
éthique ethics O silêncio de Heidegger sobre a ética não deve ser encarado como esquecimento nem desprezo. Em Ser e Tempo, sete parágrafos contemplam o que a língua corrente nomeia «consciência moral»; eles formam em verdade, não uma espécie de «ética existencial», mas o momento de um aprofundamento decisivo daquilo que abre e mantém o modo de existir deste ente que somos, cuja singularidade é que ele está aberto em uma entente do ser. O que se mantém por detrás da palavra usada de ética — o fato que, para nós homens, o que nós temos a ser esteja sem cessar em questão — está neste sentido no coração da questão do sentido do ser que coloca Ser e Tempo mas de tal sorte que ela deixa para trás, de maneira tão radical quanto silenciosa, toda distinção entre ontologia e ética. Nada nesta passagem essencial de Ser e Tempo, não descreve nem não prescreve uma «regra» moral, uma «legislação ética». É ao contrário totalmente tencionado no esforço, perfeitamente consciente, de lutar contra a tentação de formular tais regras a fim de ganhar uma compreensão verdadeira disto cujas regras morais não são senão a recaída. Certamente a vida cotidiana tem necessidade de contar com regras, tácitas ou explícitas, pelas quais sabemos a que nos ater quanto ao que reclama de cada um de nós o curso das preocupações comuns. Mas o afazer cotidiano ao mesmo tempo traduz e oculta necessariamente aquilo que porta a vida factiva do homem: a possibilidade de se manter em uma relação absolutamente própria ao que aqui e agora, se abre na modalidade de um presente único. Ora a «fina divisória» pela qual esta possibilidade está recoberta, se encontra de fato atravessada — e ao mesmo tempo tornada sensível — quando ressoa o que Heidegger denomina, em se apoiando sobre as maneiras de dizer correntes, o apelo (Ruf) da consciência moral. É tentador reconduzir esta voz a uma instância superior, ou dito de outro modo a um mandamento; ou, inversamente, de não ver aí senão uma imagem e de «desmistificar» toda crença em uma tal instância superior. Mas o apelo é direta e concretamente ouvido: pois o que fala nele «é ontologicamente de uma outra natureza que o ente aí-diante» (SereTempo), diz Heidegger: é nossa existência ela mesma, tal qual não cessa de se explicitar em se dizendo a ela mesma aquilo de que se trata e de se ouvir a si mesma através desta palavra. É esta entente que se encontra subitamente reunida em uma só e única intimação, a qual se impõe, a respeito da perpétua falação onde cada um está consigo mesmo (do «ruído das intenções confusas e dos projetos abrotados», diz B. Pasternak), como silêncio. Neste silêncio, diz Heidegger, é experimentado factivamente um essencial «ser-em-falta». Este ser-em-falta não pode ser compreendido como infração a uma regra prévia; é ao inverso a partir dele que a fidelidade a uma regra e a falta podem se compreender. Talvez o movimento mais apto a oferecer fielmente esta prova da falta é aquele que nos vê tomar pé, antes que não seja muito tarde, diante daquilo que temos súbita consciência de ter negligenciado. Nossa existência é então posta em estado de se recompôr ao redor daquele que lhe é o mais próprio: a possibilidade de estar inteiramente presentes a isto que a mantém e a abre a si mesmo e que, desde então, nos liga (dito de outro modo nos obriga) demandando ser guardado a salvo. Neste sentido o que apela e o que é interpelado é essencialmente o mesmo: o ser o aí (Dasein) que porta, tanto em outro quanto em nós, toda possibilidade de ser humanamente. Estamos habituados, desde Kant, a fazer da dignidade da pessoa humana a base de toda obrigação ética. Em Heidegger, a partir de Ser e Tempo, o apelo a compreender o ser humano não é a partir de uma noção geral do humano mas do que é mais radicalmente nosso que toda humanidade: a abertura do aí onde se desdobra o mundo, cujo encontro sempre novo faz a existência a cada vez singular de cada homem. A dignidade humana não tem sentido snão aí onde é mantida e salvaguardada em sua integridade esta possibilidade que o mundo se desdobre em uma estadia (ethos). [Fédier]