
O estudo da natureza ou do mundo físico constitui a parte mais desenvolvida da filosofia de Aristóteles, a que certamente este trabalhador infatigável consagrou seu maior esfôrço. O progresso e a renovação das ciências foram tão grandes porém, que hoje se torna problema extremamente difícil a pretensão de se manter fiel aos princípios do peripatetismo. Eis os dados essenciais.
A física constituía para Aristóteles a terceira parte da filosofia teorética; as duas primeiras partes eram a metafísica e as matemáticas. Esta diversificação do saber teorético tinha como fundamento os graus de separação da matéria sob os quais pode-se sucessivamente examinar o objeto de conhecimento: o que mais tarde se chamará os graus de abstração. Assim o físico considera "o ser da natureza" independentemente de seus caracteres individuais, mas ainda dotado, sem dúvida, de suas qualidades sensíveis comuns: o biologista, para retomar o exemplo dos antigos, não estudará "esta carne" ou "êste osso" no que eles têm de particular, mas "a carne" ou "os ossos" em geral. Mais tarde S. Tomás precisará que neste nível faz-se abstração da matéria individual, a materia individuali, conservando-se a matéria sensível materia sensibilis. Sob seu aspecto comum, as propriedades accessíveis aos sentidos - coloração, solidez, sonoridade, etc. - permanecerão, portanto, compreendidas nesta ordem do saber.
Sobre tais bases metodológicas, Aristóteles havia constituído êste extraordinário sistema do mundo, tão poderoso em suas estruturas quanto engenhoso no arranjo de seus detalhes, que devia dominar o pensamento dos vinte séculos seguintes. Sabe-se que a partir do século XVII, graças a uma experimentação renovada e à fecundidade dos processos matemáticos, construiu-se o edifício de. uma massa de tal modo grandiosa e de uma eficácia prática tão superior, que constitui o corpo das ciências físicas modernas. Como esta revolução se operou como reação ao antigo sistema, e, pela utilização de métodos, pelo menos na aparência, inteiramente opostos, nós nos encontramos em presença de dois conjuntos coerentes que pretendem, cada um, nos fazer conhecer o mundo físico, mas que, efetivamente, no-lo mostram sob aspectos muito diferentes. Nestas condições, é possível um acôrdo entre as duas físicas em questão? Julgamos que sim, se cada um desses conhecimentos se encontrar reconduzido às suas próprias possibilidades: se, em particular, a física peripatética se achar purificada de todo um aparato científico evidentemente caduco e se, eventualmente, a física moderna abandonar certas pretensões de se erigir em sabedoria suprema, o que não é de sua alçada.
Uma tal solução do conflito em seus princípios, repousa sôbre o fato de se poder considerar os fenômenos da natureza sob dois pontos de vista diferentes:
- ou limitando-se a determinar os caracteres ou as propriedades mais comuns, fundamentando-se para tanto sobre os mais simples e mais imediatos dados experimentais; desta forma, procurar-se-á as condições universais da mudança como tal e a quais princípios últimos dever-se-á reconduzi-los (átomos, elementos, matéria-prima etc.), e nesta direção poder-se-á conservar Aristóteles como guia para constituir uma filosofia da natureza em seu sentido próprio;
- ou restringindo-se à procura das condições especiais de tais fenômenos particulares (queda dos corpos, magnetismo, evaporação etc.), situando-se no mesmo nível da observação e mensuração desses fenômenos e, neste caso, será necessário reconhecer que se está no plano da Ciência da natureza, domínio no qual, evidentemente, os modernos se encontram em plano superior.
Retomando a precisão trazida por J. Maritain, dir-se-á que, em Filosofia da natureza, continuando a referência aos abjetos percebidos pelos sentidos (1 grau de abstração), apela-se para os princípios de explicação que são da alçada de uma ontologia geral; enquanto que, com relação às Ciências da natureza, fica-se no plano das noções imediatamente controláveis pela experiência e mensuráveis, e no momento em que se recorre a um saber superior, chega-se à abstração matemática. Em face dos fenômenos físicos há, portanto, para nós, dois modos de determinar nossos conceitos: segundo "uma solução ascendente em direção ao ser inteligível, no qual o sensível permanece, porém, indiretamente a serviço do ser inteligível, como conotado por êle; e uma solução descendente em direção ao sensível e ao observável como tais, na qual, sem dúvida, não renunciamos absolutamente ao ser (sem o que não haveria mais pensamento), mas onde este passa a se colocar a serviço do próprio sensível, e antes de tudo do mensurável, não sendo mais que uma incógnita assegurando a constância de certas determinações sensíveis e de certas medidas, e permitindo traçar limites estáveis cercando o objeto dos sentidos. Tal é a lei de solução dos conceitos nas ciências experimentais. Chamamos respectivamente ontológica (no sentido mais geral da palavra) e empiriológica ou espaço-temporal a estes dois tipos de solução dos conceitos ou de exploração" (Les degrés du savoir, 1.r ed., pp. 287-288) .
Com esta distinção a partir de um plano de explicação filosófica e um plano de explicação científica dos fenômenos da natureza, pode-se, com a vantagem de deixar as ciências físicas se desenvolver de acordo com seus métodos próprios e em seus próprios níveis, conservar a possibilidade de raciocinar em filosofia na linha dos princípios aristotélicos. Pelo menos é o que parece poder-se dizer em um primeiro contato.
Na realidade, e para uma análise mais próxima, a respectiva limitação dos dois domínios de pensamento não é tão fácil de ser estabelecida como parece à primeira vista. Os resultados científicos não podem ser inteiramente ignorados pelo filósofo da natureza, e suas determinações referentes a noções, tais como finalidade, acaso, espaço, tempo etc., não serão talvez indiferentes ao sábio. É necessário reconhecer, por outro lado, que a distinção precedente não é explícita em Aristóteles que, muito confiante nas possibilidades da dedução a priori, apresenta em um conjunto homogêneo o que acabamos de relacionar com processos metódicos diferentes. A própria obra, na qual temos que refletir, embora conservando o valor filosófico, como poderemos verificar, deve ser, portanto, inteiramente revista.
Aquele que hoje desejasse constituir uma cosmologia sob a inspiração do Estagirita deveria proceder em dois tempos: inicialmente, por uma crítica contínua, separar na física aristotélica o que há de durável de tudo o que é cientificamente ultrapassado; e sobre esta base - que se iria sem dúvida ampliar, pelo menos do ponto de vista dos princípios matemáticos reconstruir um sistema puramente filosófico.
Aqui, nossa ambição será mais modesta. Sem deixarmos de fazer algumas discriminações elementares e de nos referirmos, quando necessário, a teorias mais atuais, desejaríamos, antes de tudo, dar uma ideia objetiva do sistema do mundo, como o concebeu Aristóteles. E ademais como pretendemos permanecer no nível dos princípios, praticamente não passaremos além da parte filosófica desse sistema, - a mais autenticamente válida e pouco teremos que nos inquietar com a renovação das ideias científicas. [Gardeil]