acídia

Category: Termos chaves da Filosofia
Submitter: Murilo Cardoso de Castro

acídia

(gr. akedia; lat. Acedia; in. Sloth; fr. Accidie; al. Acedie; it. Accidia). O tédio ou a náusea no mundo medieval: o torpor ou a inércia em que caíam os monges que se dedicavam à vida contemplativa. Segundo Tomás de Aquino, consiste no "entristecimento do bem divino" e é uma espécie de torpor espiritual que impede de iniciar o bem (S. Tb., II, II, q. 35, a. 1). Com o tédio, a acídia tem em comum o estado que a condiciona, que não é de necessidade, mas de satisfação (V. tédio). [Abbagnano]



Mas é com a lembrança do cortejo infernal das filiae acediae [filhas da acídia], que a mentalidade alegorizante dos Padres da Igreja plasmou magistralmente a alucinada constelação da acídia. Ela gera em primeiro lugar malitia, o ambíguo e irrefreável ódio-amor pelo bem como tal, e rancor, a revolta da má consciência contra os que exortam ao bem; pusillanimitas, o “ânimo pequeno” e o escrúpulo que se retrai assustado diante da dificuldade e do empenho da existência espiritual; desperatio, a obscura e presunçosa certeza de estar já condenado antecipadamente e o complacente aprofundamento na própria ruína, como se nada, nem sequer a graça divina, pudesse salvar-nos; torpor, o obtuso e sonolento estupor que paralisa qualquer gesto que nos pudesse curar; e, por fim, evagatio mentis, a fuga do ânimo diante de si e o inquieto discorrer de fantasia em fantasia [v. cogitatio] que se manifesta na verbositas, a tagarelice que gira inutilmente sobre si mesma, na curiositas, a insaciável sede de ver por ver que se perde em possibilidades sempre novas, na instabilitas loci vel propositi [instabilidade de lugar ou de propósito] e na importunitas mentis, a petulante incapacidade de estabelecer uma ordem e um ritmo para o próprio pensamento.

A psicologia moderna esvaziou de tal forma o termo acedia do seu significado original, transformando-a em um pecado contra a ética capitalista do trabalho, que se torna difícil reconhecer, na espetacular personificação medieval do demônio meridiano e das suas filiae, a inocente mistura de preguiça e de desleixo que estamos acostumados a associar à imagem do acidioso. Contudo, como acontece com frequência, o mal-entendido e a minimização de um fenômeno, longe de significar que isso nos é remoto e estranho, pelo contrário são indícios de uma proximidade tão intolerável a ponto de a devermos camuflar e reprimir. Isso é tão verdadeiro que poucos se terão dado conta de que na evocação patrística das filiae acediae aparecem as mesmas categorias de que se serve Heidegger na sua famosa análise da banalidade cotidiana e da caída na dimensão anônima e inautêntica do “a gente”, que acabou inspirando (na verdade nem sempre propositadamente) numerosas caracterizações sociológicas da nossa existência nas assim chamadas sociedades de massa. No entanto, a concordância é até mesmo terminológica. Evagatio mentis torna-se a fuga e o di-vertimento em relação às possibilidades mais autênticas do ser-aí; verbositas é o “bate-papo” que em todo lugar e sem cessar dissimula o que deveria desvelar, mantendo assim o ser-aí no equívoco; curiositas é a “curiosidade”, que “busca o que é novo só para saltar mais uma vez para o que é ainda mais novo” e, sendo incapaz de cuidar de fato do que se lhe apresenta, procura, através dessa “impossibilidade de parar” (a instabilitas dos Padres), a constante disponibilidade da distração.

A ressurreição da sabedoria psicológica que a Idade Média havia cristalizado na tipologia do acidioso corre o risco de ser algo mais do que um exercício acadêmico e, vista de perto, a máscara repugnante do demônio meridiano revela traços que nos são mais familiares do que poderíamos presumir. [AgambenE:24-27]

Submitted on:  Sat, 25-Dec-2021, 19:52