objetivação

Category: Hans-Georg Gadamer (1900-2002)
Submitter: mccastro

objetivação

Dilthey parte da vida: a própria vida está apontada à reflexão. É a Georg Misch a quem devemos uma enérgica elaboração da tendência da filosofia da vida no filosofar de Dilthey. Seu fundamento repousa no fato de que a vida mesma contém saber. Já a interiorização (Innesein), que caracteriza a vivência, contém uma espécie de retorno da vida sobre si mesma. "O saber está aí, unido à vivência sem dar-se conta" (VII, 18). Essa mesma reflexividade imanente da vida determina também o modo como, segundo Dilthey, o significado surge no nexo vital. Somente se experimenta o significado, quando se sai à "caça das metas". O que torna possível essa reflexão é um distanciamento, uma lonjura do nexo do nosso próprio fazer. Dilthey destaca, e, sem dúvida, com razão, que antes de toda objetivação científica o que se forma é uma visão natural da vida sobre si mesma. Esta se objetiva na sabedoria dos provérbios e sagas, mas sobretudo nas grandes obras da arte, nas quais "algo espiritual se desprende de seu criador". Por isso a arte é um órgão especial da compreensão da vida, porque em seus "confins entre o saber e a ação" a vida se abre com uma profundidade que não é acessível nem à observação, nem à reflexão, [240] nem à teoria. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O nexo de vida e saber é, pois, para Dilthey, um dado originário. É isso o que torna invulnerável a posição de Dilthey ante toda objetivação que se possa fazer ao "relativismo" histórico, a partir da filosofia e, especialmente, com os argumentos da filosofia idealista da reflexão. Sua fundamentação da filosofia no fato originário da vida não busca um nexo de proposições, livre de contradições, que quisessem substituir os sistemas de idéias da filosofia precedente. Para a auto-reflexão [241] filosófica vale, antes, o mesmo que Dilthey indicou para o papel da reflexão na vida. A auto-reflexão pensa a própria vida até o fim, compreendendo a própria filosofia, mas não no sentido nem com a pretensão do idealismo: não procura fundamentar a única filosofia possível a partir da unidade de um princípio especulativo, mas continua simplesmente o caminho da auto-reflexão histórica. E dessa maneira subtrai-se à objeção de estar comprometida com o relativismo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Como vemos, o problema do método está inteiramente determinado pelo objeto — o que constitui um postulado aristotélico geral e fundamental — e, relacionado ao nosso interesse, valerá a pena considerar a relação especial entre ser ético e consciência ética tal como Aristóteles a desenvolve na sua ética. Aristóteles se mantém socrático na medida em que retém o conhecimento como momento essencial do ser ético, e o que nos interessa é justamente o equilíbrio entre a herança socrático-platônica e este momento do ethos a que ele mesmo deu validez. Pois também o problema hermenêutico se aparta evidentemente de um saber puro, separado do ser. Falamos antes da pertença do intérprete com a tradição com a qual se confronta, e víamos na própria compreensão um momento do acontecer. O enorme alheamento que caracteriza a hermenêutica e a historiografia do século XIX, em razão do método objetivador da ciência moderna, nos havia sido apresentado como conseqüência de uma falsa objetivação. O exemplo da ética aristotélica foi citado para tornar patente e evitar essa objetivação, pois o saber objetivo, isto é, aquele que sabe não está frente a uma constelação de fatos, que ele se limitasse a constatar, pois o que conhece o afeta imediatamente. É algo que ele tem de fazer. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Desse modo se confirma, como um todo, o que constatamos antes: na linguagem representa-se o próprio mundo. A experiência lingüística do mundo é "absoluta". Ultrapassa toda relatividade do "pôr" o ser, porque abrange todo o ser em si, pouco importa em que relações (relatividades) se mostra. A [454] lingüisticidade da nossa experiência do mundo precede a tudo quanto pode ser reconhecido e interpelado como ente. A relação fundamental de linguagem e mundo não significa, portanto, que o mundo se torne objeto da linguagem. Aquilo que é objeto do conhecimento e de seus enunciados se encontra, pelo contrário, abrangido sempre pelo horizonte do mundo da linguagem. A lingüisticidade da experiência humana do mundo como tal não inclui a objetivação do mundo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Isso não significa que só agora a filosofia tenha começado a dar-se conta de que ali há um problema. Ao contrário, temos aqui uma encruzilhada tão indefinida para toda nossa consciência civilizatória que a ciência moderna se sente tão perseguida pela crítica da "escola" como se fosse sua sombra. Filosoficamente a questão coloca-se da seguinte forma: Será possível retroceder para além do saber tematizado pelas ciências, e, sendo possível, em que sentido e medida? Não é preciso muito esforço para ver que cada um de nós realiza constantemente esse retrocesso em nossa experiência prática da vida. Sempre podemos esperar que uma outra pessoa veja o que consideramos como verdadeiro, mesmo que não o possamos demonstrar. E nem sempre podemos considerar a via da demonstração como a via correta para fazer com que a outra pessoa veja o verdadeiro. Estamos sempre de novo ultrapassando os limites da objetivação, onde se prende o enunciado, que segue sua forma lógica. Experimentamos constantemente formas de comunicação para aquilo que não é objetivável, formas que nos são proporcionadas pela linguagem, inclusive pela dos poetas. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 4.

Dessa forma, também a herança cristã da metafísica grega, a escolástica medieval, concebe a palavra a partir da species, como sua perfeição, sem compreender o mistério de sua encarnação. A experiência de mundo que se dá na linguagem e que orientou originariamente o pensamento metafísico acaba tornando-se algo secundário e contingente. Através de convenções próprias da linguagem, ela esquematiza o olhar pensante que se dirige às coisas, fechando-lhe o acesso à experiência originária do ser. Na verdade, porém, é ao caráter de linguagem da experiência de mundo que se esconde por trás da aparência de prioridade das coisas frente à sua manifestação na linguagem. É sobretudo a suposta possibilidade de objetivação universal de tudo e de todos que se apoia na idéia da universalidade da linguagem, e que através dessa suposição se coloca na penumbra. À medida que a linguagem — pelo menos na família das línguas indo-germânicas — dispõe da possibilidade de estender a função nominativa geral a qualquer parte da oração e transformar tudo em sujeito para outras sentenças possíveis, ela erige a aparência universal de coisificação, que acaba degradando a própria linguagem a um mero meio de entendimento. Por mais que procure descobrir os desvios verbais pela elaboração de sistemas de signos artificiais, nem mesmo a moderna analítica da linguagem é capaz de questionar o pressuposto fundamental desta objetivação. Ensina, ao contrário, e apenas pela sua [74] autolimitação, que enquanto todos esses sistemas pressuporem a linguagem natural, nenhuma liberação real pode se realizar, a partir do âmbito da linguagem, mediante a introdução de sistemas de signos artificiais. Assim como a clássica filosofia da linguagem constatou que a questão da origem da linguagem é uma questão insustentável, também a reflexão sobre a idéia de uma linguagem artificial levou à auto-suspensão dessa idéia e com isso à legitimação das linguagens naturais. Mas, via de regra, o que isso implica permanece impensado. Sabe-se, por certo, que as línguas têm sua realidade, em geral, lá onde são faladas, isto é, onde as pessoas logram entender-se entre si. Mas que tipo de ser é este que convém à linguagem? Aquele de um meio de entendimento? Parece-me que, ao desvincular o conceito da syntheke do seu sentido ingênuo de "convenção", Aristóteles já havia chamado a atenção para o verdadeiro caráter ontológico da linguagem. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 6.

A pergunta pelas formas de ordenamento de nosso mundo, tanto o de hoje como o futuro, coloca-se como uma pergunta puramente científica: Que podemos fazer? Como podemos organizar as coisas? Como se apresentam as bases sobre as quais podemos [160] planejar? Que devemos modificar e observar para que a administração de nosso mundo se torne cada vez melhor e menos conflituosa? A idéia de um mundo dotado de uma administração perfeita parece ser o ideal negado justamente aos países mais avançados, em virtude de sua concepção de vida e de suas convicções políticas. É interessante notar que esse ideal se apresenta como o ideal da administração perfeita e não como um ideal de futuro com um conteúdo definido, como por exemplo o estado da justiça, base para a utopia do Estado platônico, ou como o Estado mundial, formado pelo predomínio de um determinado sistema político, de um povo ou uma raça sobre outros sistemas, povos e raças. A base do ideal de administração é uma idéia de ordem que não comporta nenhum conteúdo específico. O objetivo declarado de toda administração não é o saber sobre que tipo de ordem deve dominar, mas saber que tudo deve ter sua ordem. Por isso, o ideal da neutralidade pertence essencialmente à idéia de administração. O que se busca é o bom funcionamento como um valor em si. É bem provável que o fato de os grandes impérios mundiais de hoje poderem se encontrar e alcançar um equilíbrio no terreno neutro de um tal ideal administrativo não chegue a representar nem sequer uma esperança utópica. A partir disso, torna-se óbvio considerar a idéia de uma administração mundial como a forma de ordem do futuro. Nela a objetivação da política encontraria sua verdadeira perfeição. Será então que o ideal formal da administração mundial representa a realização da idéia de ordem mundial? VERDADE E METODO II COMPLEMENTOS 12.

Para a reflexão hermenêutica, o conceito de reflexão e conscientização utilizado por Habermas aparece carregado de dogmatismos, e é nesse particular que gostaria de ver os efeitos da reflexão hermenêutica que eu proponho. Através de Husserl (em sua teoria das intencionalidades anônimas) e de Heidegger (na demonstração da redução ontológica presente no conceito subjetivo e objetivo do idealismo) aprendemos a desmascarar a falsa objetivação que pesa sobre o conceito de reflexão. Há sem dúvida uma regressão interna da intencionalidade que jamais tematiza o conotado (Mitgemeinte) como objeto. Brentano já percebera esse ponto ao retomar as idéias aristotélicas. Não saberia como conceber a enigmática figura ôntica da linguagem, se não a partir dessa idéia. Devemos distinguir (para falar com as palavras de J. Lohmann) entre a reflexão "efetiva", que acontece no desenvolvimento da linguagem, e a reflexão expressa e temática, formada na história do pensamento ocidental, ao converter tudo em objeto temático, quando a ciência criou os pressupostos da civilização planetária do futuro. VERDADE E METODO II OUTROS 18.

Pois bem, essa filosofia neokantiana dos valores constituía uma base muito frágil. Muito mais influente seria o legado romântico do espírito alemão, o legado de Hegel e de Schleiermacher, administrado especialmente pelo trabalho de Dilthey em torno a uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito. O pensamento de Dilthey teve um horizonte mais amplo do que o da teoria do conhecimento do neokantismo, uma vez que assumiu toda a herança de Hegel: a teoria do espírito objetivo. Segundo essa teoria, o espírito não ganha corpo apenas na subjetividade de sua realização atual, mas também na objetivação de instituições, sistemas de ação e sistemas de vida como a economia, o direito e a sociedade, e assim, enquanto "cultura", convertem-se em objeto de possível compreensão. A tentativa diltheyana de renovar a hermenêutica de Schleiermacher, demonstrando, por assim dizer, como fundamento das humaniora o ponto de identidade entre o que compreende e o compreensível, foi condenada ao fracasso porque a história apresenta um estranhamento e uma heterogeneidade demasiado profundos para que possam ser considerados tão confiadamente a partir da perspectiva de sua compreensibilidade. Um sintoma característico de ausência da "facticidade" do acontecer no pensamento de Dilthey é este ter considerado a autobiografia, portanto, o caso em que alguém expõe uma trajetória de vida, vivenciando-a retrospectivamente, como modelo de compreensão histórica. Na verdade, uma autobiografia é mais uma história das ilusões privadas do que a compreensão do acontecimento histórico real. VERDADE E METODO II OUTROS 23.

"E do espírito que, através das formas de sua objetivação, fala ao espírito pensante, espírito que se sente aparentado àquele em humanidade comum: trata-se de um reconduzir reunitivamente e de um religar aquelas formas com o todo interior que as gerou e do qual elas se separaram. Uma interiorização dessas formas; só que o seu conteúdo é deslocado para uma subjetividade diversa da originária. Trata-se, segundo isso, de uma inversão do processo criador no processo interpretativo, uma inversão, em conseqüência da qual o intérprete precisa percorrer, em seu caminho hermenêutico, o caminho criador na direção inversa; deve levar a cabo esse repensar dentro de si". VERDADE E METODO II ANEXOS 27.

Se apelarmos para o ponto de vista de uma metafísica teológica, será fácil argumentar contra esse tipo de historicismo transcendental para compreender a partir dela tudo que vale como ente, como uma produção ou como um desempenho da objetivação dessa subjetividade. Esse historicismo transcendental, ao estilo da redução transcendental de Husserl, apóia-se na historicidade absoluta da subjetividade. Se deve haver um ser-em-si e único que pode restringir a mobilidade histórica universal dos projetos de mundo que vão se produzindo por si, esse deverá ser, evidentemente, algo que supere todas as perspectivas humanas finitas, como é próprio imaginar-se de um espírito infinito. Mas isso não é nada mais que a ordem da criação, que, deste modo, impõem-se como uma ordenação anterior a todos os projetos humanos de mundo. Nesse sentido, Gerard Krüger interpretou, décadas atrás, o duplo aspecto da filosofia kantiana — seu idealismo do fenômeno e seu realismo da coisa em si — e mesmo em seus trabalhos mais recentes procurou defender o direito de uma metafísica teológica contra o subjetivismo moderno, baseado na experiência mítica ou religiosa. VERDADE E METODO II ANEXOS 27.

Submitted on:  Wed, 21-Apr-2010, 12:49