na verdade, uma espécie de "escrita".

O cerne da argumentação é o seguinte: a escrita é tradicionalmente representada como implicando o funcionamento repetível de um signo na ausência da minha intenção animadora (por exemplo, depois de minha morte); mas, sem a possibilidade (a possibilidade essencial) da repetição descontextualizada (se necessário, depois de minha morte) mesmo das coisas que eu falo e que tenho a plena intenção de dizer, a linguagem não funcionaria em absoluto. A possibilidade da repetição (como o mesmo, mas repetido e, nessa medida, não idêntico) é definidora da linguagem como um todo e não pode ser confinada à escrita. A desconstrução da oposição clássica (aqui, fala/escrita) implica a retenção polêmica do termo previamente desvalorizado (aqui, escrita) para nomear uma estrutura mais geral que inclui o termo previamente valorizado (aqui, fala). Esse termo (escrita) sofreu um deslocamento (ou "reinscrição") nesse processo e rompeu a oposição binária em que era tradicionalmente definido. Esse deslocamento imediatamente desqualifica todo um âmbito de reações "textualistas" a Derrida (sejam elas de apoio ou de crítica), as quais assumem que o termo conserva o seu sentido antigo. Além disso, o conceito deslocado de "escrita", assim elaborado, funciona ao mesmo tempo como a condição da possibilidade da linguagem e como a condição de impossibilidade de ela jamais alcançar seu tradicional telos de auto-obliteração no interesse do pensamento.

Esse "exemplo" de desconstrução indica imediatamente inúmeras e importantes consequências "metodológicas":

1. textos (até mesmos os textos filosóficos) não são simples e unificados, mas habitualmente implicam, ao lado do conteúdo ou doutrina mais obviamente proposto, recursos mais ou menos óbvios que funcionam contra esse conteúdo ou doutrina;

2. o funcionamento desses recursos pode ser demonstrado, independentemente de qualquer alegação quanto ao que o autor pretendia;

3. a desconstrução não é essencialmente uma atividade crítica posta em ação pelo leitor, a partir de uma posição de fora do texto, mas em certo sentido já está "no" texto;

4. na medida em que os textos fogem ao controle de qualquer leitura internamente proposta (item 1 acima), então eles tampouco "se desconstroem" simplesmente (isso mais uma vez desqualifica todo um âmbito de reações a Derrida, tanto elogiosas quanto críticas). A des-construção ocorre em algum ponto "entre", digamos, Derrida e Platão, mas não pode ser localizada dentro dos esquemas históricos de nenhuma história da filosofia ou das ideias.

Essas consequências talvez fossem de importância apenas limitada (afetando, por exemplo, o historiador ou leitor de filosofia, mas não o que "faz" filosofia), não fosse por uma nova afirmativa extraída dessa descrição sobre como a linguagem em geral pode funcionar. A desconstrução tende a demonstrar como é incoerente qualquer tentativa de definir conceitos ou significados como auto-suficientes, e como desaba qualquer tentativa de determinar as consequentes relações entre conceitos como opositivas (ou, por extensão, dialéticas). Uma das afirmações mais significativas da desconstrução é que as explicações binárias e dialéticas ainda funcionam no sentido de uma unidade indiferenciada (a "presença" da metafísica, para sermos precisos). Numa interpretação desconstrutiva, esse relação deve ser concebida como diferencial, mas não opositiva, ou como implicando uma diferença que (contrariamente a Hegel) não precisa tornar-se oposição (ver dialética). Significados ou efeitos disso (pois Derrida acredita tão pouco em "significados" quanto Quine ou Wittgenstein) resultam da rede multiplamente diferencial em que os termos são definidos unicamente por suas inter-relações. Essa rede é intrinsecamente histórica, na medida em que os termos só estão "presentes" através de sua repetibilidade como o mesmo (mas não idêntico), e portanto é inerentemente tradicionalista. Os únicos meios para o pensamento são herdados com essa rede, e é ingenuidade esperar que alguém seja capaz de pensar sem recorrer a ela. No campo da conceitualidade filosófica, essa historicidade da rede implica que qualquer uso de um conceito filosófico (e, na verdade, de qualquer conceito) envolve uma "leitura" pelo menos implícita da tradição, que assim não pode ser ignorada.

Essa dívida ambivalente e inevitável para com a tradição é também o motivo pelo qual Derrida conserva o nome do antigo conceito (aqui, "escrita"), em vez de tentar simplesmente introduzir um nome novo para aquilo que ele está tentando pensar. Em outros pontos, a lógica desse argumento traduz-se nos hábitos de Derrida de tomar emprestados os operadores lógicos de seus argumentos dos textos sob discussão, negando assim a possibilidade de qualquer demarcação clara de objeto-linguagem e meta-linguagem. Essa recusa da tradicional fantasia filosófica de se obter um ponto de observação fora do ponto do campo da investigação, no entanto, não obriga Derrida a uma posição de pura imanência: certos termos (pharmakon, suplemento, parergon e até mesmo o notório neo-logismo "différance" - tentativa de dar nome ao "tornar-se diferente" da rede diferencial; ver estruturalismo - através de uma modificação jocosa da noção-chave de diferença) ganham um valor sempre limitado nos textos dentro dos quais, não obstante, permanecem embutidos: esse status "quase transcendental" (tal como formalizado especialmente por Rodolphe Gasché) implica um estágio intermediário entre o imanente e o transcendente que talvez capte melhor a posição desconstrutiva. [DPSSXX]

Submitted on:  Fri, 09-Jun-2023, 14:48