
O particípio passado de lassen é gelassen, " (ter sido) deixado, abandonado etc.". Também significa "calmo, sereno, composto". Místicos tais como Mestre Eckhart e Seuse usavam-na no sentido de "devoto, devotado a Deus, pio". Gelassenheit era usada pelos místicos para a paz que se encontra em Deus ao se tomar distância das coisas mundanas. Significa, agora,"calma, compostura, desapego, ‘serenidade’". Esta palavra é similar à apatheia, "impassividade", recomendada pelos estoicos gregos, e ao humor básico de Verhaltenheit, "restrição", recomendado por Heidegger (GA65, 8, 395 etc.). Gelassenheit é um remédio para a tecnologia. A tecnologia nos "aliena [entfremdet]" de nosso "habitat [Heimat] nativo" ao reduzir o tamanho do globo de modo a tornar tudo familiar e sob nosso alcance: "Toda semana filmes os conduzem a reinos da imaginação — muitas vezes estranhos, muitas vezes bastante comuns; inventam um mundo que não é mundo" (GH, 15/48). Isto ameaça nossa Bodenstãndigkeit, nosso "enraizamento no solo": "A perda da Bodenstãndigkeit vem do espírito da época na qual todos nós nascemos" (GH, 16/48s). Esta "posição inteiramente nova do homem no e para com o mundo" origina-se, em última instância, da filosofia. "O mundo agora aparece como um objeto contra o qual o pensamento calculador dirige seus ataques, sem encontrar qualquer resistência. A natureza torna-se agora um gigantesco posto de abastecimento, a fonte de energia para a tecnologia e a indústria modernas" (GH, 17s/50). Pode um "novo solo nos ser devolvido", no qual "a humanidade e toda sua obra poderiam florescer de um novo modo — mesmo na era atômica?" (GH, 21/53). Não podemos resistir à tecnologia. O que podemos fazer é utilizar objetos tecnológicos, " mantendo-nos livres diante deles de modo que sempre possamos largá-los [loslassen]". Ao utilizá-los, podemos "deixá-los repousar [auf sich beruhen lassen] como algo que não afeta nosso ser mais íntimo e autêntico." (GH, 22s/54). "Gostaria de dar a esta atitude de um simultâneo sim e não ao mundo tecnológico um nome antigo: serenidade frente às coisas [die Gelassenheit zu den Dingen]" (GH, 23/54). Junto com a "abertura para o mistério [Geheimnis]", para o "sentido velado do mundo tecnológico" , Gelassenheit pode, desde que cultivada, prover-nos com um novo Bodenstãn-digkeit, de até mesmo, algum dia, "restaurar de forma alterada o antigo Bodenstãndig-keit, agora em via de rápido desaparecimento" (GH, 24/55). Heidegger explora mais minuciosamente a Gelassenheit num diálogo (GH, 29ss/58ss). Envolve a reflexão desinteressada que a tecnologia ameaça eliminar (cf. GH, 25/56). Embora abandone o desejo, não é passiva e não deixa as coisas à deriva. Também não é, como Eckhart supôs, o abandono do egoísmo pecador e do desejo humano em nome do desejo divino. Gelassenheit é o pensamento, mas não o pensamento no sentido da representação. É uma espécie de " aguardamento [Warent]" (GH, 35/62). Aguardar, não esperar, e não aguardar por algo em particular, mas aguardar "por [auf]", pela abertura, que Heidegger então passa a chamar (die) Gegnet, "con-tréa", Gegnet é uma forma antiga de Gegend, que significa "extensão livre" (GH, 39/66, 50/74), sendo quase equivalente à verdade, em sentido heideggeriano (GH, 63/83s). Gelassenheit é Gelassenheit, agora não para com as coisas, mas " para com a contréa [zur Gegnet]" (GH, 50/74). A ideia de Heidegger é a seguinte: a tecnologia não pode deixar os entes serem. Tudo, inclusive o próprio homem, torna-se-lhe um objeto disponível. Em consequência, o aberto, o mundo, não apenas torna-se menor, como corre o risco de desaparecer completamente, reduzindo o homem a um "animal mecanizado", apenas uma coisa em meio às outras (GA65, 98, 275). Gelassenheit é a tentativa do pensador de manter aberto o aberto, "deixando mundo fazer-se mundo [Weltenlassen einer Welt]" (GA65, 391). Nós o fazemos ao adotar uma postura de desapego em relação às invenções tecnológicas que ameaçam nos engolir, deixando que elas sejam, e ao alcançar a "serenidade" dentro do aberto. Assim preservamos o espaço aberto de mundo e nossa integridade humana, por meio de um esforço especial desnecessário no passado. [DH]