vazio

Category: Heidegger - Ser e Tempo etc.
Submitter: Murilo Cardoso de Castro

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E não só isso. No solo da arrancada grega para interpretar o ser, formou-se um dogma que não apenas declara supérflua a questão sobre o sentido de ser, como lhe sanciona a falta. Pois se diz: “ser” é o conceito mais universal e mais VAZIO. Como tal, resiste a toda tentativa de definição. Esse conceito mais universal e, por isso, indefinível, prescinde de definição. Todo mundo o emprega constantemente e também compreende o que ele, cada vez, pretende designar. Assim o que, encoberto, inquietava o filosofar antigo e se mantinha inquietante, transformou-se em evidência meridiana, a ponto de acusar quem ainda levantasse a questão de cometer um erro metodológico. STMSC: §1

Da mesma forma, a falta de um manual, cuja disponibilidade cotidiana é tão evidente que dele nem sequer tomamos conhecimento, constitui uma quebra dos nexos referenciais descobertos na circunvisão. A circunvisão depara-se com o VAZIO e só então é que vê para que (wofur) e com que (womit) estava à mão aquilo que faltava. Novamente, anuncia-se o mundo circundante. O que assim aparece não é em si mesmo um manual entre outros e muito menos algo simplesmente dado que fundasse, de alguma maneira, o instrumento à mão. Ele está “aí” [das Da], antes de toda constatação e consideração. Embora já sempre aberto à circunvisão, ele mesmo é inacessível à circunvisão por esta estar sempre voltada para o ente. “Abrir” e “abertura” são termos técnicos que serão empregados, a seguir, no sentido de “des-fechar”. “Abrir” jamais significa, portanto, algo como “concluir através de mediações”. STMSC: §16

Ser-no-mundo é uma estrutura originária e constantemente total. Nos capítulos precedentes (seção I, cap. 2-5), essa estrutura evidenciou-se fenomenalmente como um todo e, sempre com essa base, em seus momentos constitutivos. A visualização preliminar dada no início, a respeito do fenômeno, perdeu agora o VAZIO da primeira caracterização genérica. Na verdade, existe agora uma tamanha variedade fenomenal na constituição do todo estrutural e de seu modo de ser cotidiano que o olhar fenomenológico unificador pode facilmente enganar-se acerca da unidade do todo como tal. Esse olhar, no entanto, deve manter-se o mais livre e o mais seguro para que agora possamos colocar a questão a que aspirava a análise preparatória dos fundamentos da presença [Dasein], qual seja: Como se haverá de determinar, do ponto de vista ontológico-existencial, a totalidade do todo estrutural indicado? STMSC: §39

O por quê a angústia se angustia desvela-se como o com quê ela se angustia: o ser-no-mundo. A mesmidade do com quê e do pelo quê a angústia se angustia se estende até ao próprio angustiar-se. Pois, enquanto disposição, esse constitui um modo fundamental de ser-no-mundo. A mesmidade existencial do abrir e do aberto em que se abre o mundo como mundo, o ser-em como poder-ser singularizado, puro e lançado, evidencia que, com o fenômeno da angústia, se fez tema de interpretação uma disposição privilegiada. A angústia singulariza e abre a presença [Dasein] como “solus ipse”. Esse “solipsismo” existencial, porém, não dá lugar a uma coisa-sujeito isolada no VAZIO inofensivo de uma ocorrência desprovida de mundo. Ao contrário, confere à presença [Dasein] justamente um sentido extremo em que ela é trazida como mundo para o seu mundo e, assim, como ser-no-mundo para si mesma. STMSC: §40

O “VAZIO” e “universalidade” que se impõem onticamente às estruturas existenciais possuem sua própria determinação e plenitude ontológicas. Em vista disso, a própria constituição da presença [Dasein] em seu todo não é simples em sua unidade, mostrando uma articulação estrutural que se exprime no conceito existencial de cura. STMSC: §42

Com relação ao realismo, o idealismo possui uma primazia fundamental, por mais oposto {CH: a saber, à experiência ontológico-existencial} e insustentável que seja no que respeita aos resultados, desde que ele próprio não se compreenda equivocadamente como idealismo “psicológico”. Quando o idealismo acentua que ser e realidade apenas se dão “na consciência” (Bewusstsein), exprime, com isso, a compreensão de que o ser não deve ser esclarecido pelo ente. Como, porém, não se esclarece que aqui se dá uma compreensão de ser e o que diz ontologicamente essa compreensão, isto é, que ela pertence {CH: a presença [Dasein], porém, (pertence) à essência do ser como tal} à constituição de ser da presença [Dasein] e como ela é possível, o idealismo constrói no VAZIO a interpretação da realidade. Que não se pode esclarecer o ser pelo ente e que a realidade só é possível numa compreensão ontológica, isso não dispensa um questionamento do ser da consciência (Bewusstsein), da própria res cogitans. Como consequência à tese idealista, a própria análise ontológica da consciência (Bewusstsein) é pressignada como uma tarefa preliminarmente inevitável. Somente porque o ser é “na consciência” (Bewusstsein), ou seja, é compreensível na presença [Dasein], a presença [Dasein] pode compreender caracteres ontológicos como independência, “em si”, realidade em geral, e conceituá-los. Apenas por isso o ente “independente” pode fazer-se acessível como algo intramundano, que vem ao encontro na circunvisão. STMSC: §43

Há na presença [Dasein] uma “não-totalidade” contínua e ineliminável, que encontra seu fim com a morte. Mas será que se deve interpretar como pendente o fato fenomenal de que esse ainda-não “pertence” à presença [Dasein] enquanto ela é? A que ente nos referimos quando falamos de pendente? Essa expressão significa aquilo que, sem dúvida, “pertence” a um ente, mas ainda falta. Estar pendente e faltar são co-pertinentes. Estar pendente, por exemplo, diz o resto de uma dívida a ser saldada. O que está pendente ainda não é disponível. Liquidar a “dívida” no sentido de suprimir o que está pendente significa “entrar no haver”, isto é, amortizar sucessivamente o resto, com o que se preenche, por assim dizer, o VAZIO do ainda-não até que se “ajunte” a soma devida. Estar pendente significa, portanto: o que é co-pertinente ainda não está ajuntado. Do ponto de vista ontológico, as partes a serem ajuntadas nesse caso não estão à mão, embora possuam o mesmo modo de ser das que já se acham à mão que, por sua vez, não se modificam com a entrada do resto. O remanescente à parte do conjunto é liquidado, ajuntando-se, sucessivamente, as partes. O ente em que alguma coisa ainda está pendente tem o modo de ser do que está à mão. Chamaremos de soma a junção ou a disjunção nela fundada. STMSC: §48

Numa ordem metodológica, a análise existencial precede as questões da biologia, psicologia, teodiceia e teologia da morte. Do ponto de vista ôntico, seus resultados mostram o caráter formal e VAZIO de toda caracterização ontológica. Isso, porém, não deve cegar a visão para a riqueza e complexidade do fenômeno. A morte é uma possibilidade privilegiada da presença [Dasein]. Ora, se a presença [Dasein] nunca pode tornar-se acessível como algo simplesmente dado porque pertence à sua essência a possibilidade de ser de modo próprio, então é tanto menos lícito esperar que a estrutura ontológica da morte possa resultar de uma mera leitura. STMSC: §49

A consciência faz apelo ao si-mesmo da presença [Dasein] para sair da perdição no impessoal. O si-mesmo interpelado permanece indeterminado e VAZIO em seu conteúdo. O apelo ultrapassa o que a presença [Dasein], numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, compreende a seu respeito, a partir da interpretação das ocupações. Não obstante, o si-mesmo é alcançado de modo unívoco e inconfundível. Não apenas o apelo considera o interpelado “sem levar em conta a sua pessoa” como quem apela se mantém numa surpreendente indeterminação. Ele não somente recusa uma resposta às perguntas sobre o nome, a posição, a origem e consideração. Embora jamais se descaracterize, quem apela também não oferece a menor possibilidade de tornar o apelo familiar para uma compreensão da presença [Dasein] orientada “mundanamente”. Quem apela o apelo – isso pertence à sua caracterização fenomenal – mantém afastada de si toda possibilidade de tornar-se conhecido. É contra o seu modo de ser deixar-se atrair pela observação e discussão. A indeterminação e impossibilidade de determinação próprias de quem apela não é um nada negativo, mas um traço positivo. Ele anuncia que quem apela só se empenha em fazer apelo…, que ele só escuta assim e, por fim, que ele não aceita tagarelices a seu respeito. Mas então o fenômeno não exigiria que se abandonasse a questão de quem é que apela? Sim, assim seria quando se escuta existenciariamente o fato do apelo da consciência. Não, porém, para a análise existencial da facticidade do apelo e da existencialidade da escuta. STMSC: §57

A proposição: a presença [Dasein] é, ao mesmo tempo, quem apela e o interpelado perde agora o seu VAZIO formal e a sua evidência. A consciência revela-se como apelo da cura: quem apela é a presença [Dasein] que, no estar-lançado (já-ser-em…), angustia-se com o seu poder-ser. O interpelado é justamente essa presença [Dasein] apelada para assumir o seu poder-ser mais próprio (anteceder-se…). Apela-se a presença [Dasein], interpelando-a para sair da decadência no impessoal (já-ser-junto-ao-mundo-das-ocupações). O apelo da consciência, ou seja, dela mesma, encontra sua possibilidade ontológica em que, no fundo de seu ser, a presença [Dasein] é cura. STMSC: §57

A decisão conduz o ser do pre [das Da] à existência de sua situação. A decisão, porém, delimita a estrutura existencial do poder-ser próprio, testemunhado na consciência, isto é, do querer-ter-consciência. Nele reconhecemos a compreensão adequada do interpelar. Com isso, torna-se inteiramente claro que o apelo da consciência, o fazer apelo ao poder-ser, não propõe nenhum ideal VAZIO de existência, mas faz apelo para a situação. Essa positividade existencial do apelo da consciência, corretamente compreendido, também evidencia a medida em que a limitação da tendência do apelo para culpabilizações anteriormente cometidas e contraídas desconhece o caráter de abertura da consciência e aparentemente só nos transmite a compreensão concreta de sua voz. A interpretação existencial que compreende o interpelar enquanto decisão desvela a consciência como o modo de ser que se acha no fundo da presença [Dasein]. É neste modo de ser que a consciência, testemunhando o poder-ser mais próprio, possibilita para si mesma a sua existência fática. STMSC: §60

O fenômeno assim exposto sob o título de decisão dificilmente poderia confundir-se com um “hábito” VAZIO ou com uma “veleidade” indeterminada. Não é tomando conhecimento que a decisão representa para si uma situação. Ela já se acha em uma situação. A presença [Dasein] já age decidida. Evitamos, propositadamente, o termo “ação”. Pois, por um lado, ele deve ser tomado de modo suficientemente amplo para abranger a atividade e a passividade do que opõe resistência. E, por outro, ele introduz o perigo de um equívoco ontológico da presença [Dasein] em que a decisão seria apenas um comportamento especial da faculdade prática enquanto distinta e oposta à teórica. A cura, porém, no sentido de preocupação em ocupações, abrange o ser da presença [Dasein] de modo tão originário e total que já se deve pressupor como o todo, em qualquer distinção entre atitude prática e teórica. Ela não pode ser construída a partir dessas duas faculdades através de uma dialética necessariamente destituída de fundamentos porque não fundada existencialmente. A decisão, porém, é apenas a propriedade de si mesma possível como cura e acurada na cura. STMSC: §60

O que motiva esse “fugaz” dizer-eu? A decadência da presença [Dasein], em que ela foge de si mesma para o impessoal. O impessoalmente-si-mesmo fala “com naturalidade” eu. No “eu” pronuncia-se o si-mesmo que eu, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, propriamente não sou. Ao empenhar-se na multiplicidade cotidiana e ao caçar as ocupações, o si-mesmo do eu-me-ocupo, esquecido de si, mostra-se como algo simples que se mantém constantemente igual, embora indeterminado e VAZIO. O impessoal, no entanto, é aquilo de que se ocupa. Que o falar ôntica e “naturalmente” eu passa por cima do conteúdo fenomenal da presença [Dasein], significada no eu, isso não justifica, de modo algum, que a interpretação ontológica do eu também passe por cima e imponha um horizonte “categorial” inadequado à problemática do si-mesmo. STMSC: §64



P — O vazio é então a mesma coisa que o nada, isto é, o vigor que procuramos pensar como o outro de toda vigência e de toda ausência?

J — De certo. É por isso que no Japão logo entendemos a conferência O que é metafísica? que nos chegou em 1930, numa tradução feita por um estudante japonês, seu ouvinte. Ainda hoje estranhamos que os europeus pudessem ter caído na armadilha de interpretar niilisticamente o nada discutido na conferência. Para nós, o vazio é o nome mais elevado para se designar o que o senhor quer dizer com a palavra ser...

P — num esforço de pensamento, cujos primeiros passos ainda hoje são inevitáveis. Sem dúvida, foi um esforço que gerou muita confusão, confusão que se funda na própria coisa e se relaciona com o emprego da palavra "ser". Pois o termo pertence, propriamente, ao acervo da linguagem metafísica embora eu o tenha utilizado como título, no esforço por deixar aparecer a essência da metafísica dentro de seus limites. [GA12]

Submitted on:  Wed, 20-Sep-2023, 23:15