hermenêutica espiritual-científica

Category: Hans-Georg Gadamer (1900-2002)
Submitter: mccastro

hermenêutica espiritual-científica

Essas considerações nos levam a indagar se na hermenêutica espiritual-científica não se tem de reconhecer todo seu direito ao momento da tradição. A investigação espiritual-científica não pode ver-se a si própria em oposição pura e simples ao modo como nos comportamos com respeito ao passado na nossa qualidade de entes históricos. No nosso comportamento com relação ao passado, que constantemente estamos confirmando, o que está em questão realmente não é o distanciamento nem a liberdade com relação ao transmitido. Antes, encontramo-nos sempre em tradições, e esse nosso estar dentro delas não é um comportamento objetivador, de tal modo que o que diz a tradição fosse pensado como estranho ou alheio — isso já é sempre algo próprio, exemplar e intimidante, um reconhecer-se, no qual, para nosso juízo histórico posterior, quase já não se divisa conhecimento, porém a mais singela e inocente transformação [287] da tradição. 1547 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

E se isso é correto, então se coloca a tarefa de voltar a determinar a hermenêutica espiritual-científica a partir da jurídica e da teológica. Para isso faz-se necessária a ideia recém-alcançada, de que a hermenêutica romântica e sua coroação na interpretação psicológica, isto é, no deciframento e fundamentação da individualidade do outro, aborda o problema da compreensão de um modo excessivamente parcial. Nossas considerações não nos permitem dividir a colocação do problema hermenêutico na subjetividade do intérprete e na objetividade de sentido que se trata de compreender. Esse procedimento partiria de uma falsa contraposição que tampouco pode ser superada pelo reconhecimento da dialética do subjetivo e do objetivo. A distinção entre uma função normativa e uma função cognitiva faz cindir, definitivamente, o que claramente é uno. O sentido da lei, que se apresenta em sua aplicação normativa, não é, em princípio, diferente do sentido de um tema, que ganha validez na compreensão de um texto. É completamente errôneo fundamentar a possibilidade de compreender textos na pressuposição da "congenialidade" que uniria o criador e o intérprete de uma obra. Se isso fosse assim, as ciências do espírito estariam em maus lençóis. O milagre da compreensão consiste, antes, no fato de que não é necessária a congenialidade para reconhecer o que é verdadeiramente significativo e o sentido originário de uma tradição. Somos, antes, capazes de nos abrir à pretensão excelsa de um texto e corresponder compreensivamente ao significado com o qual nos fala. A hermenêutica, no âmbito da filologia e da ciência espiritual da história, não é um "saber dominador", isto é, apropriação por apoderamento, mas se submete à pretensão dominante do texto. Mas para isso o verdadeiro modelo é constituído pela hermenêutica jurídica e teológica. A interpretação da vontade jurídica e da promessa divina não são evidentemente formas de domínio, mas de servidão. Ao serviço daquilo que deve valer, elas são interpretações, que incluem aplicação. A tese é, pois, que também a hermenêutica histórica tem que levar a cabo o fornecimento da aplicação, pois também ela serve à validez de sentido, na medida em que supera, expressa e conscientemente, a distância de tempo que separa o intérprete do texto, superando assim a alienação de sentido que o texto experimentou. 1717 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

É claro que este não é o saber da ciência. Nesse sentido a limitação de Aristóteles entre o saber ético da phronesis e o saber teórico da episteme é bem simples, sobretudo se se leva em conta que, para os gregos, a ciência, representada pelo paradigma da matemática, é um saber do inalterável, que repousa sobre a demonstração e que, por conseguinte, qualquer um pode aprender. É certo que uma hermenêutica espiritual-científica não poderia aprender nada dessa limitação do saber ético face a um saber como a matemática. Pelo contrário, face a essa ciência "teórica", as ciências do espírito fazem parte, estritamente, do saber ético. São "ciências morais". Seu objeto é o homem e o que este sabe de si mesmo. Este, porém, se sabe a si mesmo como ser que atua, e o saber que, deste modo, tem de si mesmo não pretende comprovar o que é. Aquele que atua lida, antes, com coisas que nem sempre são como são, pois que [320] podem também ser diferentes. Nelas descobre em que ponto pode intervir sua situação. Seu saber deve orientar seu fazer. 1729 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

E se isso é assim, então a distância entre a hermenêutica espiritual-científica e a hermenêutica jurídica não é tão grande como se costuma supor. Em geral se tende a supor que foi somente a consciência histórica que elevou a compreensão a ser um método da ciência objetiva, e que a hermenêutica alcançou sua verdadeira determinação somente quando se desenvolveu como teoria geral da compreensão e da interpretação dos textos. A hermenêutica jurídica não teria a ver com esse nexo, pois não procura compreender textos dados, já que é uma medida auxiliar da práxis jurídica e inclina-se a sanar certas deficiências e casos excepcionais no sistema da dogmática jurídica. Por consequência não teria a menor relação com a tarefa de compreender a tradição, que é o que caracteriza a hermenêutica espiritual-científica. 1773 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Submitted on:  Fri, 29-May-2009, 18:04