alma

Category: Heidegger - Ser e Tempo etc.
Submitter: Murilo Cardoso de Castro

alma

Seele, psyche

Já cedo percebeu-se o primado ôntico-ontológico da presença [Dasein], embora não se tenha apreendido a presença [Dasein] em sua estrutura ontológica genuína nem se tenha problematizado a presença [Dasein] nesse sentido. Aristóteles diz: he psyche ta onta pos estin, “a ALMA (do homem) é, de certo modo, todo ente”; a “ALMA”, que constitui o ser do homem, descobre, em seus modos de ser, todo ente naquilo que ele é e como ele é, ou seja, descobre sempre todo ente em seu ser. Esta frase, que remonta à tese ontológica de Parmênides, foi citada por Tomás de Aquino numa discussão característica. Para derivar os “transcendentais”, isto é, os caracteres do ser que estão muito além de toda determinação possível de conteúdo genérico de um ente, portanto, de todo modus specialis entis, e que convêm necessariamente a tudo, o que quer que seja, é preciso demonstrar também o verum como esse transcendens. Santo Tomás o faz recorrendo a um ente que, em seu modo de ser, tem a propriedade de “convir” a todo e qualquer ente. Esse ente privilegiado, o ens quod natum est convenire cum omni ente, é a ALMA (anima). O primado da presença [Dasein] frente a qualquer outro ente que aqui se apresenta, embora ainda não esclarecido do ponto de vista ontológico, nada tem em comum com uma má subjetivação da totalidade dos entes. STMSC: §4

De acordo com a tendência positiva da destruição, deve-se perguntar de saída se, e até onde, no curso da história da ontologia, a interpretação de ser está tematicamente articulada com o fenômeno do tempo e se, e até onde, a problemática da temporaneidade, aqui necessária, foi e podia ter sido elaborada em princípio. Kant foi o primeiro e o único a dar um passo no caminho da investigação para a dimensão da temporaneidade. Ou melhor, Kant foi o primeiro que se deixou encaminhar, nesse caminho, pela pressão dos próprios fenômenos. Pois é somente depois de fixar a problemática da temporaneidade que se pode lançar alguma luz sobre a obscuridade da doutrina do esquematismo. Seguindo esse caminho é que se poderá mostrar por que, em suas dimensões próprias e em sua função ontológica central, esse âmbito teve de manter-se fechado para Kant. Ele próprio sabia que estava se aventurando num âmbito obscuro: “Esse esquematismo de nosso entendimento, no tocante aos fenômenos e à sua forma, é uma arte escondida nas profundezas da ALMA humana, cujos mecanismos verdadeiros dificilmente poderíamos arrancar à natureza para colocá-los a descoberto diante de nossos olhos”. Para que a expressão “ser” venha a adquirir um sentido comprovável, deve-se esclarecer, em princípio e explicitamente, diante de que Kant, por assim dizer, recua. Em última instância, são justamente os fenômenos da “temporaneidade”, a serem explicitados na presente analítica, que constituem os juízos mais secretos da “razão universal”, cuja analítica foi apresentada por Kant como o “ofício dos filósofos”. STMSC: §6

Sem dúvida, para o propósito da analítica, essa exemplificação histórica é também desviante. Uma das primeiras tarefas da analítica será, pois, mostrar que o princípio de um eu e sujeito, dados como ponto de partida, deturpa, de modo fundamental, o fenômeno da presença [Dasein]. Toda ideia de “sujeito” – enquanto permanecer não esclarecida preliminarmente mediante uma determinação ontológica de seu fundamento – reforça, do ponto de vista ontológico, o ponto de partida do subjectum (hypokeimenon), por mais que, do ponto de vista ôntico, se possa vivamente polemizar contra a “substância da ALMA” ou a “coisificação da consciência”. Para que se possa perguntar o que deve ser entendido positivamente ao se falar de um ser não coisificado do sujeito, da ALMA, da consciência, do espírito, da pessoa, é preciso já se ter verificado a proveniência ontológica da coisificação. Todos estes termos designam regiões de fenômenos, bem determinadas e passíveis de “ulterior formação”, embora o seu uso ocorra sempre junto a uma curiosa indiferença frente à necessidade de se questionar o ser dos entes assim denominados. Não é, portanto, por capricho terminológico que evitamos o uso desses termos bem como das expressões “vida” e “homem” para designar o ente que nós mesmos somos. STMSC: §10

A pessoa não é uma coisa, uma substância, um objeto. Com isso se ressalta e acentua a mesma coisa indicada por Husserl , ao exigir para a unidade da pessoa uma constituição essencialmente diferente das coisas da natureza. O que Scheler diz da pessoa, Husserl também formula para os atos: “Nunca, porém, um ato é um objeto; pois pertence à essência do ser de um ato que este só pode ser vivenciado no próprio exercício e só pode ser dado na reflexão”. Atos são sempre algo não psíquico. Pertence à essência da pessoa apenas existir no exercício de atos intencionais e, portanto, a pessoa em sua essência não é objeto algum. Toda objetivação psíquica e, por conseguinte toda apreensão de um ato como algo psíquico equivale a uma despersonalização. Em todo caso, uma pessoa só é, na medida em que executa atos intencionais ligados pela unidade de um sentido. Ser psíquico nada tem a ver, pois, com ser pessoa. Os atos são executados e a pessoa é executora de atos. Mas qual o sentido ontológico de “executar”? Como se deve determinar, de modo ontologicamente positivo, o modo de ser da pessoa? A questão crítica, contudo, não pode parar por aqui. Está em questão todo o ser do homem, que se costuma apreender como unidade de corpo, ALMA e espírito. Corpo, ALMA, espírito podem designar, por sua vez, regiões de fenômenos que se poderão distinguir tematicamente entre si, com vistas a investigações determinadas. Dentro de certos limites, a sua indeterminação ontológica pode ser desconsiderada. Quando, porém, se coloca a questão do ser do homem, não é possível calculá-lo como soma dos momentos de ser, como ALMA, corpo e espírito que, por sua vez, ainda devem ser determinados em seu ser. E mesmo para uma tentativa ontológica que procedesse desta maneira, dever-se-ia pressupor uma ideia do ser da totalidade. O que, no entanto, constitui um obstáculo e desvia a questão fundamental do ser da presença [Dasein] é a orientação corrente pela antropologia cristã da Antiguidade. A insuficiência de fundamentos ontológicos desta antropologia escapou ao personalismo e à filosofia da vida. A antropologia tradicional traz consigo: STMSC: §10

Na própria presença [Dasein] e para ela, esta constituição de ser é, desde sempre e de alguma maneira, reconhecida. No entanto, para ser também conhecida, o conhecer explícito nessa tarefa toma a si mesmo, enquanto conhecimento do mundo, como relação exemplar entre “ALMA” e mundo. Por isso, conhecer o mundo (noein), dizer e discutir o “mundo” (logos) funcionam como modo primário de ser-no-mundo, embora este último não seja concebido como tal. Porque, no entanto, esta estrutura de ser permanece ontologicamente inacessível, ela é experimentada onticamente como “relação” de um ente (mundo) com outro ente (ALMA). Ademais, porque ser é, numa primeira aproximação, compreendido apoiando-se ontologicamente no ente como ente intramundano, tenta-se compreender esta relação entre os entes mencionados com base nestes entes e no sentido de seu ser, isto é, como ser simplesmente dado. Embora experienciado e reconhecido pré-fenomenologicamente, o ser-no-mundo se torna invisível por via de uma interpretação ontologicamente inadequada. Agora só se conhece a constituição da presença [Dasein] e, na verdade, como algo evidente por si mesmo, na pregnância de uma interpretação inadequada. Desse modo, esta interpretação torna-se o ponto de partida “evidente” para os problemas da epistemologia ou “metafísica do conhecimento”. Pois, o que é mais evidente do que um “sujeito” referir-se a um “objeto” e vice-versa? Esta correlação de sujeito-objeto é um pressuposto necessário. Mas tudo isso, embora inatacável em sua facticidade, ou melhor, justamente por isso, permanece um pressuposto fatal, quando se deixa obscura a sua necessidade e, sobretudo, o seu sentido ontológico. STMSC: §12

A resposta à pergunta: quem é sempre este ente (a presença [Dasein]) aparentemente já foi dada (§9) com a indicação formal das determinações fundamentais da presença [Dasein]. A presença [Dasein] é o ente que eu mesmo sempre sou, o ser é sempre meu. Esta determinação indica uma constituição ontológica, mas também só isso. Ao mesmo tempo contém a indicação ôntica, se bem que a grosso modo, de que sempre este ente é um eu e não um outro. O quem responde a partir de um eu mesmo, do “sujeito”, do si-mesmo. O pronome quem é aquilo que, nas mudanças de atitude e vivência, mantém-se idêntico e, assim, refere-se a esta multiplicidade. Do ponto de vista ontológico, nós o entendemos como algo simplesmente dado para e numa região fechada que, num sentido privilegiado, oferece uma base enquanto o subjectum. Sendo sempre o mesmo, possui, nas muitas alterações, o caráter de si-mesmo. Por mais que se rejeite a substância da ALMA ou o caráter de coisa da consciência (Bewusstsein) e de objetividade da pessoa, ontologicamente fica-se atrelado, já de saída, a algo cujo ser guarda, explícita ou implicitamente, o sentido de ser simplesmente dado. A substancialidade é o guia ontológico da determinação dos entes a partir do qual se responde à pergunta quem. De maneira implícita, concebe-se previamente a presença [Dasein] como algo simplesmente dado. Em todo caso, o caráter indeterminado de seu ser sempre implica este sentido. Ora, o ser simplesmente dado é o modo de ser de um ente que não possui o caráter da presença [Dasein]. STMSC: §25

Mas se o ser-si-mesmo “só” puder ser concebido como um modo de ser desse ente, isto parece equivaler a uma dissolução do “cerne” propriamente dito da presença [Dasein]. Tais temores, no entanto, alimentam-se do preconceito de que o ente em questão tem, no fundo, o modo de ser simplesmente dado, por mais que dele se mantenha afastado o caráter massivo de uma coisa corpórea. Em contrapartida, a “substância” do homem é a existência e não o espírito enquanto síntese de corpo e ALMA. STMSC: §25

Aqui já se torna visível que a disposição está bem longe da simples constatação de um estado de ALMA. E possui tampouco o caráter de uma apreensão reflexiva abrangente que toda reflexão imanente só pode se deparar com “vivências”, porque o pre [das Da] já se abriu na disposição. O “mero humor” abre o pre [das Da] de modo mais originário, embora também o feche de modo ainda mais obstinado do que qualquer não percepção. STMSC: §29

Na sequência das questões enumeradas, a primeira, isto é, o que significa realidade, é questão ontológica. Inexistindo, porém, uma problemática e uma metodologia ontológica pura, esta questão, ao ser colocada expressamente, teve de se atrelar à discussão do problema do “mundo externo”. Pois somente com base num acesso adequado ao real é que se faz possível uma análise da realidade. Desde sempre o conhecimento intuitivo foi considerado como o modo válido de apreensão do real. Ele “se dá” como atitude da ALMA, da consciência (Bewusstsein). Como o caráter de em-si e de independência pertencem à realidade, mescla-se à questão sobre o sentido da realidade a questão sobre a possível independência do real “com relação à consciência” (Bewusstsein), ou seja, a questão sobre a possível transcendência da consciência (Bewusstsein) para a esfera do real. A possibilidade de uma análise ontológica suficiente da realidade dependerá do alcance em que se esclarecerá em seu próprio ser aquilo de que se deve tornar independente e aquilo que deve ser transcendido. Só assim é que se poderá apreender ontologicamente o modo de ser da transcendência. E, por fim, deve-se assegurar o modo primário de acesso ao real, decidindo-se se o conhecimento poderá ou não assumir essa função. STMSC: §43

Aristóteles diz: pragmata tes psyches ton pragmaton homoiomata, as “vivências” da ALMA, as “noemata” (”representações”) são adequações às coisas. Esses enunciados, que de modo algum se propõem como definição expressa da essência da verdade, desempenharam importante papel ao se elaborar posteriormente a essência da verdade como adaequatio intellectus et rei. Tomás de Aquino, que remete sua definição a Avicenna, que, por sua vez, remete ao Livro das definições (século X) de Isaak Israelis, também usou para adaequatio (adequação) os termos correspondentia e convenientia. STMSC: §44

Com essa caracterização da consciência, porém, esboçou-se apenas o horizonte fenomenal para a análise de sua estrutura existencial. Não é que se compare o fenômeno a um apelo mas, enquanto fala, o fenômeno é compreendido a partir da abertura constitutiva da presença [Dasein]. Esta consideração evita, desde o início, o caminho que imediatamente se oferece para uma interpretação da consciência: aquele em que se reconduz a consciência a uma das faculdades da ALMA, entendimento, vontade ou sentimento, ou a explica como uma mistura desses elementos. Face a um fenômeno como a consciência {CH: a saber, de sua proveniência no ser-si-mesmo; mas não será que até agora não passou de uma afirmação?}, salta logo aos olhos a insuficiência ontológico-antropológica da classificação das faculdades da ALMA ou dos atos pessoais. STMSC: §55

O impessoalmente si mesmo é interpelado para o si-mesmo. Esse, contudo, não é o si-mesmo que se pode tornar “objeto” de avaliação, nem o si-mesmo que se empenha com curiosidade e sem descanso no exame de sua “vida interior” e nem tampouco o si-mesmo de uma cupidez “analítica” de olhar os estados da ALMA e suas profundezas. A interpelação do si-mesmo no impessoalmente si mesmo não o leva para um interior a fim de se trancar para o “mundo exterior”. O apelo passa por cima de tudo isso e desfaz tudo isso para interpelar unicamente o si-mesmo que, por sua vez, não é senão no modo de ser-no-mundo. STMSC: §56

Numa rigorosa adequação ao teor fenomenal dado no dizer-eu, Kant mostra, na verdade, que não se justificam as teses ônticas contidas nos caracteres mencionados a respeito da substância da ALMA. com isso, porém, rejeita-se apenas um esclarecimento ôntico falho do eu {CH: e visando a sentenças ônticas e suprassensíveis (Metaphysica specialis)}. Não se obtém, portanto, nenhuma interpretação ontológica do si-mesmo e nem se assegura ou prepara, positivamente, essa interpretação. Embora Kant procure manter, de forma mais rigorosa que seus predecessores, o conteúdo fenomenal do dizer-eu, ele recai, mais uma vez, na mesma ontologia inadequada da substância, cujos fundamentos ônticos foram por ele teoricamente negados ao eu. Isso deve ser mostrado de forma mais precisa a fim de se fixar o sentido ontológico do ponto de partida da análise do si-mesmo no dizer-eu. A análise kantiana do “eu penso” deve ser aqui aduzida apenas como ilustração exigida pelo esclarecimento desta problemática. STMSC: §64

Já salientamos que os humores, não obstante conhecidos do ponto de vista ôntico, não são reconhecidos em sua função existencial originária. São considerados vivências fugazes que “dão cor” a todo o “estado d’ALMA”. O que, para uma simples observação, não passa de um aparecer e desaparecer fugaz pertence, no entanto, à consistência originária da existência. Mas o que pode haver de comum entre os humores e o “tempo”? Que estas “vivências” vêm e vão, que elas transcorrem “no tempo”, é uma constatação trivial; sem dúvida, e, na verdade, uma constatação ôntico-psicológica. A tarefa consiste, porém, em demonstrar a estrutura ontológica da afinação do humor em sua concreção existencial e temporal. Numa primeira aproximação, isso pode apenas significar: tornar visível, ao menos uma vez, a temporalidade do humor. A tese segundo a qual “disposição funda-se, primariamente, no vigor de ter sido” diz que o caráter existencial básico do humor é uma recolocação em... A recolocação não produz o vigor de ter sido, mas a disposição sempre revela, para a análise existencial, um modo do vigor de ter sido. A interpretação temporal da disposição não pode, portanto, pretender deduzir os humores da temporalidade e dissolvê-los em puros fenômenos de temporalização. Trata-se apenas de comprovar que os humores, no que e no modo em que “significam” existenciariamente, só são possíveis com base na temporalidade. A interpretação temporal limitar-se-á aos fenômenos já analisados do medo e da angústia. STMSC: §68

De fato, a história não é o contexto dos movimentos de alteração do objeto nem a sequência de vivências soltas do “sujeito”. Será que o acontecer da história diz respeito ao “encadeamento” de sujeito e objeto? Se o acontecer já remete à relação sujeito-objeto então ainda é preciso questionar o modo de ser deste encadeamento como tal, caso este encadeamento seja o que, no fundo, “acontece”. A tese da historicidade da presença [Dasein] não afirma que é histórico o sujeito sem mundo mas sim o ente que existe como ser-no-mundo. O acontecer da história é o acontecer de ser-no-mundo. Em sua essência, historicidade da presença [Dasein] é historicidade de mundo que, baseada na temporalidade ekstática e horizontal, pertence à sua temporalização. Como a presença [Dasein] existe faticamente, também vem ao encontro o que se descobriu dentro do mundo. Com a existência do ser-no-mundo histórico, tanto o manual quanto o ser simplesmente dado sempre já estão inseridos na história do mundo. Instrumento e obra, os livros, por exemplo, têm seu “destino”, construções e instituições têm sua história. Mas também a natureza é histórica. Sem dúvida ela não o é quando falamos de “história da natureza” e sim como paisagem, região de exploração e ocupação, como campo de batalha e lugar de culto. Como tal, este ente intramundano é histórico e sua história não significa algo “exterior” que simplesmente acompanha a história “interior” da “ALMA”. Chamamos este ente de pertencente à história do mundo. Deve-se, no entanto, atentar para o duplo significado da expressão “história do mundo”, aqui entendida ontologicamente. Significa, por um lado, o acontecer do mundo, em sua unidade existente e essencial com a presença [Dasein]. Mas, na medida em que, junto com o mundo faticamente existente, entes intramundanos são sempre descobertos, também significa o “acontecer” intramundano do manual e do ser simplesmente dado. Com efeito, o mundo só é histórico enquanto mundo dos entes intramundanos. O que “acontece” com o instrumento e a obra como tais possui um caráter próprio de movimentação que permanece, até agora, inteiramente obscuro. Um anel, por exemplo, ao ser “presenteado” e “usado” não sofre, nesse ser, apenas mudanças de lugar. A movimentação do acontecer em que algo “acontece com ele” não se deixa apreender a partir do movimento, entendido como mudança de lugar. Isso vale para todos os “processos” e acontecimentos pertencentes à história do mundo e, de certo modo, também para as “catástrofes naturais”. Mesmo desconsiderando que ultrapassaria os limites do tema, não podemos aprofundar aqui o problema da estrutura ontológica do acontecer próprio da história do mundo. Pois o propósito dessa exposição é conduzir ao enigma ontológico da movimentação do acontecer em geral. STMSC: §75

É pelo conhecimento do caráter ontológico da própria presença [Dasein] humana e não por uma epistemologia ligada ao objeto da consideração histórica que Yorck alcança a compreensão penetrante e clarividente do caráter fundamental da história enquanto “virtualidade”: “O ponto nevrálgico da historicidade reside em que a totalidade dos dados psicofísicos não é (é = ser simplesmente dado da natureza. Observação do autor), mas vive. E uma reflexão sobre si mesmo, que não se dirige a um eu abstrato mas à plenitude do meu si-mesmo, é que haverá de me encontrar historicamente determinado tal como a física me reconhece cosmologicamente determinado. Tanto quanto natureza, eu sou história...” (p. 71). E Yorck, que via com profundidade toda a inautenticidade da “determinação de relações” e toda a “falta de solidez” dos relativismos, não hesita em tirar as últimas consequências desta visão profunda da historicidade da presença [Dasein]. “Mas, por outro lado, para a historicidade interior da autoconsciência é, metodologicamente, inadequada uma sistemática separada da história. Assim como a psicologia não pode abstrair da física, também a filosofia – e justamente quando é crítica – não pode abstrair da historicidade... – A atitude consigo mesmo e a historicidade são como a respiração e a pressão do ar e por mais paradoxal que possa parecer – no aspecto metodológico, a não historização me parece um resto metafísico” (p. 69). “Em minha opinião, existe uma filosofia da história – não se assuste – porque filosofar é viver – quem poderia escrevê-la! Decerto, não no sentido em que até agora se concebeu e buscou, contra o que o senhor irrefutavelmente se pronunciou. Falso, até impossível, embora não seja o único, tem sido o questionamento até hoje existente. Por isso já não há nenhum filosofar real que não seja histórico. A separação entre filosofia sistemática e exposição histórica é, essencialmente, incorreta” (p. 251). “O poder tornar-se prática é, sem dúvida, o fundamento próprio e justo de toda ciência. Mas a práxis matemática não é a única. A finalidade prática de nosso ponto de vista é a pedagógica, no sentido mais amplo e profundo do termo. Ela é a ALMA de toda verdadeira filosofia e a verdade de Platão e Aristóteles” (p. 42s). “O senhor sabe o que eu acho a respeito da possibilidade de uma ciência da ética. Apesar disso, sempre se pode fazer algo melhor. Para quem são propriamente esses livros? Arquivos e arquivos! O único valor digno de nota é o élan de passar da física para a ética” (p. 73). “A filosofia é manifestação da vida e não a expectoração de um pensamento, que não possui nem manifesta solidez por desviar a visão do solo da consciência. Nessa concepção, a tarefa será parcimoniosa em resultados mas complexa e trabalhosa em sua conquista. Liberdade dos preconceitos é a pressuposição, que já é muito difícil de se adquirir” (p. 250). STMSC: §77

Na formação do conceito vulgar de tempo mostra-se uma oscilação curiosa quanto a atribuir ao tempo um caráter “subjetivo” ou “objetivo”. Quando se concebe o tempo como sendo em si, atribui-se então, de preferência, o tempo à “ALMA”. E quando possui um caráter “consciente”, funciona como algo “objetivo”. Na interpretação hegeliana do tempo, ambas as possibilidades são, de certa forma, superadas. Hegel tenta determinar o nexo entre o “tempo” e o “espírito” para, então, tornar compreensível por que o espírito, entendido como história, “cai no tempo”. Em seu resultado, a presente interpretação da temporalidade da presença [Dasein] e da pertença do tempo do mundo à temporalidade parece concordar com Hegel. Considerando, porém, que a presente análise do tempo, já em seu ponto de partida, se distingue, em princípio, de Hegel e que a sua meta, ou seja, a intenção de uma ontologia fundamental, orienta-se contrariamente a ele, faz-se então necessária uma breve exposição da concepção hegeliana da relação entre tempo e espírito, a fim de esclarecer, indiretamente, e de se concluir, provisoriamente, a interpretação ontológico-existencial da temporalidade da presença [Dasein], do tempo do mundo e da origem do conceito vulgar de tempo. STMSC: §78

Mesmo que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a experiência vulgar do tempo só conheça o “tempo do mundo”, ela sempre o remete, de maneira privilegiada, à “ALMA” e ao “espírito”. E isso mesmo quando a orientação explícita e primordial da questão filosófica ainda se acha distante do “sujeito”. Aqui bastam dois testemunhos característicos. Aristóteles diz: [citação em grego de Física IV 14, 233 a 25]. E Santo Agostinho escreve: inde mihi visum est, nihil esse aliud tempus quam distentionem; sed cuius rei nescio; et mirum si non ipsius animi. Desse modo, em princípio, a interpretação da presença [Dasein] como temporalidade não se acha fora do horizonte do conceito vulgar de tempo. Hegel já fez a tentativa explícita de elaborar o nexo entre o tempo, vulgarmente compreendido, e o espírito. Em contraste, para Kant, o tempo, não obstante “subjetivo”, está desligado, colocando-se “ao lado” do “eu penso”. A fundamentação explícita de Hegel, de nexo entre tempo e espírito, é apropriada para se esclarecer indiretamente um pouco mais a presente interpretação da presença [Dasein] como temporalidade e para se demonstrar a origem do tempo do mundo a partir da temporalidade. STMSC: §81

Submitted on:  Thu, 26-Aug-2021, 17:42