
Em segundo lugar, o conceito de “VONTADE-DE-POTÊNCIA” é redundante: a Vontade gera poder para o querer; logo, a vontade que tem como objetivo a humildade não é menos poderosa do que aquela cujo objetivo é mandar nos outros. O ato de vontade em si já é um ato de potência, uma indicação de força (o “sentimento de força”, Kraftgefühl) que vai além do que se requer para satisfazer as necessidades e demandas da vida cotidiana. Se há uma contradição simples nos experimentos de pensamento de Nietzsche, é a contradição entre a impotência factual da Vontade — ela quer, mas não pode querer retroativamente — e este sentimento de força. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 14] Em terceiro lugar, a Vontade — seja quando é vontade retroativa e percebe sua impotência, seja quando é vontade projetiva e percebe sua força — transcende a simples gratuidade [giveness] do mundo. Tal transcendência é espontânea e corresponde à avassaladora superabundância de Vida. O objetivo autêntico da Vontade é, portanto, a abundância: “Com as palavras ‘liberdade da Vontade’ falamos desse sentimento de excesso de força”, e o sentimento é mais do que uma simples ilusão da consciência porque corresponde de fato à própria superabundância de vida. Seria portanto possível entender toda a Vida como Vontade-de-potência. “Somente onde há vida há também vontade: não vontade de vida mas [...] vontade de potência.” [Thus Spoke Zarathustra, parte II, “On Self-Overcoming”, in The Portable Nietzsche, p. 227] Pois seria bem possível explicar a “alimentação” como a “consequência de apropriação insaciável de vontade de potência, [e] a ‘procriação’ [como] a desagregação que sobrevém quando as células dominantes são incapazes de organizar aquilo que foi apropriado” [The Will to Power, n° 660, p. 349]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 14] Mencionei que a ênfase moderna no futuro como o tempo verbal predominante mostrou-se na escolha heideggeriana do Cuidado como o existencial dominante em suas análises iniciais da existência humana. Se relemos as seções correspondentes em Sein und Zeit (especialmente o nº 41), fica evidente que mais tarde ele usou certas características do Cuidado em sua análise da Vontade.] Portanto, a posição de Heidegger sobre a faculdade da Vontade, que culmina com sua insistência passional em querer “não querer” — que, é claro, nada tem a ver com a oscilação da Vontade entre velle e nolle, querer e não-querer — surge diretamente de sua investigação extremamente cuidadosa da obra de Nietzsche, a que ele volta, depois de 1940, repetidas vezes. Ainda assim, os dois volumes do seu Nietzsche, que foram publicados em 1961, são em certos aspectos os mais expressivos; contêm conjuntos de conferências dadas em cursos entre os anos 1936 e 1940, isto é, exatamente nos anos em que a “reviravolta” realmente ocorreu e que ainda não tinha, portanto, sido submetida às interpretações do próprio Heidegger. Se ao ler esses dois volumes ignoramos as reinterpretações posteriores de Heidegger (que se deram depois de Nietzsche), podemos ficar tentados a datar a “reviravolta” como um evento autobiográfico concreto, precisamente entre o volume I e o volume II; pois, a bem da verdade, o primeiro volume explica Nietzsche, aceitando-o, enquanto o segundo é escrito em um tom atenuado, mas inconfundivelmente polêmico. Essa mudança importante de disposição foi observada, ao que eu saiba, somente por J. L. Metha em seu excelente livro sobre A filosofia de Martin Heidegger [Nova York, 1971, p. 112] e, de maneira menos decisiva, por Walter Schulz. A relevância dessa datação parece evidente: é contra a VONTADE-DE-POTÊNCIA que a “reviravolta” se dirige original e primordialmente. No entender de Heidegger, a vontade de governar e de dominar é uma espécie de pecado original, do qual ele mesmo se achou culpado quando tentou lidar com seu breve passado no movimento nazista. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15] Começamos com a reviravolta original. Mesmo no primeiro volume de Nietzsche, em que Heidegger segue cuidadosamente as caracterizações descritivas da Vontade de Nietzsche, ele utiliza o que mais tarde aparece como “diferença ontológica”: a distinção entre o Ser do Ser e o fato de ser [isness] (Seiendheit) dos entes. Segundo essa interpretação, a VONTADE-DE-POTÊNCIA significa o fato de ser [isness], o modo principal em que tudo o que é realmente é. Nesse aspecto, a Vontade é entendida como uma simples função do processo vital — “o mundo vem a existir através da continuação do processo vital” [Nietzsche, vol. I, p. 624] —, ao passo que o “Eterno Retorno” é visto como o termo de Nietzsche para o Ser do Ser, através do qual a natureza transitória do tempo é eliminada, e o Devir — o meio para a finalidade da VONTADE-DE-POTÊNCIA — recebe a marca do Ser. O “Eterno Retorno” é o pensamento mais afirmativo porque é a negação da negação. Nessa perspectiva, a VONTADE-DE-POTÊNCIA não é mais do que uma necessidade biológica que mantém a roda girando e é transcendida por uma Vontade que vai além do mero instinto de vida, ao dizer “Sim” para a Vida. Na visão de Nietzsche, como vimos, “o Devir não tem objetivo; não termina no ‘Ser’ [...]. O Devir tem valor igual a cada momento: [...] em outras palavras, não tem valor algum, pois não há nada a partir de cujo valor ele pudesse ser medido e a respeito de que a palavra ‘valor’ fizesse qualquer sentido” [The Will to Power, n° 708. Trad. da autora]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15] Na visão de Heidegger, a verdadeira contradição em Nietzsche não se deve à aparente oposição entre a VONTADE-DE-POTÊNCIA, que, tendo um objetivo final, pressupõe um conceito retilíneo de tempo, e o Eterno Retorno, com seu conceito cíclico de tempo. Reside, em vez disso, na “transvaloração de valores” nietzschiana que, segundo o próprio Nietzsche, faria sentido somente no esquema da VONTADE-DE-POTÊNCIA, mas que ele via, no entanto, como a consequência final do pensamento do “Eterno Retorno”. Em outras palavras, foi em última análise a VONTADE-DE-POTÊNCIA, “em si uma postuladora de valores”, que determinou a filosofia da Vontade de Nietzsche. A VONTADE-DE-POTÊNCIA “avalia”, ao final, um Devir eternamente recorrente como a única saída para a falta de sentido da vida e do mundo, e essa transposição não só é um retorno à “subjetividade, cuja marca distintiva é o pensamento valorativo” [Nietzsche, vol. II, p. 272. In Mehta, op. cit., p. 179], mas também sofre da mesma falta de radicalismo característica do platonismo invertido de Nietzsche que, colocando as coisas de cabeça para baixo, ou de baixo para cima, mantém intacto o quadro categorial em que essas inversões podem funcionar. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15] No segundo volume há uma mudança definitiva de ênfase, do pensamento do Eterno Retorno para uma interpretação da Vontade quase que exclusivamente como VONTADE-DE-POTÊNCIA, no sentido específico de uma vontade de governar e dominar em lugar de uma expressão do instinto de vida. A noção do volume I de que todo ato de vontade, exatamente porque é um comando, gera uma contravontade (Widerwillen) — isto é, a ideia de um obstáculo necessário em cada ato de vontade, que deve primeiro superar um não-querer — é agora generalizada para uma característica inerente a todo ato de fazer. Para um carpinteiro, por exemplo, a madeira consiste no obstáculo “contra o qual” ele trabalha quando faz com que ela se torne uma mesa [Ibidem, vol. II, p. 462]. Isso também é generalizado: todo objeto, exatamente porque é um “objeto” — e não simplesmente uma coisa, independente da avaliação, do cálculo e do fazer humanos —, está aí para ser superado por um sujeito. A VONTADE-DE-POTÊNCIA é a culminância da subjetivização da Era Moderna; todas as faculdades humanas estão sob o comando da Vontade. “A Vontade é querer ser o senhor [...]. [É] fundamental e exclusivamente: Comando [...]. No comando, aquele que dá o comando [também] lhe obedece [...]. Assim, o eu que comanda é seu próprio superior.” [Ibidem, p. 265] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15] Aqui o conceito da Vontade perde de fato as características biológicas que têm papel tão importante na compreensão de Nietzsche da Vontade como simples sintoma do instinto de vida. Está na natureza do poder — e não mais na natureza da superabundância e do excesso da vida — espalhar-se e expandir-se: “O poder existe somente à medida que ele mesmo aumente e à medida que [a VONTADE-DE-POTÊNCIA] comande este aumento.” A Vontade instiga a si mesma, dando ordens: [não é a vida mas a VONTADE-DE-POTÊNCIA a essência do poder. Essa essência, e nunca uma quantidade [limitada] de poder, continua sendo a meta da Vontade, uma vez que a Vontade pode existir somente na relação com o poder. Eis por que a Vontade necessariamente precisa dessa meta. É também a razão pela qual um terror do vazio permeia essencialmente toda vontade. [...] Do ponto de vista da Vontade [...], [o nada] é a extinção da Vontade no deixar de querer [...]. Logo [...], [citando Nietzsche] nossa “vontade prefere querer o nada a não querer [...]”. “Querer o nada”, aqui, significa querer [...] a negação, a destruição, a devastação [grifos nossos] [Ibidem, p. 267]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]