
Na segunda (meditação), o espírito, que fazendo uso de sua própria liberdade, supõe que nenhuma das coisas de cuja existência não tem a menor dúvida, existe, reconhece que é absolutamente impossível, no entanto, que ele próprio não exista. O que também se torna muito útil, porquanto, desta maneira, o espírito distingue facilmente o que lhe pertence, isto é, o que pertence à natureza intelectual, do que pertence ao corpo. Mas como pode acontecer que haja quem espere que neste ponto eu exponha algumas razões para provar a imortalidade da alma, creio que devo advertir-lhe que, tendo procurado nada escrever neste tratado sem possuir demonstrações muito exatas para isso, vi-me obrigado a seguir uma ordem semelhante à que seguem os geômetras, e que consiste em expor primeiro tudo aquilo de que depende a proposição procurada, antes de tirar qualquer conclusão. Ora, o que primeiro e principalmente se necessita para conhecer bem a imortalidade da alma, é formar desta um conceito claro e preciso, inteiramente distinto das concepções todas que podemos ter do corpo; foi isto o que se fez. aqui. Além, disso se requer saber que todas as coisas que concebemos clara e distintamente são verdadeiras, do modo como as concebemos; coisa que não se pode provar até a quarta meditação. Faz falta ainda ter uma concepção diversa da natureza corporal, concepção que se forma, parte nesta segunda e parte na quinta e sexta meditações. E por último, de tudo isto se deve concluir que as coisas que concebemos clara e distintamente como substâncias diversas, v. gr., o espírito e o corpo, são.com efeito substâncias realmente distintas umas de outras, o que se vê na sexta meditação; e isto se confirma também nesta mesma meditação, porque não concebemos corpo algum que não seja divisível, ao passo que o espírito ou a alma do homem não se pode conceber senão indivisível; pois, efetivamente, não podemos conceber meia alma, coisa que podemos fazer com o menor dos corpos; de sorte que se conhece que ambas as naturezas não só São diversas como até contrárias em certo sentido. E se tratei só por alto, no presente escrito, esta matéria, foi porque é suficiente para mostrar claramente que da corrupção do corpo não se segue a morte da alma, e dar assim ao homem a esperança de outra vida depois da morte; e também porque as premissas de que se pode deduzir a imortalidade da alma dependem da explicação de toda a física: primeiro, para saber que, em geral, todas as substâncias, isto é, todas as coisas que não podem existir sem serem criadas por Deus, são por natureza incorruptíveis e nunca podem cessar de ser, desde que Deus não as reduza a nada, negando-lhes seu concurso; e também para advertir que o corpo, tomado em geral, é uma substância, pelo que também perece; porém que o corpo humano, visto ser diferentes dos outros corpos, está composto de certa configuração de membros e outros acidentes semelhantes, ao passo que a alma humana não está composta de acidentes e é uma substância pura. Pois mesmo estando todos seus acidentes sujeitos a mudança, por exemplo, concebendo certas coisas, querendo outras e sentindo outras, etc., a alma no entanto não muda; o corpo humano, pelo contrário, se torna uma coisa distinta apenas pela mudança da figura de alguma de suas partes, de onde se segue que o corpo humano pode bem facilmente perecer, mas o espírito ou alma do homem (não os distingo) é imortal por natureza. (Descartes - Meditationes de prima philosophia, Resumen.)