não-ser

Category: Termos chaves da Filosofia
Submitter: Murilo Cardoso de Castro

não-ser

É um conceito negativo cuja especulação é comum na filosofia. Entende-se por não-ser a negação de ser, a ausência do ser. Ao falar-se de não-ser há duas referências: 1) o que não existe em ato; 2) o que não é apto para existir. Assim pode-se falar na não existência do filho, desta criança que ora nasce, e falaríamos no primeiro caso, ou então de algo impossível de existir como o quadrado-redondo, da impossibilidade.

Crítica - O termo mais usado para referir-se ao não-ser é o termo nada (nihilum). Entende-se nada de várias maneiras:

1) Nihilum absolutum = ausência total absoluta de qualquer ser, nada absoluto;

2) Nada relativo = a ausência de um determinado modo de ser ou a ausência de certo ser. É tomado negativamente quando se trata de mera não presença de ser, e positivamente quando se refere à impossibilidade de ser.

3) Nada absoluto parcial = seria a total ausência de ser apenas em parte, como o vácuo dos atomistas adinâmicos;

4) O me on = o não-ser, que é a potência pura do ato puro.

Impõe-se a distinção entre alguns conceitos muito usados, tais como: carência, que é a ausência de ser na coisa. É impossível quando sua ausência não pode não-ser como a racionalidade no homem: necessária, se a coisa não poderia existir, como a essência; contingente, se a coisa poderia assim mesmo existir, como a ciência no homem. Privação é a ausência de ser devido à coisa, como a cegueira no homem, que normalmente deve ter visão. Diz-se que é um ente de razão aquele que só pode dar-se na mente. Mas o ente de razão pode ter um fundamento na ordem real quando há, na coisa, algo real que permite, por abstração, alcançá-lo. Assim a humanidade é um ente de razão, mas tem fundamento real nos homens. Ora, o nada é um ente de razão e pode ter fundamento na coisa (in re), como se vê com a cegueira, como as trevas, a sombra, que são entes que têm fundamento nas coisas, pois referem-se à ausência de algo real. Dar ao nada uma entidade real em si mesmo, eis o tremendo erro em que caíram muitos filósofos.

O niilismo filosófico fundamenta-se no nada como algo real em si mesmo. A filosofia positiva na realidade do ser; a filosofia negativista na realidade do nada, e terá sempre que emprestar o nada, poder, o que é absurdo. Górgias, por exemplo, negava a realidade do ser. Alguns existencialistas, não sabendo especular em torno do nada, terminaram por dar-lhe uma realidade própria. Hegel chegou a identificá-lo com o ser, com a diferença que o ser torna-se em nada, enquanto o nada torna-se em ser, distinguindo-se apenas pela intencionalidade, pois enquanto um tende para ser, outro tende para o não-ser.

O niilismo não se manifesta apenas na metafísica, mas também na ética, ao negar os valores, na política, ao negar os fundamentos sociais, etc. Heráclito, entre os gregos, reduziu o ser ao transeunte, ao deixar-de-ser-o-que-imediatamente-deixa-de-ser, ao devir puro, o que é afirmar como realidade,-o nada, como o expôs Aristóteles, pois no fundo a sua filosofia era negativista.

Hegel, em face da contradição que seu pensamento levava, termina por afirmar a realidade e a compatibilidade dos contraditórios. Afirma apenas e não mostra, argumenta e não demostra: "o puro ser e o puro nada são idênticos", e "ser é o que é e não é, é o próprio não-ser". E como argumenta? Ser, tomado em si mesmo, é indeterminado. Ora, nada é indeterminado; logo, ser é nada (não-ser). Este é o silogismo famoso de Hegel. Logicamente esse silogismo é falho e peca contra as regras elementares da lógica. Ele expressa: quer ser pertence à ordem dos indeterminados e nada também pertence à mesma ordem. Daí conclui que são idênticos. Temos um silogismo:

P - M
S - M
-----
S - P

Ora, esta forma pertence à segunda figura e, nesta, se ambas as premissas são afirmativas, não é possível concluir nada, porque o termo médio nunca é tomado em sua universalidade. O ser e nada poderiam ser ambos indeterminados, sem serem idênticos por isso. Erro elementar de lógica.

Heidegger, em sua fase existencialista, afirmava que do nada se fez o ser (ex nihilo ens fit). Posteriormente abandonou essa concepção. que produziu em mentes inadvertidas erros e mais erros. Sartre tomou a posição de Heidegger e nela se conservou: o nada é em si ser, o ser é em si nada.

Cairemos assim na concepção parmenídica? Contrapondo a afirmação do nada só poderemos admitir o ser pleno de Parmênides? Não. Entre ser e nada absoluto não há meio termo, pois menos que ser é nada e mais que nada é ser. Não se diga que são apenas conceitos nossos, pois o que se entende por ser é a afirmação da presença, e a negação desta é ausência e nada mais. De modo algum poderíamos encontrar um meio-termo entre o nada absoluto, a ausência total de ser, e presença, porque qualquer diferença já seria presença e, portanto, ser. Consequentemente, ser é ser. Contudo a nossa experiência nos comprova que há ausências e o nome genérico de tais ausências é privação. Como salientava Nicolau de Cusa, não deu Aristóteles a devida importância ao tema da privação. Mas esta, note-se, tem de ser alguma coisa (portanto, ser), porque privação de nada é nada de privação. O conceito de privação implica pois o ser, e fundamenta-se no conceito de não-ser relativo, do nada relativo e não do nada absoluto. Ora, os entes de nossa experiência, além de contingentes, ou seja, além de necessitarem de uma causa eficiente que os faça, da qual dependem essencial e realmente, revelam que são privados de algumas perfeições, pois não são tudo quanto o ser pode ser. A privação da perfeição revela, assim, que são eles constituídos da presença de um ser, que é por sua vez privado de uma perfeição outra de ser. Todo ser finito que é o ser contingente, afirma uma presença e, também, ausência de perfeições de ser. Foi precisamente essa realidade dos seres finitos e contingentes, que levou a muitos filósofos a especularem em torno do não-ser, do nada. Afirmar que tais seres são nada, porque revelam privação ou afirmar que são apenas ser, são duas posições polares extremadas, falsas, porque uma nega o que a outra afirma com base real. Os seres finitos não são apenas ser (pois o ser, que é apenas ser, é o Ser Supremo), nem tampouco são apenas nada, privação, porque uma privação absoluta seria um nada absoluto. Deste modo, os seres finitos revelam uma hibridez de ser e de privação. Ora, o ser finito é, tanto o atual como o potencial, privado de certas perfeições. Destas, algumas poderão atualizar-se que são as suas possibilidades, outras não poderão porque são desproporcionadas à sua natureza, ou espécie, ou quididade, etc. Remontando ao que estudamos anteriormente, toda privação que não é devida à natureza da coisa, não lhe é uma deficiência no verdadeiro sentido, pois não pertence à conveniência da sua natureza, como à pedra não ter olhos para ver. Mas há ausências que podem atualizar-se, que são as possibilidades proporcionadas à natureza da coisa. Essa privação é ou pode ser apenas passageira, enquanto aquela é permanente e necessária.

Compreendendo-se assim, é um princípio ontológico que ser é ser; ou seja, que ser não pode, ao mesmo tempo, e sob o mesmo aspecto, não ser. O predicado ser pertence à natureza do sujeito de modo necessário. Se tal juízo é por alguns julgado tautológico, basta que nos lembremos daqueles filósofos que afirmam que ser é não ser, para que desde logo compreendamos que desaparece a tautologia, porque o que se predica do sujeito é que este se conserva ou permanece de certo modo em sua natureza. No juízo o ser é ser, o sujeito é tomado como alguma coisa (áliquid), e o predicado afirma que é apto para existir, que algo é apto para existir. Ademais revela este juízo que o que é cogitado corresponde ao que é na realidade, pois é cogitado que o que chamamos alguma coisa, é apto para existir. Essa correlação entre a ordem da cogitação e a ordem da realidade é de máxima importância.

Este juízo corresponde aos seguintes: o que é, afirma-se que é, ou ao que convém algo, algo lhe é afirmado. Todo ser é o que é. O que não é, não é. O que é tem uma essência. Todo ser tem uma natureza determinada que o constitui, etc. Porque o ser é ser, o ser não é não-ser. Ser é o que apto para existir. O que não é apto para existir não é ser. Consequentemente, ser não é não-ser.

Alguns filósofos menores, preocupados com o devir, com a constante mutação das coisas e as transformações, chegaram a afirmar que o ser é devir, ou algo que constantemente deixa de ser o que é para ser o que não é. Desde o momento que se compreenda que o devir (vir-a-ser) das coisas é a passagem de um modo de ser para outro modo de ser, é compreensível que o que é, e deixa de ser o que é, para ser outro modo de ser, acidental ou substancial, no primeiro caso, sofrendo uma mutação apenas acidental e, no segundo, uma substancial, transformando-se (mudando de forma) para outro, tudo isso acontece com algo que é, e não com o que não é (nada). O devir de modo algum anula o ser. Sem o ser, é impossível compreender o devir, nem poderia dar-se objetivamente, pois afirmar-se-ia que o nada, a ausência de ser, torna-se outro ser. Ora, a ausência de ser é nada, e como o nada poderia perder ser e adquirir ser, se é nada e não tem ser? Desse modo os defensores de tais ideias caem, inevitavelmente, no absurdo, e afirmando assim o devir, afirmam apenas o nada; ou seja, que o ser é nada, ou que o nada é ser e, neste caso, o nada, sendo ser, é ser, o que é afirmar o ser. Afirmar o devir é afirmar o ser e não o nada.

Um grande erro e de funestas consequências, tem sido o de julgar que o devir é outra coisa que ser. E este decorre do erro de julgar que há meio termo entre ser e nada. Na verdade: o que devém é alguma coisa que devém, e não nada que devém, pois, neste caso, não haveria devir. A passagem de um modo de ser acidental ou substancial para outro não é afirmação do aniquilamento do ser, mas de um modo de ser, que deixa de ser de certo modo para vir a ser de modo atual, o que ainda não era atualmente, mas já era potencialmente. O ente, enquanto ente, não é não-ente. O ser, que tem uma qualidade, não pode não ter essa qualidade. Se se afirma a presença de algo em algo, não se pode afirmar a ausência do mesmo no mesmo.

Em suma: quando se predica a presença, é contraditório predicar a ausência sob o mesmo aspecto e simultaneamente. A posse, a privação do mesmo no mesmo e, simultaneamente, é contraditório. (Diz-se simultaneamente porque em outro momento poderia não o ter). Desse modo, o ser que tem um qualidade, enquanto tem essa qualidade, não pode não tê-la. Se se disser: o que tem existência não pode não ter existência, em referência a um ser contingente, pode não ser válido, por ser passível de não ter existência. Mas se se disser: o que tem existência, enquanto tem existência, não pode não ter existência, dizemos verdade. Daí se conclui a fórmula: é impossível afirmar e negar o mesmo simultaneamente do mesmo. Temos aqui o enunciado do princípio de não-contradição. O de Parmênides: "o que é, é; o que não é, não é", pode ser chamado de tautológico. Mas dizer-se o que é não-ente evita essa acusação. O enunciado clássico dos medievalistas "é: impossível algo ser, e simultaneamente e sob o mesmo aspecto, não ser". Este enunciado, como se vê, reduz-se à fórmula que propusemos. Demonstra-se assim, apoditicamente, o princípio de não-contradição.

Ao comentar a fórmula clássica dos medievalistas, chamou Kant a atenção para o fato de apresentar uma modal (impossível é ...), e temporalidade (simultaneamente), que tiraria o valor analítico do juízo. Contudo é mister considerar que a modal não indica uma certeza da mente apenas, mas uma certeza que decorre da objetividade da coisa (pois o ser afirma e não nega). Ademais, simultaneamente não quer dizer apenas temporalmente, mas essencialmente, o que não o restringe apenas ao tempo. O enunciado que oferecemos não contém os defeitos acusados por Kant.

Contudo há os que afirmam que algo é, e algo não é simultaneamente e sob o mesmo aspecto. Nesse caso, desdobrando-se em dois juízos: algo é e algo não é, ambos juízos seriam falsos, pois o primeiro o seria porque seria válido o segundo, e o segundo porque seria válido o primeiro. Esse terceiro termo, que é e não-é, é impossível e absurdo, porque não há meio-termo entre ser e nada, pois menos eu ser é nada e mais que nada é ser. Ademais se a algo que é, predicamos que não é o negativo seria positivo, porque algo é quando não é. Daí o enunciado lógico verdadeiro: algo de algo ou é afirmado ou é negado. Não há lugar para uma terceira posição.

Foram sempre improcedentes os argumentos daqueles que combatem o principio de não-contradição. Muitos apegaram-se à fórmula parmenídica, outros cometeram confusão entre ser e nada. É o próprio conceito de ser e a afirmação que nele há o que permite extrair o princípio de não-contradição e, deste, o de identidade e o do terceiro-excluído. Não se funda esse princípio em outro, e nós o alcançamos pela análise do próprio conceito de ser e do que o ser é. É evidente de per si e primeiro, porque decorre do próprio ser. E da conjugação dos dois princípios, do de não-contradição e do de identidade, concluímos: O que é não pode, simultaneamente, e sob o mesmo aspecto, ser o que não é, porque é o que é. [MFSDIC]

Submitted on:  Fri, 27-May-2011, 14:08