
Convém primeiramente sublinhar as oposições insuperáveis que separam fenomenologia e marxismo. O marxismo é um materialismo. Ele admite que a matéria constitui a única realidade e que a consciência é um modo material particular. Esse materialismo é dialético : a matéria se desenvolve segundo um movimento cujo motor constitui a supressão, a conservação e o ultrapassamento da etapa anterior pela etapa seguinte: a consciência é uma dessas etapas. Na perspectiva que é aqui a nossa, isso significa especialmente que toda forma material contém em si mesma um sentido; esse sentido existe independentemente de toda consciência "transcendental". Hegel havia captado a presença desse sentido, afirmando que todo real é racional, mas a imputava a um pretenso Espírito cuja natureza e história seriam apenas a realização. O marxismo, ao contrário, recusa separar, como o fazem os idealistas de um modo geral, o ser e o sentido. Certamente a fenomenologia do terceiro período husserliano parece por sua vez recusar essa separação, por exemplo quando Merleau-Ponty, o mais destacado representante dessa filosofia, fala "dessa pregnância da significação nos signos que poderia definir o mundo". Mas o problema reside em saber de que "mundo" se trata. Tivemos a preocupação de observar que o mundo, ao qual a meditação husserliana sobre a verdade conduz por fim, não deve ser confundido com o mundo "material", definindo-se antes, como o fizemos, a partir da consciência, ou pelo menos do sujeito constituinte. Husserl dizia que a constituição do mundo, tal como se opera no devir da subjetividade, se apoia na Lebenswelt, num mundo originário com o qual essa subjetividade se acha "em relação" por meio de sínteses passivas. Esboço de empirismo, conclui Wahl a esse respeito (R.M.M., 1952). Não concordamos, pois tratava-se sempre de uma subjetividade reduzida e de um mundo que não era o da realidade natural; Husserl igualmente não queria cair por sua vez nos erros mil vezes denunciados do empirismo. Como diz com muita propriedade Thao, "a realidade natural que se descobre nas profundezas do vivido não é mais aquela que se apresentava à consciência espontânea antes da redução" (op. cit., 225). A realidade em questão é aquela que após Merleau-Ponty passamos a chamar existência, mundo originário etc.; e, com a fenomenologia, sempre tivemos o cuidado de separá-la de toda apreensão objetivista possível. Essa realidade não é portanto objetiva e tampouco subjetiva; ela é neutra ou ainda ambígua. A realidade do mundo natural anterior à redução, isto é, em último instância, a matéria, é em si desprovida de sentido para a fenomenologia (cf. Sartre); as diferentes regiões do ser acham-se dissociadas, como observa ainda Thao, e por exemplo "a matéria trabalhada pelo homem não é mais matéria, mas "objeto cultural" (ibid., 225-6). Essa matéria só tomará seu sentido das categorias que a colocam como realidade física, de tal modo que, finalmente, o ser o sentido se encontram separados em virtude da separação dos diferentes reinos do ser. O sentido remete exclusivamente a uma subjetividade constituinte; mas, essa subjetividade por sua vez remete a um mundo neutro que está, ele próprio, em devir e no qual todos os sentidos da realidade se constituem segundo sua gênese (Sinngenesis). Daí, conclui Thao, a contradição da fenomenologia parecer intolerável. Pois é claro que esse mundo neutro, que retém o sentido sedimentado de toda realidade, só pode ser a própria natureza, ou antes, a matéria no seu movimento dialético. É verdade, num certo sentido, que o mundo antes da redução não é aquele que se encontra após a análise da subjetividade constituinte: o primeiro é realmente, na verdade, um universo mistificado em que o homem se aliena, mas não é justamente a realidade; a realidade é esse universo reencontrado ao fim da descrição fenomenológica e no qual o vivido é apenas um aspecto abstrato da vida efetivamente real", a fenomenologia não podia conseguir captar em si o "conteúdo material dessa vida sensível". Para conservar e superar os resultados do idealismo transcendental, é preciso prolongá-lo pelo materialismo dialético, que o salva de sua última tentação: a recaída no "ceticismo total", que Thao vê transparecer nos últimos esccritos de Husserl e que lhe parece inevitável se não se devolve à subjetividade "seus predicados de realidade." Não cabe discutir aqui o notável texto de Thao. Ele coloca claramente em todo caso a irredutibilidade das duas teses, pois só à custa de uma identificação da subjetividade originária como matéria é que o marxismo se pode propor conservar a fenomenologia e ultrapassá-la. Encontra-se em Lukács (Existentialisme et marxisme, Nagel, 1948) uma crítica marxista bastante diferente na medida em: que ataca a fenomenologia, não retomando seu pensamento do interior, mas estudando-o explicitamente como "comportamento". De certa forma ela completa a crítica precedente, pois procura demonstrar que a fenomenologia, longe de estar degradada por sua significação histórica, nela encontra, ao contrário, sua verdade. Notar-se-á ademais que Lukács se refere sobretudo ao Husserl do segundo período. Husserl lutou, paralelamente a Lênin, contra o psicologismo de Mach e todas as formas de relativismo cético que foram expressas no pensamento ocidental a partir do fim do século XIX; essa posição fenomenológica se explica, segundo Lukács, pela necessidade de liquidar o idealismo objetivo, cuja resistência ao progresso científico fora finalmente vencida, especialmente no que concerne a noção de evolução; o idealismo subjetivo por outro lado levava, para um pensador honesto como Husserl, a conclusões perigosamente obscurantistas, mas por outro lado o materialismo continua inaceitável a seu ver, subjetivamente porque se situa na linha cartesiana e, objetivamente, em razão da ideologia de sua classe; daí a tentativa que caracteriza o comportamento fenomenológico de "revestir as categorias do idealismo subjetivo de uma pseudo-objetividade. A ilusão (de Husserl) consiste precisamente em crer que basta dar as costas aos métodos puramente psicológicos para sair do domínio da consciência (op. cit., 260-262). Paralelamente, se Husserl luta contra Mach e os formalistas, é para introduzir o conceito de "intuição" do qual se espera que resista ao relativismo e para reafirmar a validade da filosofia contra a inevitável derrota para a qual o pragmatismo a tinha arrastado. Ora, esses temas são "outros tantos sintomas da crise da filosofia". Que crise é esta? Ela está estreitamente ligada à primeira grande crise do imperialismo capitalista, que eclodiu em 1914, Precedentemente, a filosofia tinha sido posta de lado e substituída pelas ciências especializadas no exame dos problemas do conhecimento: é precisamente o estágio do positivismo, do pragmatismo, do formalismo, caracterizado pela confiança dos intelectuais num sistema social aparentemente eterno. Mas quando as garantias conferidas pelo sistema, por ocasião de seu nascimento político (liberdades do cidadão, respeito à pessoa humana), começam a ser ameaçadas pelas consequências do próprio sistema, veem-se aparecer os sintomas da crise do pensamento filosófico: tal é o contexto histórico da fenomenologia tomada como comportamento. Seu a-historismo, seu in-tuicionismo, sua intenção de radicalidade, seu fenomenismo, outros tontos fatores ideológicos destinados a ocultar o sentido verdadeiro da crise, a evitar as inevitáveis conclusões. A "terceira via", nem idealista, nem materialista nem ("objetivista", nem "pisicologista," dizia Husserl) reflete essa situação equívoca. A "filosofia da ambiguidade" traduz a seu modo uma ambiguidade da filosofia nessa etapa da história burguesa, motivo pelo qual os intelectuais lhe conferem um sentido de verdade, na medida em que vivem essa ambiguidade e na medida em que essa filosofia, ocultando sua verdadeira significação, preenche a contento sua função ideológica. O sentido da história. — É portanto claro que nenhuma conciliação pode ser tentada com seriedade entre essas duas filosofias e é preciso frisar que, com efeito, os marxistas jamais o pretenderam. Mas se tiveram de refutá-la foi precisamente porque lhe a ofertaram. Não é de nossa alçada fazer o histórico dessa discussão; incontestavelmente, a experiência política e social da Resistência e da Libertação constituem seus motivos essenciais; seria preciso fazer a análise da situação da intelligentsia durante esse período. Seja como for, a fenomenologia foi levada a confrontar suas teses com as do marxismo; fê-lo de resto espontaneamente após o descentramento de sua problemática, a partir do eu transcendental na direção do Lebenswelt. A fenomenologia abordou o marxismo essencialmente por duas teses: o sentido da história e a consciência de classe — e que na verdade são apenas uma, pois para o marxismo o sentido da história só pode ser lido através das etapas da luta de classes; essas etapas são dialeticamente ligadas à consciência que as classes tomam de si mesmas no processo histórico total. A classe é definida em última análise pela situação nas relações objetivas de produção (infra-estrutura), mas as flutuações de seu volume e de sua combatividade, que refletem as modificações incessantes dessa infra-estrutura, estão ainda ligadas dialeticamente a fatores superestruturais (políticos, religiosos, jurídicos, ideológicos propriamente ditos). Para que a dialética da luta de classes, motor da história, seja possível, é necessário que as superestruturas entrem em contradição com a infra-estrutura ou produção da vida material e, por conseguinte, que essas superestruturas gozem, como diz Thao de uma "autonomia" relativamente a essa produção e não evoluam automaticamente na trilha de sua evolução. "A autonomia das superestruturas é tão essencial à compreensão da história quanto o movimento das forças produtoras" (arf. cit., 169). Chega-se pois a essa tese, retomada por Merleau-Ponty (2), segundo a qual a ideologia (no sentido geral do termo) não é ilusão, aparência, erro, mas realidade de fato, como também a própria infra-estrutura. "A primazia do econômico, escreve Thao, não suprime a verdade das superestruturas, mas remete-a à sua origem autêntica, na existência vivida. As construções ideológicas são relativas ao modo de produção, não porque o refletem — o que é um absurdo — mas simplesmente porque extraem todo o seu sentido de uma experiência correspondente em que os valores "espirituais" não são representados, mas vividos e sentidos" (art. cit.). Thao atribui à fenomenologia o mérito de ter "legitimado o valor de todas as significações da existência humana", isto é, em resumo, de ter ajudado a filosofia a isolar a autonomia das superestruturas. "Aplicando-se em compreender, num espírito de submissão absoluta ao dado, o valor dos objetos "ideais", a fenomenologia soube relacioná-los com sua raiz temporal sem por isso depreciá-los" (ibid., 173); e Thao mostra que a relação com o econômico permite justamente fundamentar bem o sentido e a verdade das "ideologias" — por exemplo da fenomenologia — isto é, em suma, compreender como e especialmente por que o esforço da burguesia do século XVI, por exemplo, para se libertar do poder papal tomou a forma ideológica da Reforma: afirmar que essa forma é apenas um reflexo ilusorio (ideológico) de interesses materiais é recusar -se a compreender a historia. Thao propõe explicar o movimento da Reforma como a tradução "racionalizada" da experiência realmente vivida das novas condições de vida trazidas pelo próprio desenvolvimento da burguesia, condições caracterizadas sobretudo pela segurança que não mais obrigava, como o fazia a insegurança dos séculos precedentes, a encerrar a espiritualidade nos claustros, e permitia em oposição adorar Deus no mundo. Cabe portanto introduzir no seio das análises marxistas análises feno-menológicas referentes à consciência considerada como fonte das superestruturas com a infra-estrutura econômica onde se acha comprometida em última análise (mas em última análise apenas). Assim, encontra-se legitimada simultaneamente a possibilidade de um desenvolvimento dialético da historia cujo sentido é ao mesmo tempo objetivo e subjetivo, isto é, necessário e contingente: os homens não se prendem diretamente ao econômico; prendem-se ao existencial ou antes o econômico é já existencial e sua liberdade de defesa, é por eles experimentada como real. O problema revolucionário, segundo Thao, não é pois apenas de organizar e estabelecer uma economia nova; está na realização pelo homem do próprio sentido de seu devir. É nesse sentido, segundo ele, que a teoria de Marx não é um dogma, mas um guia para a ação. Merleau-Ponty aborda o mesmo problema mas pelo seu lado concretamente político. Negar à história um sentido é negar-lhe sua verdade e sua responsabilidade na política, é dar a entender que o Resistente não tem maiores motivos que o Colaborador para matar, é sustentar que o "fim justifica os meios", segundo uma fórmula que teve seu êxito porque o caminho em direção ao fim, colocado arbitrariamente por um projeto subjetivo e incontrolável, pode passar por qualquer caminho, não importa qual, e a felicidade e a liberdade dos homens pelo nazismo e Auschwitz. A história mostra que isto não se dá. Não é preciso dizer que a violência é inelutável porque o futuro está aberto e "a se realizar", é preciso ainda dizer que certa violência é mais justificada que outra; não se deve apenas consentir em que a política não pode deixar de ser um Maquiavel, mas mostrar igualmente que a história tem suas manhas e maquiaveliza eventualmente os Maquiavel. Se a história mostra, se a história tem manhas é porque ela visa algum objetivo e significa. Não a própria história, que não passa de uma abstração; mas existe "uma significação média e estatística" dos projetos dos homens comprometidos numa situação, que finalmente só se define por tais projetos e sua resultante. Esse sentido de uma situação é o sentido que os homens conferem a si mesmos e aos outros, num trecho de duração que se chama presente; o sentido de uma situação histórica é um problema de coexistência ou Mitsein; há uma história porque os homens são conjunto, não como subjetividades moleculares e fechadas que se adicionariam, mas ao contrário como seres projetados na direção de outrem como para o instrumento de sua própria verdade. Há portanto um sentido da história que é o sentido que os homens vivendo dão à sua história. Assim se explica que possam infiltrar-se, numa base objetiva idêntica, tomadas de consciência variáveis, aquilo que Sartre denominava a possibilidade de um deslocamento:, "jamais uma posição objetiva no circuito da produção basta para provocar a tomada de consciência de classe" (Fenomenologia da Percepção, 505). Não se passa automaticamente da infra-estrutura à superestrutura sempre existe um equívoco entre ambas. Mas, então, se é verdade que os homens dão à sua história seu sentido, de onde o retiram? Por uma escolha transcendente? E quando nós imputamos a Sinngebung aos próprios homens, a suas liberdades, não fazemos uma vez mais "a história caminhar de cabeça para baixo", não estamos voltando ao idealismo? Existe uma possibilidade ideológica de sair do dilema do "pensamento objetivo" e do idealismo? O economista não pode explicar a história, não pode explicar como uma situação econômica se "traduz" em racismo ou em ceticismo, ou em social-democracia, não pode tampouco explicar que numa mesma posição no círculo que ele descreve, possam ser correlativas posições políticas diferentes, nem que ali haja "traidores", nem até mesmo que uma agitação política seja necessária; e nesse sentido a história é de fato contingente; mas o idealismo, que o afirma não pode igualmente explicar a história, não pode explicar que o "século das luzes" é o século XVIII, nem que os gregos não criaram a ciência experimental, nem que o fascismo é uma ameaça de nosso tempo. É portanto necessário, se se deseja compreender a história (e não existe tarefa verdadeira para o filósofo), sair desse duplo impasse de uma liberdade e de uma necessidade igualmente totais. "A glória dos resistentes como a indignidade dos colaboradores supõe ao mesmo tempo a contingência da história, sem a qual não existem culpados em política, e a racionalidade da história sem a qual só existem loucos" (Humanisme et terreur, pág. 44). "Damos seu sentido à história, mas não sem. que ela no-lo proponha" (Fenomenologia da Percepção, 513). Isto significa não que a história tenha um sentido, único, necessário e por conseguinte fatal, de que os homens seriam joguetes e vítimas também, como o são afinal na filosofia hgeliana da história, mas sim que ela tem um sentido; essa significação coletiva é a resutlante das significações projetadas por subjetividades históricas no seio de sua coexistência, e que compete a essas subjetividades retomar, num ato de apropriação, que põe fim à alienação desse sentido e da história, constitui por si mesmo uma significação desse sentido e anuncia uma transformação da história. Não há de um lado um objetivo e de outro um subjetivo que lhe seria heterogêneo e procuraria nos melhores casos ajustar-se a ela: assim não há nunca uma compreensão total da história, pois, mesmo quando a compreensão é a mais adequada possível, ela compromete já a história numa nova via e lhe abre um futuro. Não se pode retomar a história nem pelo objetivismo, nem pelo idealismo, nem muito menos por uma união problemática dos dois, mas por um aprofundamento de ambos que nos leva à própria existência dos sujeitos históricos no seu "mundo", a partir do qual o objetivismo e o idealismo aparecem como duas possibilidades, respectivamente inadequadas, para os sujeitos de se compreenderem na história. Essa compreensão existencial não é por sua vez adequada, porque há sempre um futuro para os homens, e os homens produzem seu futuro produzindo-se a si mesmos. A história por ser inacabada, isto é, humana, não é um objeto indicado; mas por ser também humana, a história não é insensata, Assim se justifica de nova maneira a tese husserliana de uma filosofia que nunca pôs fim ac problema de um "começo radical". Podemos observá-lo também em Les Aventures de la dialectique (Gallimard, 1955): ‘Hoje em dia, como há cem anos e como há trinta e oito anos, continua a ser verdade que ninguém é sujeito nem é livre sozinho, que as liberdades se contrariam e se exigem mutuamente, que a história é a história de seu debate, que se inscreve e está visível nas instituições, nas civilizações, na esteira das grandes ações históricas; que há meio de compreendê-las, de situá-las, se não dentro de um sistema segundo uma hierarquia exata e definitiva e na perspectiva de uma sociedade Derdadeira, homogênea, última, pelo menos como diferentes episódios de uma só vida de que cada qual é uma experiência e pode passar aos que vêm depois... "(276). Mas desta vez o marxismo é atacado em sua tese fundamental, que é a própria possibilidade do socialismo, da sociedade em classe, da supressão do proletariado como classe pelo proletariado no poder, e do fim do Estado: "Eis o problema: a revolução é um caso limite do governo ou o fim do governo?" Ao que Merleau-Ponty responde. "A revolução se concebe no segundo sentido e se pratica de acordo com o primeiro... As revoluções são verdadeiras como movimentos e falsas como regimes" (290 e 279). Não nos cabe fazer aqui a descrição crítica do livro: notemos apenas que ele expressa incompatibilidade absoluta das teses fenomenológicas com a concepção marxista da história. Em particular, a rejeição de Merleau-Ponty da possibilidade efetiva de uma realização do socialismo não pode surpreender-nos se considerarmos que, recusando qualquer referência à objetiuidade das relações de produção e de suas modificações, os fenomenólogos deviam insensivelmente tratar a história e a luta de classes como devir e contradição das consciências isoladas. [Lyotard]