hermenêutica

Category: Heidegger - Ser e Tempo etc.
Submitter: mccastro

hermenêutica

Hermeneutik

J — Só posso falar das explicações de Kuki. Elas nunca foram totalmente claras. Para caracterizar seu pensamento, Kuki retornava com muita frequência às palavras "hermenêutica" e "hermenêutico".

P — Se não me falha a memória, usei esse termo pela primeira vez numa preleção posterior, no verão de 1923. Naquele tempo, havia começado as primeiras anotações de Ser e Tempo.

J — Em nossa opinião, o conde Kuki não conseguiu explicar satisfatoriamente esses termos nem quanto ao significado da palavra e nem quanto ao sentido, como o senhor falava, de uma fenomenologia hermenêutica. Kuki acentuava apenas que a expressão designava uma nova corrente da fenomenologia.

P — Sem dúvida, deve ter parecido assim. No entanto, não me interessava nem uma corrente dentro da fenomenologia e nem uma novidade. Pelo contrário, procurava pensar a essência da fenomenologia mais originariamente a fim de recolocá-la dentro de sua pertinência à filosofia ocidental.

J — Mas por que o senhor escolheu a palavra "hermenêutica"?

P — A resposta a essa pergunta se encontra na introdução de Ser e Tempo, §7 C. Mas é com prazer que acrescento mais alguma coisa, de maneira a retirar a impressão de arbitrariedade, que envolve o uso deste termo.

J — Ainda me recordo do escândalo que provocou.

P — Conheci a palavra "hermenêutica" no âmbito de meus estudos de teologia. Naquele tempo, sentia-me particularmente atraído pela questão das relações entre a palavra da Sagrada Escritura e a especulação teológica. Era a mesma questão entre linguagem e ser, só que para mim ainda inacessível e encoberta. Isso explica por que procurava em vão um fio condutor em muitas vias e desvios.

J — Meus conhecimentos de teologia cristã são poucos para que possa perceber o que o senhor diz. É claro que, vindo do estudo da teologia, o senhor possui um conhecimento muito diferente de quem estando de fora leu alguma coisa a esse respeito.

P — Sem a proveniência da teologia, jamais teria chegado ao caminho do pensamento. Ora, proveniência é sempre por-vir.

J — Se proveniência e por-vir se invocam mutuamente e se o esforço de pensar se planta nesta invocação...

P — e, dessa maneira, se torna atualidade verdadeira! — posteriormente, voltei a encontrar a palavra "hermenêutica" em W. Dilthey, na teoria das ciências históricas do espírito. Dilthey se familiarizara com a hermenêutica na mesma forma, a partir de seus estudos de teologia, e especialmente por ter-se ocupado com Schleiermacher.

J — Pelo que conheço de filologia, a hermenêutica é uma ciência que trata dos objetivos, dos métodos e das regras de interpretação das obras literárias.

P — De início e de maneira decisiva, a hermenêutica se formou em contato com a interpretação do livro dos livros, a Bíblia. Do espólio de manuscritos de Schleiermacher, editou-se um curso de 1838, que trazia o título Hermenêutica e Crítica’, com referência especial ao Novo Testamento. Tenho aqui na mão a edição. As duas primeiras frases da "Introdução Geral" dizem:

Hermenêutica e crítica, ambas disciplinas filológicas, ambas artes, são inseparáveis. O exercício de uma pressupõe a outra. De maneira geral, a primeira é a arte de se compreender corretamente o discurso do outro, de preferência o discurso escrito. A segunda é a arte de julgar corretamente e verificar com dados e testemunhos suficientes a autenticidade dos escritos e de suas passagens.

J — Isso significa que, em sentido amplo, hermenêutica pode designar a teoria e a metodologia de toda interpretação, inclusive das artes plásticas, por exemplo.

P — Perfeitamente.

J — O senhor usa hermenêutica nesse sentido amplo?

P — Para manter-me no estilo da pergunta, devo responder: em Ser e Tempo, usa-se o termo hermenêutica numa acepção ainda mais ampla. "Mais amplo, porém, não diz a simples expansão de um significado para um âmbito ainda maior de validade. "Mais amplo" diz aqui proveniente de uma amplidão que brota do vigor originário. Em Ser e Tempo, hermenêutica não se refere nem às regras da arte de interpretação nem à própria interpretação. Refere-se à tentativa de se determinar a essência da interpretação a partir do hermenêutico.

J — O que significa, nesse caso, hermenêutico? Não ouso afirmar, embora seja grande a tentação, que o senhor esteja fazendo um uso arbitrário da palavra "hermenêutico". De todo modo, estou interessado em ouvir uma explicação, se assim puder dizer, autêntica de sua terminologia. Do contrário, a origem da meditação do conde Kuki também ficará envolta em obscuridade.

P — Com prazer satisfaço seu pedido. Mas por favor não espere demais. A coisa é misteriosa e talvez nem se trate de uma coisa.

J — Mas de um processo.

P — Ou de uma con-juntura. Na verdade, logo estas expressões mostrar-se-ão insuficientes.

J — Mas isso só acontecerá se, de algum modo, já tivermos em vista até onde nosso dizer consegue alcançar.

P — O senhor deve ter observado que, em minhas publicações posteriores, não emprego mais as palavras "hermenêutica" e "hermenêutico". [GA12]

Submitted on:  Fri, 27-Aug-2021, 08:53