ciência

Category: Heidegger - Ser e Tempo etc.
Submitter: Murilo Cardoso de Castro

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Wissenschaft

O “movimento” próprio das ciências se desenrola através da revisão mais ou menos radical e, para elas próprias, não transparente dos conceitos fundamentais. O nível de uma CIÊNCIA determina-se pela sua capacidade de sofrer uma crise em seus conceitos fundamentais. Nessas crises imanentes da CIÊNCIA, vacila e se vê abalado o relacionamento das investigações positivas com as próprias coisas questionadas. Hoje em dia, surgem tendências em quase todas as disciplinas no sentido de colocar as pesquisas em novos fundamentos. STMSC: §3

A CIÊNCIA aparentemente mais rigorosa e de estrutura mais sólida, a matemática, encontra-se numa “crise de fundamentos”. A disputa entre formalismo e intuicionismo desenvolve-se visando a conquistar e assegurar um modo de acesso mais originário ao que deve constituir o objeto dessa CIÊNCIA. A teoria da relatividade na física nasceu da tendência de apresentar o nexo próprio da natureza tal como ela se constitui “em si” mesma. Como teoria das condições de acesso à própria natureza, a teoria da relatividade procura preservar a imutabilidade das leis do movimento através de uma determinação de toda a relatividade, colocando-se com isso diante da questão da estrutura da região de objetos por ela pressuposta, isto é, do problema da matéria. Na biologia, surge a tendência de questionar o organismo e a vida independentemente das determinações do mecanicismo e vitalismo para, assim, definir, de maneira nova, o modo de ser do vivo como tal. Nas ciências históricas do espírito, acentuou-se o empenho pela própria realidade histórica através da tradição e de sua transmissão: desse modo, a história da literatura torna-se história dos problemas. A teologia procura uma interpretação mais originária do ser do homem para Deus, já prelineada e restrita pelo sentido da própria fé. Pouco a pouco, a teologia começa a entender de novo a visão de Lutero, para quem a sistematização dogmática repousa sobre um “fundamento” que, em sua origem, não advém de um questionamento da fé e cuja conceituação, mais do que insuficiente para a problemática teológica, a encobre e até mesmo deturpa. STMSC: §3

Conceitos fundamentais são determinações em que o âmbito de objetos, que serve de base a todos os objetos temáticos de uma CIÊNCIA, é compreendido previamente de modo a guiar todas as pesquisas positivas. Trata-se, portanto, de conceitos que só alcançam verdadeira legitimidade e “fundamentação” mediante uma investigação prévia que corresponda propriamente ao respectivo âmbito. Ora, à medida que cada um desses âmbitos é extraído de um setor de entes, essa investigação prévia, produtora de conceitos fundamentais, significa uma interpretação desse ente na constituição fundamental de seu ser. Essa pesquisa deve anteceder às ciências positivas. E isso ela pode fazer. O trabalho de Platão e Aristóteles é uma prova. Trata-se, no entanto, de uma fundamentação das ciências que se distingue fundamentalmente da “lógica” claudicante, que analisa o estado momentâneo de uma CIÊNCIA em seu “método”. Aqui, porém, trata-se de uma lógica produtiva, uma vez que salta antecipando, por assim dizer, determinado âmbito de ser, abrindo-o, pela primeira vez, para a sua constituição de ser e colocando à disposição das ciências positivas as estruturas obtidas enquanto indicações transparentes para um questionamento. Assim, o primário filosoficamente não é uma teoria da conceituação da história, nem a teoria do conhecimento histórico e nem a epistemologia do acontecer histórico enquanto objeto da CIÊNCIA histórica, mas sim a interpretação daquele ente propriamente histórico em sua historicidade. Nesse sentido, a contribuição positiva da Crítica da razão pura, de Kant, por exemplo, reside no impulso que deu à elaboração do que pertence propriamente à natureza e não em uma “teoria do conhecimento”. A sua lógica transcendental é uma lógica do objeto a priori, a natureza, enquanto âmbito ontológico. STMSC: §3

Em geral, pode-se definir a CIÊNCIA como o todo de um conjunto de fundamentação de proposições verdadeiras. Essa definição não é completa nem alcança o sentido de CIÊNCIA. Como atitude do homem, as ciências possuem o modo de ser desse ente (homem). Apreendemos terminologicamente esse ente como presença [Dasein]. A pesquisa científica não é o único modo de ser possível desse ente e nem sequer o mais próximo. Ademais, se comparada a qualquer outro, a presença [Dasein] é um ente privilegiado. Cabe agora tornar visível esse privilégio, mesmo que de maneira provisória. Ao fazê-lo, a discussão deve conceber previamente as análises posteriores que são propriamente demonstrativas. STMSC: §4

No quadro da elaboração fundamental da questão do ser não se poderá transmitir uma interpretação temporânea detalhada dos fundamentos da antiga ontologia – sobretudo em seu grau mais puro e elevado, alcançado por Aristóteles. Ao invés disso, ela proporcionará uma interpretação do tratado de Aristóteles sobre o tempo. Essa análise pode ser escolhida como critério discriminador (Diskrimen) das bases e limites da antiga CIÊNCIA do ser. STMSC: §6

Com a questão diretriz sobre o sentido de ser, a investigação acha-se dentro da questão fundamental da filosofia em geral. O modo de tratar esta questão é fenomenológica. Isso, porém, não significa que o tratado prescreva “um ponto de vista” ou uma “corrente”. Pois, enquanto se compreender a si mesma, a fenomenologia não é e não pode ser nem uma coisa nem outra. A expressão “fenomenologia” significa, antes de tudo, um conceito de método. Não caracteriza a quididade real dos objetos da investigação filosófica, o quê dos objetos, mas o seu modo, o como dos objetos. Quanto mais autenticamente opera um conceito de método e quanto mais abrangentemente determina o movimento dos princípios de uma CIÊNCIA, tanto maior a originariedade em que ele se radica numa discussão com as coisas elas mesmas e tanto mais se afastará do que chamamos de artifício técnico, tão numeroso em disciplinas teóricas. STMSC: §7

O termo tem dois componentes: fenômeno e logos; ambos remontam a étimos gregos. Exteriormente, o termo fenomenologia corresponde, no que respeita a sua formação, à teo-logia, bio-logia, socio-logia, termos traduzidos por CIÊNCIA de Deus, da vida, da sociedade. Fenomenologia seria, portanto, a CIÊNCIA dos fenômenos. Vamos expor uma concepção preliminar da fenomenologia de duas maneiras: primeiro, caracterizando o que designam os dois componentes do termo, a saber, “fenômeno” e “logos” e, segundo, fixando o sentido da expressão, resultante de sua composição. A história da palavra, que apareceu segundo se presume na Escola de Wolff, não tem aqui importância. STMSC: §7

Compreender o sentido do conceito formal de fenômeno e de seu uso devido na acepção vulgar é uma pressuposição indispensável para se compreender o conceito fenomenológico de fenômeno, prescindindo de como se deva determinar mais precisamente o que se mostra. Antes de se fixar a concepção preliminar de fenomenologia, deve-se definir o significado de logos, a fim de se esclarecer em que sentido a fenomenologia pode ser “CIÊNCIA dos” fenômenos. STMSC: §7

O termo fenomenologia tem, portanto, um sentido diferente das designações como teologia, etc. Estas evocam os objetos de suas respectivas ciências, em seu conteúdo quididativo. O termo “fenomenologia” não evoca o objeto de suas pesquisas nem caracteriza o seu conteúdo quididativo. A palavra se refere exclusivamente ao modo como se demonstra e se trata o que nesta CIÊNCIA deve ser tratado. Ciência “dos” fenômenos significa: apreender os objetos de tal maneira que se deve tratar de tudo que está em discussão, numa demonstração e procedimento diretos. O mesmo sentido possui a expressão, no fundo tautológica, de “fenomenologia descritiva”. Descrição não indica aqui um procedimento nos moldes, por exemplo, da morfologia botânica. A expressão tem novamente um sentido proibitivo: afastar toda determinação que não seja demonstrativa. O caráter da própria descrição, o sentido específico do logos, só poderá ser estabelecido a partir da “própria coisa” que deve ser descrita, ou seja, só poderá ser determinado cientificamente segundo o modo em que os fenômenos vêm ao encontro. Considerado formalmente, o significado do conceito formal e vulgar de fenômeno legitima a denominação de fenomenologia a toda demonstração de um ente tal como se mostra em si mesmo. STMSC: §7

Em seu conteúdo, a fenomenologia é a CIÊNCIA do ser dos entes – é ontologia. Ao esclarecer as tarefas de uma ontologia, surgiu a necessidade de uma ontologia fundamental, que possui como tema a presença [Dasein], isto é, o ente dotado de um privilégio ôntico-ontológico. Pois somente a ontologia fundamental pode colocar-se diante do problema cardeal, a saber, da questão sobre o sentido de ser em geral {CH: ser – de modo algum um gênero; o ser não é para o ente em sua generalidade; o “em geral” = katholou = no todo de: ser dos entes; sentido da diferença}. Da própria investigação resulta que o sentido metodológico a da descrição fenomenológica é interpretação. O logos da fenomenologia da presença [Dasein] possui o caráter de hermeneuein. Por meio deste hermeneuein anunciam-se o sentido próprio de ser e as estruturas fundamentais de ser que pertencem à presença [Dasein] como compreensão de ser. Fenomenologia da presença [Dasein] é hermenêutica no sentido originário da palavra em que se designa o ofício de interpretar. Desvendando-se o sentido de ser e as estruturas fundamentais da presença [Dasein] em geral, abre-se o horizonte para qualquer investigação ontológica ulterior dos entes não dotados do caráter de presença [Dasein]. A hermenêutica da presença [Dasein] torna-se também uma “hermenêutica” no sentido de elaboração das condições de possibilidade de toda investigação ontológica. E, por fim, visto que a presença [Dasein], enquanto ente na possibilidade da existência possui um primado ontológico frente a qualquer outro ente, a hermenêutica da presença [Dasein] como interpretação ontológica de si mesma adquire um terceiro sentido específico – embora primário do ponto de vista filosófico –, o sentido de uma analítica da existencialidade da existência. Trata-se de uma hermenêutica que elabora ontologicamente a historicidade da presença [Dasein] como condição ôntica de possibilidade da história fatual. Por isso é que, radicada na hermenêutica da presença [Dasein], a metodologia das ciências históricas do espírito só pode receber a denominação de hermenêutica em sentido derivado. STMSC: §7

Depois de se ter delineado positivamente o tema de uma investigação, é sempre importante caracterizar negativamente seu propósito, embora discussões sobre o que não deve acontecer se tornem, muitas vezes, infrutíferas e estéreis. O que se deve mostrar é somente que os questionamentos e {CH: elas não visam em absoluto à presença [Dasein]} até hoje desenvolvidos a sobre a presença [Dasein] não alcançam o problema propriamente filosófico, apesar de todos os resultados objetivos alcançados. Enquanto apresentarem essa deficiência, não poderão pretender alcançar o que, no fundo, visam. As delimitações da analítica existencial face à antropologia, psicologia e biologia referem-se somente à questão ontológica de princípio. “Do ponto de vista epistemológico”, essas investigações são necessariamente insuficientes simplesmente porque a estrutura de CIÊNCIA destas disciplinas – o que nada tem a ver com a “cientificidade” daqueles que trabalham para o seu desenvolvimento – tornou-se cada vez mais questionável. Por isso, são necessários novos impulsos, oriundos de uma problemática ontológica. STMSC: §10

As investigações de W. Dilthey são animadas pela insistente questão da “vida”. Ele procura compreender as “vivências” dessa “vida”, em seus nexos de estrutura e desenvolvimento, a partir da totalidade da própria vida. O que a sua “psicologia enquanto CIÊNCIA do espírito” possui de filosoficamente relevante não se explica por se orientar pelos elementos e átomos psíquicos e de não mais pretender costurar os pedaços da vida psíquica, mas sim por visar à “totalidade da vida” e a suas “figuras” de conjunto. A sua importância filosófica reside em estar, em tudo isso, sobre-tudo, a caminho da questão da “vida”. Decerto, também aqui se revelam, da maneira mais nítida, os limites da sua problemática e da conceituação usada para exprimi-la. Junto com Dilthey e Bergson, participam dessas limitações todas as correntes do “personalismo” por eles determinadas, e todas as tendências para uma antropologia filosófica. Mesmo a interpretação fenomenológica da personalidade, em princípio mais radical e lúcida, não alcança a dimensão da questão do ser da presença [Dasein]. Malgrado todas as diferenças no questionamento, na condução e orientação da concepção de mundo, as interpretações da personalidade elaboradas por Husserl e Scheler concordam e coincidem naquilo que ambos possuem de negativo. Tanto um quanto o outro já não colocam a questão sobre o ser da pessoa em si mesmo. Como exemplo, tomamos a interpretação de Scheler, não apenas por já se achar publicada , mas, sobretudo porque Scheler acentua explicitamente o ser da pessoa como tal, e busca determiná-lo mediante uma diferenciação entre o ser específico dos atos face a tudo que é “psíquico”. Para Scheler, a pessoa nunca pode ser pensada como uma coisa ou uma substância. “A pessoa é, sobretudo, a unidade da vivência diretamente vivenciada com as vivências e não uma coisa somente pensada atrás e fora do que se vivência diretamente”. A pessoa não é um ser substancial, nos moldes de uma coisa. Além disso, o ser da pessoa não pode exaurir-se em ser um sujeito de atos racionais, regidos por determinadas leis. STMSC: §10

A mesma coisa vale para a “psicologia”, cujas tendências antropológicas não se podem mais desconsiderar hoje em dia. A falta de fundamentos ontológicos, entretanto, não pode ser compensada inscrevendo-se a antropologia e a psicologia numa biologia geral. Na ordem de uma possível apreensão e interpretação, a biologia como “CIÊNCIA da vida” funda-se, embora não exclusivamente, na ontologia da presença [Dasein]. A vida é um modo próprio de ser, mas que, em sua essência, só se torna acessível na presença [Dasein]. A ontologia da vida se exerce seguindo o caminho de uma interpretação privativa; ela determina o que deve ser, de modo que uma coisa possa ser apenas vida. A vida não é nem coisa simplesmente dada nem presença [Dasein]. A presença [Dasein], por sua vez, não poderá ser determinada ontologicamente, tomando-a como vida – (indeterminada do ponto de vista ontológico) à qual ainda se acrescenta uma outra coisa. STMSC: §10

A formulação, hoje muito em voga, de que o homem “tem seu mundo circundante” nada diz do ponto de vista ontológico, enquanto esse “ter” permanecer indeterminado. É que, em sua possibilidade, “ter” se funda na constituição existencial do ser-em. Sendo essencialmente desse modo, a presença [Dasein] pode, então, descobrir explicitamente o ente que lhe vem ao encontro no mundo circundante, saber algo a seu respeito, dele dispor, ter “mundo”. A formulação “ter um mundo circundante”, tão trivial do ponto de vista ôntico, é, do ponto de vista ontológico, um problema. Para resolvê-lo é imprescindível determinar, primeiro, de maneira suficiente e ontológica, o ser da presença [Dasein]. Porque a biologia se vale dessa constituição de ser – sobretudo depois de K.E. von Baer – não se deve deduzir um “biologismo” do uso filosófico dessa constituição. É que também a biologia, enquanto CIÊNCIA positiva, não pode encontrar e determinar essa estrutura. Ao contrário, deve pressupô-la e dela a fazer {CH: será que aqui se trata mesmo de “mundo”? Apenas meio ambiente! Essa “ambiência” corresponde ao “ter”. Presença jamais “tem” mundo} um uso constante. Em si mesma essa estrutura só poderá ser filosoficamente explicitada como um a priori do objeto temático da biologia, depois de ter sido compreendida como estrutura da presença [Dasein]. Apenas orientando-se pela estrutura ontológica assim concebida é que se poderá definir a priori, através de uma privação, a constituição de ser da “vida”. Tanto do ponto de vista ôntico como ontológico, o ser-no-mundo, enquanto ocupação tem a primazia. Na analítica da presença [Dasein], essa estrutura recebe uma interpretação fundamental. STMSC: §12

Esse contexto de fundamentação dos modos de ser-no-mundo constitutivos do conhecimento de mundo evidencia que, ao conhecer, a presença [Dasein] adquire um novo estado de ser, no tocante ao mundo já sempre descoberto. Esta nova possibilidade de ser pode desenvolver-se autonomamente, pode tornar-se uma tarefa e, como CIÊNCIA, assumir a direção do ser-no-mundo. Todavia, não é o conhecimento quem cria pela primeira vez um “commercium” do sujeito com um mundo e nem este commercium surge de uma ação exercida pelo mundo sobre o sujeito. Conhecer, ao contrário, é um modo da presença [Dasein] fundado no ser-no-mundo. É por isso também que, como constituição fundamental, o ser-no-mundo requer uma interpretação preliminar. STMSC: §13

Na exposição do problema da mundanidade (§14), indicou-se a importância de se obter uma via de acesso adequada ao fenômeno. Na discussão crítica do ponto de partida cartesiano teremos, pois, de perguntar: Que modo de ser da presença [Dasein] é fixado como a via de acesso adequada ao que, enquanto extensio, Descartes identifica com o ser do “mundo”? A única via de acesso autêntica para esse ente é o conhecer, a intellectio, no sentido do conhecimento físico-matemático. O conhecimento matemático vale como o modo de apreensão dos entes, capaz de propiciar sempre uma posse mais segura do ser dos entes nele apreendidos. Em sentido próprio, só é aquilo que tem o modo de ser capaz de satisfazer o ser acessível no conhecimento matemático. Este ente é aquilo que sempre é o que é; por isso, ao experimentar o modo de ser do mundo, o que constitui o seu ser propriamente dito é aquilo que pode mostrar o caráter de permanência constante, como remanens capax mutationum. Propriamente só é o que sempre permanece. E é isso o que a matemática conhece. O que no ente se torna acessível pela matemática constitui, portanto, o seu ser. Assim, de uma determinada ideia de ser, inserida no conceito de substancialidade e a partir da ideia de um conhecimento relativo ao ente assim conhecido, dita-se, por assim dizer, ao “mundo” o seu ser. Descartes não retira o modo de ser dos entes intramundanos deles mesmos. Com base numa ideia de ser, velada em sua origem e não demonstrada em sua legitimidade (ser = constância do ser simplesmente dado), ele prescreve ao mundo o seu ser “próprio”. Não é, portanto, principalmente o apoiar-se numa CIÊNCIA particular e, por acaso, especialmente estimada, a matemática, o que determina {CH: mas direcionamento pelo matemático como tal, mathema e ón} a ontologia do mundo, mas uma orientação fundamentalmente ontológica pelo ser enquanto constância do ser simplesmente dado, cuja apreensão é lograda, de modo excepcional, pelo conhecimento matemático. Descartes cumpre, assim, de maneira filosoficamente explícita, a virada das influências da ontologia tradicional sobre a física matemática moderna e os seus fundamentos transcendentais. STMSC: §21

Que a circunvisão cotidiana se equivoque, devido à abertura primordial da disposição e esteja amplamente sujeita a ilusão, isto é, segundo a ideia de um conhecimento absoluto de “mundo”, um me ón. Em razão dessas avaliações ontologicamente inadequadas, desconsidera-se inteiramente a positividade existencial da possibilidade de ilusão. É justamente na visão instável e de humor variável do “mundo” que o manual se mostra em sua mundanidade específica, a qual nunca é a mesma. A observação teórica sempre reduziu o mundo à uniformidade do que é simplesmente dado; dentro dessa uniformidade subsiste encoberta sem dúvida uma nova riqueza de determinações, passíveis de descoberta. Contudo, mesmo a mais pura theoria não conseguiu ultrapassar todos os humores; o que é ainda simplesmente dado em sua pura configuração apenas se mostra para a observação quando consegue chegar a si, demorando tranquilamente junto a..., na rastone e diagoge. O demonstrar da constituição ontológico-existencial de toda determinação de conhecimento na disposição do ser-no-mundo não deve ser confundido com a tentativa de abandonar onticamente a CIÊNCIA ao “sentimento”. STMSC: §29

A investigação filosófica deve decidir-se por perguntar pelo modo de ser da linguagem. Será a linguagem um instrumento à mão dentro do mundo? Terá ela o modo de ser da presença [Dasein], ou nem uma coisa e nem outra? De que modo é o ser da linguagem para que ela possa estar “morta”? O que diz ontologicamente que uma língua nasce e morre? Dispomos de uma CIÊNCIA da linguagem, a linguística, e, no entanto, o ser daquele ente por ela tematizado é obscuro; até mesmo o horizonte para um questionamento e uma investigação se acha velado. Será um acaso que os significados sejam, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, “mundanos”, prelineados pela significância do mundo e até mesmo, em sua maioria, “espaciais”? Ou será esse “estado de coisas” necessário do ponto de vista ontológico-existencial? Se assim for, por quê? A investigação filosófica deve renunciar a uma “filosofia da linguagem” a fim de poder questionar e investigar “as coisas elas mesmas” e assim colocar-se em condições de trazer uma problemática conceituai clara. STMSC: §34

A constituição fundamental da visão mostra-se numa tendência ontológica para “ver”, própria da cotidianidade. Nós a designamos com o termo curiosidade. Em suas características, a curiosidade não se limita a ver, exprimindo a tendência para um tipo especial de encontro perceptivo com o mundo. Interpretaremos esse fenômeno com um propósito fundamentalmente ontológico-existencial. Não limitaremos a sua orientação pelo conhecimento que, já cedo e na filosofia grega, foi concebido, não por acaso, segundo o “prazer de ver”. O tratado que figura em primeiro lugar na coletânea dos escritos ontológicos de Aristóteles começa com a seguinte frase: pantes anthropoi tou eidenai oregontai physei (Metafísica, A 1, 980 a), “no ser do homem reside, de modo essencial, o acurar do ver”. Assim começa uma investigação que procura descobrir a origem da pesquisa científica acerca dos entes e de seu ser a partir deste modo de ser da presença [Dasein]. A interpretação grega da gênese existencial da CIÊNCIA não é casual. Aquilo que se pressignou na sentença de Parmênides – to gar auto noein estin te kai einai – chega, nessa interpretação, a uma compreensão temática e explícita. O ser é tudo que se mostra numa percepção puramente intuitiva, e somente esse tipo de ver descobre o ser. A verdade originária e autêntica reside na intuição pura. Desde então, essa tese tem sido o fundamento da filosofia ocidental. Dela a dialética de Hegel retirou o seu moto e somente à sua base é que se tornou possível. STMSC: §36

Devemos refletir, portanto: nesse testemunho, a presença [Dasein] pronuncia-se sobre si mesma de “modo originário”, não se determinando por interpretações teóricas e nem aspirando a isso. Ademais, deve-se observar que o ser da presença [Dasein] se caracteriza pela historicidade que, de todo modo, só deve ser comprovada ontologicamente. Se, com base em seu ser, a presença [Dasein] é “histórica”, então um enunciado oriundo de sua história e que a ela remete, sendo anterior a toda CIÊNCIA, possui um peso particular, embora, sem dúvida, não seja um peso puramente ontológico. A compreensão de ser que se encontra na própria presença [Dasein] pronuncia-se pré-ontológicamente. No testemunho a seguir, deve-se evidenciar que a interpretação ontológica não é uma invenção. Como “construção” ontológica, ela possui o seu solo e, com este, os seus delineamentos elementares. STMSC: §42

De há muito, a filosofia correlacionou {CH: physis em si mesma já é aletheia, porque kryptesthai philei} verdade e ser. A primeira descoberta do ser dos entes com Parmênides “identifica” o ser com o compreender que percebe o ser: to gar auto noein estin te kai einai. Aristóteles, em seu esboço de história da descoberta dos archai, ressalta que os filósofos que o antecederam foram conduzidos pelas “coisas elas mesmas”, e estas os obrigaram a prosseguir o questionamento: auto to pragma odopoiesen autois kai synenankase zetein. Ele também caracterizou esse mesmo estado de coisas com as seguintes palavras: anankazomenos de akolouthein tois phainomenois , ele (Parmênides) foi obrigado a perseguir aquilo que se mostrou em si mesmo. Em outra passagem, diz: hyp autos tes aletheias anankazomenoi, eles investigavam pressionados pela “verdade”. Aristóteles denomina essa investigação de philosophein peri tes aletheias, “filosofar” sobre a “verdade” ou, também, apophainesthai peri tes aletheias, deixar e fazer ver numa demonstração, com respeito e no âmbito da “verdade”. A própria filosofia se determina como episteme tis tes aletheias,, CIÊNCIA da “verdade”. Ao mesmo tempo, porém, caracteriza-se como uma episteme, he theorei to ón he ón, como CIÊNCIA que considera o ente enquanto ente, ou seja, no tocante ao seu ser. STMSC: §44

O que significa aqui “investigar sobre a ‘verdade’”, CIÊNCIA da “verdade”? Será que, nessa investigação, a verdade é tratada como tema no sentido de uma teoria do conhecimento ou do juízo? Certamente não, pois “verdade” significa o mesmo que “coisa”, “o que se mostra em si mesmo”. O que então significa a expressão “verdade”, quando usada terminologicamente como “ente” e “ser”? STMSC: §44

O ser – e não o ente – só “se dá” porque a verdade é. Ela só é à medida e enquanto a presença [Dasein] é. Ser e verdade “são”, de modo igualmente originários. Só se pode questionar concretamente o que significa dizer o ser “é” e de onde ele deve {CH: diferença ontológica} se distinguir de todos os entes, caso se esclareça o sentido de ser e a envergadura da compreensão de ser. Só então pode-se discutir originariamente o que pertence ao conceito de uma CIÊNCIA do ser como tal, de suas possibilidades e derivações. E na delimitação dessa investigação e de sua verdade é que se pode determinar ontologicamente a investigação como descoberta dos entes e de sua verdade. STMSC: §44

Não seria, contudo, mais fácil e seguro responder à questão do que diz o apelo, indicando-se “simplesmente” o que comumente se ouve ou se deixa de ouvir em todas as experiências da consciência, ou seja, que o apelo endereça-se à presença [Dasein] como “o que está em dívida” ou, como no caso da consciência que adverte, remete a uma “dívida” possível ou ainda, enquanto “boa” consciência, confirma não “ter CIÊNCIA de nenhuma dívida”? Se ao menos essa “dívida”, experimentada unanimemente, não recebesse tantas e variadas determinações nas experiências e interpretações da consciência! Mas mesmo que o sentido dessa “dívida” pudesse ser apreendido univocamente, o conceito existencial desse ser e estar em dívida permaneceria obscuro. Se, no entanto, a própria presença [Dasein] se endereça a si como “estando em dívida”, de onde provém a ideia de dívida senão da interpretação do ser da presença [Dasein]? Mas, novamente, apresenta-se a questão: Quem diz que somos e estamos em dívida e o que significa dívida? A ideia de dívida não pode surgir arbitrariamente e ser imposta à presença [Dasein]. Caso seja possível uma compreensão da essência da dívida, então essa possibilidade já deve estar esboçada na presença [Dasein]. Como podemos encontrar a pista capaz de nos levar ao desvelamento do fenômeno? Todas as investigações ontológicas de fenômenos como dívida, consciência, morte devem apoiar-se naquilo que a interpretação cotidiana da presença [Dasein] “diz” a seu respeito. No modo de ser decadente da presença [Dasein] acontece igualmente que, na maior parte das vezes, sua interpretação se “orienta” impropriamente, não indo ao encontro da “essência”, porque lhe é estranho o questionamento ontológico originário. Mas em toda falsa visão se dá igualmente uma indicação da “ideia” originária do fenômeno. De onde, porém, tomamos o critério para o sentido existencial originário da “dívida”? De que essa “dívida” surge como predicado do “eu sou”. Será que no ser da presença [Dasein] como tal subsiste algo que, na interpretação imprópria, é compreendido como “dívida”, de tal modo que, existindo faticamente, também já se é e está em dívida? STMSC: §58

A estrutura ontológica desse ente, que eu mesmo sou, centra-se na autoconsistência da existência. Porque o si-mesmo não pode ser concebido nem como substância e nem como sujeito, estando fundado na existência, a análise do impropriamente-si-mesmo, isto é, do impessoal, foi totalmente abandonada ao fluxo da interpretação preparatória da presença [Dasein]. Tendo-se, agora, retomado expressamente o si-mesmo na estrutura da cura e, assim, da temporalidade, a interpretação temporal da autoconsistência e da consistência do não si-mesmo recebe uma gravidade própria. Ela necessita de um desenvolvimento temático especial. Contudo, ela não apenas propicia uma segurança correta contra os paralogismos e as questões ontologicamente inadequadas sobre o ser do eu, como também oferece, ao mesmo tempo, e de acordo com sua função central, uma visão mais originária da estrutura de temporalização da temporalidade. Esta se desvela como a historicidade da presença [Dasein]. A proposição: a presença [Dasein] é histórica confirma-se, do ponto de vista ontológico-existencial, como enunciado fundamental. Ela está muito distante de uma constatação meramente ôntica do fato de a presença [Dasein] se dar numa “história mundial”. A historicidade da presença [Dasein] é, porém, o fundamento de uma possível compreensão historiográfica que, por sua vez, comporta a possibilidade de uma elaboração explícita da historiografia como CIÊNCIA. STMSC: §66

Assim como os demais fenômenos temporais da linguagem: “modos de ação ou aspectos” e “graus de tempo”, os tempos não surgem porque a fala “também” se pronuncia a respeito de processos “temporais”, isto é, que vêm ao encontro “no tempo”. Seu fundamento também não reside em que o falar transcorre “num tempo psíquico”. Como toda fala sobre..., de... e para... funda-se na unidade ekstática da temporalidade, a fala é, em si mesma, temporal. Os modos de ação ou aspectos estão enraizados na temporalidade originária da ocupação, quer esta se relacione ou não com o intratemporal. Com a ajuda do conceito vulgar e tradicional do tempo, de que se vale forçosamente a CIÊNCIA linguística, nunca se pode colocar o problema da estrutura existencial e temporal dos modos de ação ou aspectos. Porque, no entanto, toda fala é sempre um falar sobre entes, mesmo que, primária e predominantemente, não tenha o sentido de enunciado teórico, a análise da constituição temporal da fala e a explicação dos caracteres temporais das estruturas linguísticas só podem ser abordadas em se desenvolvendo o problema do nexo fundamental entre ser e verdade, com base na problemática da temporalidade. Pois, com isso, também se poderá delimitar o sentido ontológico do “é”, que uma teoria artificial da proposição e do juízo desfigurou, reduzindo-o à “cópula”. O “aparecimento” do “significado” e a possibilidade de uma elaboração conceitual só podem se esclarecer e compreender, ontologicamente, com base na temporalidade da fala, isto é, da presença [Dasein] em geral. STMSC: §68

Se, no movimento das análises ontológico-existenciais, questionamos o “aparecimento” da descoberta teórica a partir da ocupação guiada pela circunvisão, então o que se problematiza não é a história e o desenvolvimento ôntico da CIÊNCIA e nem suas condições fatuais ou seus fins mais imediatos. Buscando a gênese ontológica da atitude teórica, colocamos a seguinte questão: Quais as condições de possibilidade, inerentes à constituição ontológica da presença [Dasein] e existencialmente necessárias, para que a presença [Dasein] possa existir no modo da pesquisa científica? Esse questionamento visa a um conceito existencial da CIÊNCIA. Deste difere o conceito “lógico”, que compreende a CIÊNCIA no tocante a seus resultados, determinando-a como “um sistema de fundamentação de sentenças verdadeiras, isto é, de validade universal”. O conceito existencial compreende a CIÊNCIA como modo da existência e, portanto, como modo do ser-no-mundo, que descobre e abre o ente e o seu ser. Só se pode, no entanto, desenvolver de forma plena e suficiente a interpretação existencial da CIÊNCIA, caso se esclareça, a partir da temporalidade da existência, o sentido de ser e do “nexo”entre ser e verdade. As reflexões que se seguem preparam a compreensão desta problemática central, somente a partir da qual se poderá desdobrar a ideia da fenomenologia por oposição ao conceito preliminar, já indicado de forma introdutória. STMSC: §69

É fácil caracterizar a transformação do manejo e uso “práticos”, guiados pela circunvisão, em pesquisa “teórica”, considerando que: a pura visualização dos entes aparece na medida em que a ocupação se abstém de todo manejo. O decisivo para o “aparecimento” do comportamento teórico residiria, portanto, no desaparecimento da práxis. É justamente quando se toma a ocupação “prática” como o modo primário e predominante de ser da presença [Dasein] que a “teoria” deve sua possibilidade ontológica à falta da práxis, ou seja, a uma privação. Todavia, a suspensão de um manejo específico no modo de lidar da ocupação não faz da circunvisão orientadora um simples resto. A ocupação é que se desloca para a mera circunvisão de si mesma. com isso, ainda não se atinge, em absoluto, a atitude “teórica” da CIÊNCIA. Ao contrário, demorando-se na suspensão do manejo, a ocupação pode assumir o caráter de uma circunvisão ainda mais aguçada, no sentido de “testar”, examinar o que foi alcançado ou de supervisionar o “funcionamento” que justamente agora “está parado”. Abster-se do uso instrumental significa tão pouco “teoria” que, na “observação” demorada, a circunvisão permanece inteiramente atada ao instrumento ocupado e à mão. O lidar “prático” possui seus modos próprios de demorar-se. E assim como a prática tem sua visão específica (”teoria”), também a pesquisa teórica não se dá sem a sua própria práxis. A leitura dos números e medidas, que resultam de um experimento, frequentemente necessita de uma construção “técnica” complexa que ordena a experiência. A observação no microscópio depende da produção de “preparados”. A escavação arqueológica, que precede à interpretação do “achado”, exige as mais intensas manipulações. E mesmo a elaboração mais “abstrata” de problemas e a fixação do que foi obtido manipulam instrumentos de escrever, por exemplo. Por mais “desinteressantes” e “evidentes” que possam ser estes aspectos inerentes à pesquisa científica, do ponto de vista ontológico, eles não são, de forma alguma, indiferentes. A referência explícita a que a atitude científica, enquanto modo de ser-no-mundo, não é apenas uma “atividade puramente espiritual” pode ser considerada prolixa e supérflua. Se, nessa trivialidade, ao menos ficasse claro que não é nada fácil perceber onde se situa, propriamente, a fronteira ontológica entre a atitude “teórica” e a “não teórica”! STMSC: §69

Costuma-se considerar válido que, na CIÊNCIA, todo manejo se acha apenas a serviço da pura observação, da descoberta e abertura investigadoras das “coisas elas mesmas”. Tomado no sentido mais amplo, o “ver” regula todos os “dispositivos”, conservando a primazia. “Qualquer que seja a maneira e qualquer que seja o meio em que um conhecimento se relacione com um objeto, a intuição é a maneira e o meio pelos quais o conhecimento se relaciona imediatamente a estes e é a ela que visa todo pensamento enquanto meio (grifo do autor)”. Desde os primórdios da ontologia grega até hoje, a ideia do intuitus é que orienta toda interpretação do conhecimento, seja ele de fato alcançável ou não. De acordo com a primazia da “visão”, deve-se iniciar a demonstração da gênese existencial da CIÊNCIA, mediante a caracterização da circunvisão que rege a ocupação “prática”. STMSC: §69

Por que, na fala modificada, aquilo sobre o que se fala, no caso o martelo pesado, se mostra diferentemente? Isto não se deve nem a um afastamento do manuseio e nem a uma mera ofesconsideração do caráter instrumental deste ente, mas sim a uma “nova” reconsideração do manual que vem ao encontro como algo simplesmente dado. A compreensão de ser, que orienta o modo de lidar na ocupação com o ente intramundano, transformou-se. Mas será que uma atitude científica já se constitui por se “conceber” como simplesmente dado algo que, numa reflexão guiada pela circunvisão, está à mão? Ademais, um manual pode também converter-se em tema de investigação e determinação científicas como, por exemplo, a pesquisa de um mundo circundante, do ambiente dentro de uma biografia histórica. O nexo instrumental à mão todos os dias, sua origem histórica, sua valorização e seu papel fático na presença [Dasein], faz-se objeto da economia como CIÊNCIA. Para poder tornar-se “objeto” de uma CIÊNCIA, o que está à mão não precisa perder o seu caráter instrumental. A modificação da compreensão de ser não parece ser um constitutivo necessário da gênese da atitude teórica “frente às coisas”. Certamente, caso modificação signifique: troca do modo de ser deste ente que aí se encontra tal como o compreender o compreende. STMSC: §69

Neste caso, pertence à modificação da compreensão ontológica uma abolição de limites do mundo circundante. Mas, pela compreensão agora dominante no sentido de ser simplesmente dado, a abolição de limites se transforma, ao mesmo tempo, em demarcação da “região” do ser simplesmente dado. Quanto mais adequadamente se compreende o ser daquele ente a ser pesquisado a partir da compreensão de ser e quanto mais se articula, em suas determinações fundamentais, a totalidade de um ente enquanto possível região de objetos de uma CIÊNCIA, tanto mais se poderá assegurar cada perspectiva da questão metodológica. STMSC: §69

O exemplo clássico do desenvolvimento histórico de uma CIÊNCIA, e também da gênese ontológica, é o aparecimento da física-matemática. O decisivo para a sua elaboração não reside no alto apreço pela observação dos “fatos” nem na “aplicação” da matemática para se determinar os processos naturais. O decisivo reside no projeto matemático da natureza ela mesma. Este projeto descobre, antecipadamente, um ser simplesmente dado que é constante (matéria), e abre o horizonte para uma perspectiva orientadora, relativa a seus momentos constitutivos e passíveis de determinação quantitativa (movimento, força, lugar e tempo). Somente “à luz” de uma natureza assim projetada é que se pode encontrar um “fato” e se empreender um experimento delimitado e regulado pelo projeto. A fundamentação” das “ciências fatuais” só foi, portanto, possível porque o pesquisador compreendeu que, em princípio, não existem “meros fatos”. Primariamente, o decisivo no projeto matemático da natureza não é, pois, o matemático como tal, mas o abrir de um a priori. Assim, o caráter exemplar da CIÊNCIA matemática da natureza também não reside em sua exatidão específica e na obrigatoriedade para “todos”, mas em que, nela, o ente temático é descoberto da única maneira em que pode ser descoberto, a saber, no projeto prévio de sua constituição de ser. Com a elaboração dos conceitos e fundamentos da compreensão de ser orientadora, determina-se a condução dos métodos, a estrutura da conceitualização, a possibilidade inerente de verdade e certeza, o modo de fundamentação e comprovação, o modo de obrigatoriedade e comunicação. O todo destes momentos constitui o pleno conceito existencial da CIÊNCIA. STMSC: §69

O projeto científico dos entes que, já de algum modo, vêm ao encontro possibilita a compreensão explícita de seu modo de ser e isto de tal maneira que assim se tornam manifestos os possíveis caminhos para a pura descoberta dos entes intramundanos. Chamamos de tematização o todo desse projeto ao qual pertencem a articulação da compreensão de ser, a delimitação dela derivada do setor de objetos e o prelineamento da conceitualização adequada ao ente. A tematização visa liberar os entes que vêm ao encontro dentro do mundo de modo que possam ser “projetados para” uma pura descoberta, isto é, que possam tornar-se objetos. A tematização objetiva. Não é ela que “põe” pela primeira vez o ente. Ela o libera de tal maneira que ele possa ser questionado e determinado “objetivamente”. O ser objetivante junto ao que é simplesmente dado dentro do mundo tem o caráter de uma atualização privilegiada. Ela difere da atualidade da circunvisão, sobretudo, por a descoberta da respectiva CIÊNCIA só aguardar a descoberta do que é simplesmente dado. Essa atualização da descoberta funda-se, existenciariamente, numa decisão da presença [Dasein] na qual ela se projeta para o poder-ser na “verdade”. Este projeto é possível já que o ser e estar na verdade constitui uma determinação existencial da presença [Dasein]. Não caberia aqui prosseguir com a investigação da origem da CIÊNCIA a partir da existência em sentido próprio. Trata-se apenas de compreender que e como a tematização dos entes intramundanos pressupõe a constituição fundamental da presença [Dasein], isto é, o ser-no-mundo. STMSC: §69

Mas será que após a presente interpretação da temporalidade nós nos encontramos em condições de rever, com maior sucesso, a delimitação existencial da estrutura da cotidianidade? Ou será que o que se revelou nesse fenômeno conturbador foi justamente a insuficiência CIÊNCIA da presente explicação da temporalidade? Será que não deixamos, constantemente, a presença [Dasein] quieta em certas posições e situações, desconsiderando “de forma consequente” que, vivendo o seu dia-a-dia, a presença [Dasein] se estende “temporalmente” na sequência de seus dias? Não é possível apreender a monotonia, o hábito, o “tal como ontem, será o hoje e o amanhã”, o “na maior parte das vezes”, sem reconduzi-los a esse estender-se “temporal” da presença [Dasein]. STMSC: §71

Se a questão da historicidade remonta a essas “origens”, então, com ela, já se decidiu o lugar do problema da história. Não é na historiografia enquanto CIÊNCIA da história que se deve buscar a história. Mesmo que o modo científico e teórico de tratar o problema da “história” não vise apenas a um esclarecimento “epistemológico” (Simmel) da apreensão histórica, nem a uma lógica da construção conceituai da exposição histórica (Rickert), orientando-se igualmente pelo “lado do objeto”, mesmo assim, nesse tipo de questionamento, a história só se faz acessível, em princípio, como objeto de uma CIÊNCIA. com isso, deixa-se de lado o fenômeno fundamental da história, que está à base e precede toda possível tematização historiográfica. É somente a partir do modo de ser da história, a historicidade, e de seu enraizamento na temporalidade que se poderá concluir de que maneira a história pode tornar-se objeto possível da historiografia. STMSC: §72

Abertura e interpretação pertencem essencialmente ao acontecer da presença [Dasein]. A partir do modo de ser deste ente que existe historicamente, nasce a possibilidade existenciária de uma abertura e de uma apreensão explícita da história. A tematização, ou seja, a abertura historiográfica da história é a pressuposição de uma possível “construção do mundo histórico pelas ciências do espírito”. A interpretação existencial da historiografia como CIÊNCIA visa, unicamente, comprovar a sua proveniência ontológica da historicidade da presença [Dasein]. Somente a partir dela é que se podem marcar os limites dentro dos quais uma epistemologia, orientada pelas vicissitudes da atividade científica, pode expor-se aos acasos de seus questionamentos. STMSC: §72

A ambiguidade do termo “história” mais imediata e frequentemente observada, embora não seja de forma alguma “fortuita”, anuncia-se em que esse termo significa tanto a “realidade histórica” como a sua possível CIÊNCIA. Deve-se afastar, provisoriamente, o sentido de “história” como CIÊNCIA histórica (historiografia). STMSC: §73

Há significados de “história” que não possuem o sentido de CIÊNCIA histórica nem a visam como objeto. Eles se referem ao próprio ente que nem sempre é, necessariamente, objetivado. Dentre estes sentidos reivindicam um uso privilegiado aqueles em que este ente é compreendido como passado. Este significado explicita-se na seguinte fala: isto ou aquilo já pertence à história. “Passado” significa aqui não ser mais simplesmente dado ou então ainda ser simplesmente dado, embora sem “efeito” sobre o “presente”. De todo modo, entendido como o passado, o histórico também possui o significado contrário, quando dizemos: não se pode escapar a da história. História significa, nesse caso, o passado {CH: que outrora antecedeu, mas agora ficou para trás} mas que ainda surte efeito. Como quer que seja, o histórico, na acepção de passado, é compreendido numa relação positiva ou privativa de efeito sobre o “presente”, no sentido do “aqui e agora” real. “Passado” tem ainda uma curiosa duplicidade de sentido. O passado pertence, indiscutivelmente, ao tempo anterior, aos acontecimentos de então. Mas pode, não obstante, ainda ser simplesmente dado “hoje”, como por exemplo as ruínas de um templo grego. com ele, um “pedaço do passado” ainda está “presente”. STMSC: §73

Sem que se dê conta, a interpretação existencial da historicidade da presença [Dasein] resvala, constantemente, nas sombras. As obscuridades não diminuirão enquanto não se explicitarem as possíveis dimensões de um questionamento adequado e, em tudo isso, enquanto não se explicitar o enigma de ser ou, como agora ficou claro, o enigma do movimento de sua essência. Pode-se, não obstante, ousar um projeto da gênese ontológica da CIÊNCIA historiográfica, partindo-se da historicidade da presença [Dasein]. Este projeto serve de preparação para o esclarecimento da tarefa de uma destruição da história da filosofia, a ser posteriormente realizada. STMSC: §75

É indiscutível que, como toda CIÊNCIA, a historiografia, no sentido de modo de ser da presença [Dasein], faticamente sempre “depende” da “concepção de mundo dominante”. Além desse fato, deve-se, porém, questionar a possibilidade ontológica da origem das ciências a partir da constituição ontológica da presença [Dasein]. Essa origem ainda é pouco transparente. No presente contexto, a análise só deve fazer conhecer a origem existencial da historiografia em suas grandes linhas para, assim, deixar vir mais claramente à luz a historicidade da presença [Dasein] e seu enraizamento na temporalidade. STMSC: §76

Se o ser da presença [Dasein] é, fundamentalmente, histórico, então é manifesto que toda CIÊNCIA dos fatos está presa a esse acontecer. A historiografia pressupõe, no entanto, a historicidade da presença [Dasein] de maneira própria e privilegiada. STMSC: §76

De início, isto será esclarecido, indicando-se que, como CIÊNCIA da história da presença [Dasein], a historiografia deve “pressupor” o ente originariamente histórico como seu possível “objeto”. Todavia, para que um objeto histórico se torne acessível, não apenas deve se dar a história. Da mesma forma, não apenas o conhecimento historiográfico, na condição de comportamento da presença [Dasein] num acontecer, é histórico. Mas, segundo a sua natureza e estrutura ontológicas, toda abertura historiográfica da história já está, em si mesma, radicada na historicidade da presença [Dasein], quer se tenha cumprido de fato ou não. É a esse contexto que se está referindo ao se falar da origem existencial da historiografia a partir da historicidade da presença [Dasein]. Do ponto de vista do método, esclarecê-lo significa: projetar, ontologicamente, a ideia da historiografia a partir da historicidade da presença [Dasein]. Mas não se trata de adequar nem de “abstrair” o conceito da historiografia de uma atividade científica que hoje é um fato. Pois, em princípio, o que garante que esse procedimento de fato represente a historiografia segundo as suas possibilidades originárias e próprias? Mesmo se este fosse o caso, a respeito do qual não nos pronunciamos, só se poderia “descobrir” no fato o conceito, mediante a compreensão da ideia de historiografia. Por outro lado, a ideia existencial da historiografia não adquire maior direito se os historiógrafos a confirmarem porque ela concordaria com a sua atividade. Ela também não se torna “falsa” porque discordaria. STMSC: §76

A ideia da historiografia como CIÊNCIA reside em assumir como tarefa própria a abertura do que é histórico. Toda CIÊNCIA se constitui, primariamente, pela tematização. Aquilo que é conhecido pré-cientificamente como ser-no-mundo que se abriu, projeta-se em seu ser específico. Com esse projeto, delimita-se a região de um ente, as suas vias de acesso adquirem “direção” metodológica e a estrutura de conceitualização da interpretação ganha um prelineamento. Postergando a questão da possibilidade de uma “história do presente”, atribuímos à historiografia a tarefa de abertura do “passado”. Nesse caso, a tematização historiográfica da história só é possível depois de se ter aberto o “passado”. Deixando-se inteiramente de lado se estão disponíveis as fontes suficientes para uma apresentação historiográfica do passado, o caminho para o passado deve estar aberto, no sentido de retorno historiográfico. Não é, contudo, evidente se isso acontece e como isso é possível. STMSC: §76

Restos, monumentos, relatos ainda dados constituem “material” possível para a abertura concreta da presença [Dasein] que vigora por ter sido presença [Dasein]. Estes só podem tornar-se material historiográfico porque, em seu próprio modo de ser, possuem o caráter de pertencer à história do mundo. E apenas se tornam material por serem previamente compreendidos em sua intramundanidade. O mundo já projetado determina-se pela interpretação do material “conservado” de uma história do mundo. A constatação, depuração e o asseguramento do material é que dão o passo rumo ao “passado”, mas eles já pressupõem o ser histórico para a presença [Dasein] que vigora por ter sido presença [Dasein], isto é, para a historicidade da existência do historiógrafo. E esta que funda, existencialmente, a historiografia como CIÊNCIA, até mesmo nos dispositivos mais sutis e “artesanais”. STMSC: §76

A abertura historiográfica do “passado”, fundada na retomada que tem a marca do destino, é tão pouco “subjetiva” que somente ela é capaz de garantir a “objetividade” da historiografia. Pois a objetividade de uma CIÊNCIA regula-se, primariamente, pela possibilidade de apresentar, sem encobrimentos, à compreensão o seu ente temático na originariedade de seu ser. Em nenhuma CIÊNCIA, a “validade universal” dos parâmetros e as exigências de “universalidade”, imposta pelo impessoal e por sua compreensibilidade, são menos critérios possíveis de “verdade” do que na historiografia própria. STMSC: §76

A apresentação concreta da origem existencial e histórica da historiografia realiza-se na análise da tematização, constitutiva dessa CIÊNCIA. O ponto nevrálgico da tematização historiográfica é elaborar a situação hermenêutica. Esta se abre com o decidir da presença [Dasein], que historicamente existe, por abrir, na retomada, o que vigora por ter sido presença [Dasein]. É a partir da abertura própria (”verdade”) da existência histórica que se deve expor a possibilidade e a estrutura da verdade histórica. Porque, no entanto, quer referidos a seus objetos ou a seus modos de tratamento, os conceitos fundamentais das ciências historiográficas são conceitos existenciais, a teoria das ciências do espírito pressupõe uma interpretação existencial temática da historicidade da presença [Dasein]. Ela é a meta constante do trabalho de pesquisa de W. Dilthey, e se esclarece, mais profundamente, através das ideias do Conde Yorck von Wartenburg. STMSC: §76

O trabalho de pesquisa de Dilthey pode ser dividido, esquematicamente, em três campos: estudos sobre a teoria das ciências do espírito e sua delimitação frente às ciências da natureza; pesquisas sobre a história das ciências do homem, da sociedade e do estado; investigações sobre uma psicologia que deve expor “todo o fato homem”. Pesquisas sobre epistemologia, sobre a história da CIÊNCIA e sobre a psicologia hermenêutica perpassam e se misturam constantemente. Onde uma perspectiva de visão prepondera, as demais já constituem motivo e meios. O que se apresenta como dualidade, “tentativas” inseguras e acidentais, é a inquietação elementar com uma meta: trazer a “vida” para uma compreensão filosófica e assegurar, para essa compreensão, um fundamento hermenêutico a partir da “vida ela mesma”. Tudo está centrado na “psicologia”, que deve compreender a “vida” em seu nexo de desenvolvimento e ação históricos como o modo em que o homem é, tomando-a ao mesmo tempo como objeto possível e como raiz das ciências do espírito. A hermenêutica é a explicação que esse compreender dá de si mesmo, e somente de forma derivada é que se apresenta como metodologia da historiografia. STMSC: §77

Tendo em vista as discussões de seu tempo que levavam as suas próprias pesquisas sobre a fundamentação das ciências do espírito unilateralmente para o campo da epistemologia, Dilthey orientou, em grande parte, as publicações nesse sentido. Para ele a “lógica das ciências do espírito” é tão pouco central como a sua “psicologia” também não aspira “apenas” a melhorar a CIÊNCIA positiva do psíquico. STMSC: §77

Da mesma maneira que a lógica de Platão e de Aristóteles, estas exigências de Yorck constituem, no fundo, uma lógica que precede e conduz as ciências. Nela se insere a tarefa de elaborar, positiva e radicalmente, as diferentes estruturas categoriais dos entes: da natureza e daquele ente que é história (da presença [Dasein]). Yorck acha que as investigações de Dilthey “salientam pouco a diferença genérica entre o ôntico e o histórico” (p. 191, grifo do autor). “Em especial, reivindica-se a comparação como método das ciências do espírito. Aqui eu me separo do senhor. Toda comparação é estética, está sempre presa à figura. Windelband remete à história as figuras. O conceito de tipo, proposto pelo senhor, é por isso totalmente interno. Pois trata-se de carateres e não de figuras. Já para Windelband, história é uma série de imagens, de figuras singulares, uma exigência estética. Para o cientista da natureza, além da CIÊNCIA entendida como uma espécie de meio de tranquilização humana, resta somente o deleite estético. O conceito de história que o senhor propõe é, no entanto, o de uma conexão de forças, de unidades de força, às quais a categoria figura só poderia ser aplicada em sentido figurado” (p. 193). STMSC: §77

É pelo conhecimento do caráter ontológico da própria presença [Dasein] humana e não por uma epistemologia ligada ao objeto da consideração histórica que Yorck alcança a compreensão penetrante e clarividente do caráter fundamental da história enquanto “virtualidade”: “O ponto nevrálgico da historicidade reside em que a totalidade dos dados psicofísicos não é (é = ser simplesmente dado da natureza. Observação do autor), mas vive. E uma reflexão sobre si mesmo, que não se dirige a um eu abstrato mas à plenitude do meu si-mesmo, é que haverá de me encontrar historicamente determinado tal como a física me reconhece cosmologicamente determinado. Tanto quanto natureza, eu sou história...” (p. 71). E Yorck, que via com profundidade toda a inautenticidade da “determinação de relações” e toda a “falta de solidez” dos relativismos, não hesita em tirar as últimas consequências desta visão profunda da historicidade da presença [Dasein]. “Mas, por outro lado, para a historicidade interior da autoconsciência é, metodologicamente, inadequada uma sistemática separada da história. Assim como a psicologia não pode abstrair da física, também a filosofia – e justamente quando é crítica – não pode abstrair da historicidade... – A atitude consigo mesmo e a historicidade são como a respiração e a pressão do ar e por mais paradoxal que possa parecer – no aspecto metodológico, a não historização me parece um resto metafísico” (p. 69). “Em minha opinião, existe uma filosofia da história – não se assuste – porque filosofar é viver – quem poderia escrevê-la! Decerto, não no sentido em que até agora se concebeu e buscou, contra o que o senhor irrefutavelmente se pronunciou. Falso, até impossível, embora não seja o único, tem sido o questionamento até hoje existente. Por isso já não há nenhum filosofar real que não seja histórico. A separação entre filosofia sistemática e exposição histórica é, essencialmente, incorreta” (p. 251). “O poder tornar-se prática é, sem dúvida, o fundamento próprio e justo de toda CIÊNCIA. Mas a práxis matemática não é a única. A finalidade prática de nosso ponto de vista é a pedagógica, no sentido mais amplo e profundo do termo. Ela é a alma de toda verdadeira filosofia e a verdade de Platão e Aristóteles” (p. 42s). “O senhor sabe o que eu acho a respeito da possibilidade de uma CIÊNCIA da ética. Apesar disso, sempre se pode fazer algo melhor. Para quem são propriamente esses livros? Arquivos e arquivos! O único valor digno de nota é o élan de passar da física para a ética” (p. 73). “A filosofia é manifestação da vida e não a expectoração de um pensamento, que não possui nem manifesta solidez por desviar a visão do solo da consciência. Nessa concepção, a tarefa será parcimoniosa em resultados mas complexa e trabalhosa em sua conquista. Liberdade dos preconceitos é a pressuposição, que já é muito difícil de se adquirir” (p. 250). STMSC: §77



Como a arte, a CIÊNCIA tampouco é, apenas, um desempenho cultural do homem. É um modo decisivo de se apresentar tudo que é e está sendo.

Por isso devemos dizer: o que se chama de CIÊNCIA ocidental europeia determina também, em seus traços fundamentais e em proporção crescente, a realidade na qual o homem de hoje se move e tenta sustentar-se.

Meditando o sentido deste processo, percebe-se que, no mundo do Ocidente e nas épocas de sua história, a CIÊNCIA desenvolveu um poder que não se pode encontrar em nenhum outro lugar da terra e que está em vias de estender-se por todo o globo terrestre.

Será a CIÊNCIA, apenas, um conjunto de poderes humanos, alçado a uma dominação planetária, onde seria ainda admissível pensar que a vontade humana ou a decisão de alguma comissão pudesse um dia desmontá-lo? Ou será que nela impera um destino superior? Será que algo mais do que um simples querer conhecer da parte do homem rege a CIÊNCIA? É o que realmente acontece. Impera uma outra coisa. Mas esta outra coisa se esconde de nós, enquanto ficarmos presos às representações habituais da CIÊNCIA.

Esta outra coisa consiste numa conjuntura que atravessa e rege todas as ciências, embora lhes permaneça encoberta. Somente uma clareza suficiente, sobre o que é a CIÊNCIA, será capaz de nos fazer ver esta conjuntura. Mas como poderemos alcançá-la? A forma mais segura parece ser uma descrição da atividade científica atual. Uma tal exposição poderia mostrar como, de há muito, as ciências se encaixam, de maneira sempre mais decidida e ao mesmo tempo cada vez menos perceptível, em todas as formas da vida moderna: na indústria, na economia, no ensino, na política, na guerra, na comunicação e publicidade de todo tipo. É importante conhecer este enquadramento. Todavia, para se poder apresentá-lo, devemos já saber em que repousa a essência da CIÊNCIA. Pode-se dizê-lo numa frase concisa: a CIÊNCIA é a teoria do real. [GA7 - Ciência e Pensamento do Sentido, 39]


E, no entanto, como teoria, no sentido de tratar, a CIÊNCIA é uma elaboração do real terrivelmente intervencionista. Precisamente com este tipo de elaboração, a CIÊNCIA corresponde a um traço básico do próprio real. 0 real é o vigente que se ex-põe e des-taca em sua vigência. Este destaque se mostra, entretanto, na Idade Moderna, de tal maneira que estabelece e consolida a sua vigência, transformando-a em objetidade. A CIÊNCIA corresponde a esta regência objetivada do real à medida que, por sua atividade de teoria, ex-plora e dis-põe do real na objetidade. A CIÊNCIA põe o real. E o dis-põe a pro-por-se num conjunto de operações e processamentos, isto é, numa sequência de causas aduzidas que se podem prever. Desta maneira, o real pode ser previsível e tornar-se perseguido em suas consequências. É como se assegura do real em sua objetidade. Desta decorrem domínios de objetos que o tratamento científico pode, então, processar à vontade. A representação processadora, que assegura e garante todo e qualquer real em sua objetidade processável, constitui o traço fundamental da representação com que a CIÊNCIA moderna corresponde ao real. 0 trabalho, que tudo decide e que a representação realiza em cada CIÊNCIA, constitui a elaboração que processa o real e o ex-põe numa objetidade. Com isto, todo real se transforma, já de antemão, numa variedade de objetos para o asseguramento processador das pesquisas científicas. [GA7 48]


Muito se diz que a técnica moderna é uma técnica incomparavelmente diversa de toda técnica anterior, por apoiar-se e assentar-se na moderna CIÊNCIA exata da natureza. Entrementes, percebeu-se, com mais nitidez, que o inverso também vale: como CIÊNCIA experimental, a física moderna depende de aparelhagens técnicas e do progresso da construção de aparelhos. É correta a constatação desta recíproca influência entre técnica e física. Mas fica sendo apenas uma mera constatação histórica de fatos e não diz nada a respeito do fundo e fundamento em que se baseia esta dependência recíproca. A questão decisiva permanece sendo: de que essência é a técnica moderna para poder chegar a utilizar as ciências exatas da natureza? [GA7, p. 18]


Permanece verdade: o homem da idade da técnica vê-se desafiado, de forma especialmente incisiva, a comprometer-se com o desencobrimento. Em primeiro lugar, ele lida com a natureza, enquanto o principal reservatório das reservas de energia. Em consequência, o comportamento dis-positivo do homem mostra-se, inicialmente, no aparecimento das ciências modernas da natureza. O seu modo de representação encara a natureza, como um sistema operativo e calculável de forças. A física moderna não é experimental por usar, nas investigações da natureza, aparelhos e ferramentas. Ao contrário: porque, já na condição de pura teoria, a física leva a natureza a ex-por-se, como um sistema de forças, que se pode operar previamente, é que se dis-põe do experimento para testar, se a natureza confirma tal condição e o modo em que o faz.

Por outro lado, não há dúvida de que as ciências matemáticas da natureza surgiram quase dois séculos antes da técnica moderna. Como, então, já poderiam estar a seu serviço? Os fatos depõem no sentido contrário do que se pretende. A técnica moderna só se pôs realmente em marcha quando conseguiu apoiar-se nas ciências exatas da natureza. Considerada na perspectiva dos cálculos da historiografia, esta constatação é correta. Considerada, porém, à luz do pensamento da História tal constatação não alcança a verdade. [GA7, p. 24]


Para a cronologia historiográfica, o início das ciências modernas da natureza se localiza no século XVII, enquanto que a técnica das máquinas só se desenvolveu na segunda metade do século XVIII. Posterior na constatação historiográfica, a técnica moderna é, porém, historicamente anterior no tocante à essência que a rege. [GA7, p. 25]


Já ouvimos que, para a determinação da essência da coisa - com a excepção do começo, no tempo dos Gregos -, foi decisivo o surgimento da moderna CIÊNCIA da natureza. A transformação do estar-aí, subjacente a este acontecimento, modificou o carácter do pensamento moderno e, também, o da metafísica e preparou a necessidade de uma critica da razão pura. Deste modo, é necessário, por variadas razões, que elaboremos uma representação mais precisa do carácter da moderna CIÊNCIA da natureza. Apesar disto, devemos logo renunciar a outras questões particulares. Aqui, nem sequer podemos percorrer os momentos essenciais da história desta CIÊNCIA. Muitos e dos mais importantes factos desta história são conhecidos e, no entanto, o nosso saber acerca das conexões impulsionadoras mais interiores deste movimento é ainda muito escasso e obscuro. É apenas totalmente claro o facto de que a transformação da CIÊNCIA se realizou tendo por base um confronto secular e duradoiro com os conceitos fundamentais e os princípios do pensar, quer dizer, com a posição-de-fundo acerca das coisas e do ente em geral. Um tal confronto somente poderia ser levado a cabo através de um domínio completo da tradição da teoria medieval da natureza, tal como da dos antigos; exigiria uma amplitude e uma segurança pouco comuns do pensamento conceptual e, finalmente, um domínio das novas experiências e modos-de-proceder. Tudo isto teria como pressuposto uma singular paixão de exigir um saber capaz de fornecer normas, que só tem paralelo nos Gregos; um saber que, antes de mais e permanentemente, põe em questão os próprios pressupostos e, desta forma, procura fundamentar. [...]

A transformação da CIÊNCIA realizar-se-á sempre através da própria CIÊNCIA. Mas, nessa transformação, a CIÊNCIA apoia-se num duplo fundamento: 1) na experiência-do-trabalho, quer dizer, na direção e no modo de domínio e de utilização do ente; 2) na metafísica, quer dizer, no projeto do saber fundamental sobre o Ser, sob o qual o ente se estrutura, na ordem do saber. Experiência-de-trabalho e projeto-de-ser estão, assim, numa relação de reciprocidade e reúnem-se sempre num traço fundamental da atitude e do estar-aí. [GA41 72]


Com as três referidas caracterizações da CIÊNCIA moderna - CIÊNCIA de fatos, ser experimental e CIÊNCIA que mede – não encontramos o traço fundamental da nova posição do saber. O traço fundamental deve residir naquilo que, fornecendo-lhe a medida, determina completamente, de um modo igualmente originário, o movimento-de-fundo da CIÊNCIA enquanto tal: trata-se da relação-de-trabalho com as coisas e do projeto metafísico da coisalidade da coisa. [GA41 75]


Nossa existência - na comunidade [Gemeinschaft] de pesquisadores, professores e estudantes - é determinada pela CIÊNCIA. O que acontece (geschehen) de essencial nas raízes da nossa existência (Dasein) na medida em que a CIÊNCIA se tornou nossa paixão (Leidenschaft)? [MHeidegger QUE É METAFÍSICA?]

Submitted on:  Wed, 25-Aug-2021, 22:31