independência da história da filosofia

Category: Termos chaves da Filosofia
Submitter: mccastro

independência da história da filosofia

Nosso segundo problema é o referente ao grau de independência da história da filosofia acerca da história das outras disciplinas intelectuais. Mas recusamo-nos a apresentá-la dogmaticamente, como se se tratasse de cindir o complexo das relações da filosofia, tomada como coisa em si com a religião, a ciência ou a política. Queremos apresentá-la e resolvê-la historicamente, o que significa não admitir solução simples e uniforme. A história da filosofia, se quiser ser fiel, não pode ser a história abstrata das ideias e dos sistemas, separados das intenções de seus autores e da atmosfera moral e social de onde provieram. É impossível negar que, em diferentes épocas, a filosofia gozou de posição muito diferente, naquilo que se poderia chamar de regime intelectual do tempo. No decurso da história, encontramos filósofos que, sobretudo, são sábios; outros, reformadores sociais, como Augusto Comte, ou mestres de moral, como os filósofos estoicos, ou pregadores, como os cínicos. Há, entre eles, mediadores solitários, profissionais do pensamento especulativo, como Descartes ou Kant, ao lado de homens que visam â influência prática imediata, como Voltaire. A meditação pessoal é, às vezes, simples reflexão sobre si; outras vezes, confina com o êxtase.

Não é exclusivamente por influência do temperamento pessoal que eles são diferentes, mas por causa do que a sociedade, em cada época, exige de um filósofo. O nobre romano, que procura um diretor de consciência, os papas do século XIII, que veem no ensino filosófico da Universidade de Paris um meio de afirmação do cristianismo, os enciclopedistas, que querem pôr fim à opressão das forças do passado, pedem à filosofia coisas muito diferentes. Ela se faz, alternativamente, missionária, crítica, doutrinal.

Dir-se-á que são acidentes. Pouco importa o que a sociedade pretende fazer da filosofia. O que é importante é o que ela continua sendo em meio às diferentes intenções dos que a utilizam. Quaisquer que sejam as divergências, não há filosofia senão quando há pensamento racional, isto é, um pensamento capaz de autocrítica e de esforço para justificar-se mediante razões. Essa aspiração a um valor racional não é, como se poderia pensar, um traço característico e permanente para justificar essa história abstrata de doutrinas, essa "história da razão pura", como diz Kant, quem dela esboçou a ideia? [Crítica da Razão Pura, "Metodologia transcendental", cap. IV.] Suficiente para distinguir a filosofia da crença religiosa, esse traço diferencia-a, também, das ciências positivas, porque a história das ciências positivas é completamente inseparável da história das técnicas, de onde surgiram e que elas aperfeiçoam. Não há lei científica que não seja, sob outro ponto de vista, regra de ação sobre as coisas; a filosofia é pura especulação, mero esforço para compreender, sem outra preocupação.

Seria aceitável tal solução, se não tivesse por consequência imediata eliminar da história da filosofia todas as doutrinas que levam em conta a crença, a intuição, intelectual ou não, o sentimento, isto é, as doutrinas principais; implica, pois, uma opinião restrita sobre a filosofia, mais do que uma visão exata de sua história. Isolar uma doutrina do movimento de ideias que a determinou, do sentimento e da intencionalidade que a dirigem, considerá-la como um teorema que exige prova, é substituir por um pensamento morto um pensamento vivo e significativo. Não é possível compreender uma noção filosófica senão com relação ao conjunto de que ela faz parte. Quantos matizes diferentes, por exemplo, há no sentido do famoso: "Conhece-te a ti mesmo!" Para Sócrates, o conhecimento de si significa o exame dialético e a comprovação de suas próprias opiniões; para Santo Agostinho, é um meio de alcançar o conhecimento de Deus pela imagem da Trindade que encontramos em nós; para Descartes, é como uma aprendizagem da certeza; para os Upanixades da Índia, é o conhecimento da identidade do eu e do princípio universal. Como, pois, apreender essa noção e dar-lhe um sentido, independentemente dos fins para os quais a utilizamos?

Uma das maiores dificuldades que se possa opor á ideia de uma história abstrata dos sistemas é o fato que se poderia chamar deslocamento do nível das doutrinas. Para dar um exemplo significativo, pensemos nas ardorosas polêmicas, que continuaram por séculos, sobre os limites dos domínios da fé e da razão. Poder-se-ia encontrar bom número de doutrinas consideradas, em certo momento, como fé revelada e, em outros, como doutrinas de razão. A secura e a pobreza da filosofia propriamente dita, na alta idade Média, são compensadas pelos tesouros da vida espiritual que, da filosofia pagã, se transferiram para os escritos teológicos de Santo Ambrósio e Santo Agostinho. A afirmação da imaterialidade da alma, provada racionalmente por Descartes, é, para Locke, uma verdade de fé. Nada mais surpreendente do que a transposição que Spinoza fez sofrer à noção religiosa de vida eterna, interpretando-a mediante noções inspiradas no cartesianismo! De tais fatos, facilmente multiplicáveis, resulta que não se caracteriza suficientemente uma filosofia indicando as doutrinas que sustenta; importa, muito mais, ver em que espírito ela as sustém e a que regime mental pertence.

Isso significa que a filosofia não poderia viver separada do resto da vida espiritual, que se manifesta, ademais, nas ciências, na religião, na arte, na vida moral ou social. O filósofo dá-se conta de todos os valores espirituais de seu tempo para aprová-los, criticá-los ou transformá-los. Não existe filosofia onde não existe esforço por ordenar hierarquicamente os valores.

Será, pois, preocupação constante do historiador da filosofia permanecer em contato com a história política geral e a história de todas as disciplinas do espírito, antes do que pretender isolar a filosofia como técnica independente das outras.

Essas relações com outras disciplinas espirituais não são, de modo nenhum, uniformes e invariáveis, mas apresentam-se de feitio diferente, segundo as épocas e os pensadores. A especulação filosófica pode ser relacionada, ás vezes, com a vida religiosa, outras vezes, com as ciências positivas, com a política e a moral, algumas vezes, com a arte. Há momentos em que predomina o valor de uma das disciplinas, enquanto outras quase se eclipsam. Assim, no transcurso da Antiguidade Clássica, assistimos, em geral, a um decréscimo gradual das ciências, acompanhado pelo papel crescente da religião: enquanto, na época de Platão, a evolução das matemáticas envolve um interesse muito particular para o historiador, no tempo de Plotino, a invasão das religiões orientais de salvação exige maior atenção. É o momento em que devemos apresentar o problema, ainda tão difícil de resolver, da influência real do cristianismo sobre a filosofia. A época atual vê, em torno da filosofia, uma luta de-influências bastante áspera para que essa meditação sobre o passado não se torne inteiramente inútil. [Bréhier]

Submitted on:  Tue, 22-Dec-2009, 07:41