
Entretanto, nos vemos obrigados a indagar se essa é uma maneira adequada de entender o movimento circular da compreensão. Teremos de nos reportar aqui ao resultado de nossa análise hermenêutica de Schleiermacher. O que este desenvolve sob o nome de interpretação subjetiva pode muito bem ser deixado de lado. Quando procuramos entender um texto, não nos deslocamos até a constituição psíquica do autor, mas, se quisermos falar de deslocar-se, o fazemos tendo em vista a perspectiva sob a qual o outro ganhou a sua própria opinião. E isso não quer dizer outra coisa, senão que procuramos fazer valer o direito objetivo do que o outro diz. Quando procuramos entender, fazemos inclusive o possível para reforçar os seus próprios argumentos. Isso acontece já na conversação. Mas onde se torna mais patente é na compreensão do escrito. Aqui nos movemos numa dimensão de sentido que é compreensível em si mesma e que, como tal, não motiva um retrocesso à subjetividade do outro. É tarefa da hermenêutica explicar esse milagre da compreensão, que não é uma comunhão misteriosa das almas, mas uma participação num sentido comum. 1609 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
A identidade do eu, assim como a identidade do sentido, que se constrói através dos participantes do diálogo, permanece intocada. É evidente que nenhuma compreensão de um pelo outro dialogante consegue abranger todo o âmbito do compreendido. Nesse ponto, a análise hermenêutica deve se desfazer de um falso modelo de compreensão e entendimento. Por isso, no entendimento, jamais se dá o caso de a diferença ser tragada pela identidade. Quando dizemos que nos entendemos sobre alguma coisa, isso não significa, em absoluto, que um tenha uma opinião idêntica ao outro. "Chega-se a um acordo", como diz muito bem a expressão. É uma forma mais elevada de syntheke, se quisermos servir-nos da genialidade da língua grega. A meu ver, querer isolar e fazer objeto de crítica os elementos do discurso, do discurs, é um desvirtuamento da perspectiva. Assim, na realidade, esses elementos não se dão, e torna-se compreensível por que, do ponto de vista dos "signos", precisamos falar de différance ou différence. Nenhum signo, no sentido absoluto de significado, é idêntico a si mesmo. A crítica de Derrida contra o platonismo, que ele supõe encontrar-se nas Investigações lógicas de Husserl e no conceito de intencionalidade, no Ideen I, não deixa de ter razão. Isso, porém, já foi esclarecido por Husserl há muito tempo. Partindo do conceito de síntese passiva e da teoria das intencionalidades anônimas, parece-me, na verdade, haver uma linha transparente que chega à experiência hermenêutica, a qual, suposto que se refute a violência metodológica do modo de pensar transcendental, pode coincidir amplamente com minha máxima: "Quando se consegue compreender, compreende-se de modo diferente". Depois da conclusão de Verdade e método I, o tema preferencial de minhas pesquisas foi durante décadas o lugar que o conceito de literatura ocupa no círculo de questionamento da hermenêutica. Confira neste volume os artigos "Texto e interpretação" e "Destruição e desconstrução", assim como os trabalhos apresentados nos volumes VIII e IX. Como disse inicialmente, [17] em Verdade e método I, parece-me que ainda não se alcançou, com precisão, a diferenciação necessária entre o jogo da linguagem e o jogo da arte e, na realidade, a mútua pertença de linguagem e arte em nenhum lugar é tão palpável como no caso da literatura, que se define justamente através da arte da linguagem — e do escrever! VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
Vamos analisar primeiramente o que, apesar de sua indizibilidade, é dito. Aqui emerge o imenso âmbito daquilo que em todo discurso é ocasional e ajuda a constituir o sentido do discurso. Ocasionalidade significa a dependência da ocasião, da circunstância e situação, em que se usa a expressão. A análise hermenêutica pode demonstrar que essa dependência da ocasião não é ela mesma ocasional, mesmo nas expressões ditas ocasionais, como por [179] exemplo "aqui" ou "isto". Em sua peculiaridade semântica, essas expressões não possuem evidentemente nenhum conteúdo fixo, assinalável, sendo usadas como formas vazias passíveis de serem por conteúdos variáveis. A análise hermenêutica, porém, pode demonstrar que essa ocasião constitui a própria essência do dizer. Pois em sua estrutura de linguagem e em sua lógica, nenhum enunciado possui apenas um sentido unívoco, mas sim um sentido motivado. O que lhe dá sentido é uma pergunta a ele subjacente. A função hermenêutica da pergunta repercute no sentido do enunciado, o de ser uma resposta. Não me refiro aqui à hermenêutica da pergunta que ainda está para ser estudada. Há muitos tipos de perguntas e todos sabemos que a pergunta não precisa ter características sintáticas para mostrar plenamente seu sentido interrogativo. Refiro-me ao tom interrogativo que pode conferir um caráter interrogativo a uma frase formulada sintaticamente como um enunciado afirmativo. Um bom exemplo é a inversão desse fato, ou seja, quando uma frase que tem caráter de pergunta mostra seu caráter de enunciado. Chamamos esse fato de pergunta retórica. A chamada pergunta retórica é pergunta apenas na forma, sendo na realidade uma afirmação. Analisando como o caráter interrogativo torna-se afirmativo e confirmativo, mostra-se que a pergunta retórica é afirmativa por já pressupor a resposta. Pela pergunta, ela já antecipa a resposta comum. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 13.
Outro exemplo da influência da compreensão prévia na investigação da história da hermenêutica é a distinção introduzida por L. Geldsetzer entre hermenêutica dogmática e hermenêutica cética. Com a ajuda dessa distinção entre uma interpretação ligada aos dogmas e apoiada pelas instituições e sua autoridade, que busca sempre a defesa consequente das normas dogmáticas, e uma interpretação de textos adogmática, aberta, heurística, que leva às vezes a um non liquet, a história da hermenêutica adota uma figura que denuncia a compreensão prévia cunhada pela teoria da ciência moderna. Nessa perspectiva aparece a hermenêutica recente, na medida em que apoia interesses teológico-dogmáticos, numa inquietante proximidade com uma hermenêutica jurídica que se compreende, de forma muito dogmática, como imposição da ordem estabelecida pelas leis. Quando no trabalho de busca jurídica ignoramos o elemento cético na exposição da lei e consideramos a essência da hermenêutica jurídica como uma mera subsunção do caso particular sob a lei geral dada, devemos perguntar se não estamos deformando o conhecimento da hermenêutica jurídica. As ideias mais recentes sobre a relação dialética entre lei e caso particular, com os recursos decisivos que oferece Hegel, parecem modificar nossa compreensão prévia da hermenêutica jurídica. O papel da jurisprudência sempre restringiu o modelo da subsunção. Na verdade, a jurisprudência está a serviço da interpretação correta da lei (e não somente de sua aplicação correta). Algo parecido vale, e com mais razão ainda, para a interpretação da Bíblia, à margem de toda tarefa prática, ou, mutatis mutandis, para a interpretação dos clássicos. Se nesse caso a "analogia da fé" não representa nenhum dado dogmático fixo para a interpretação da Bíblia, a linguagem que permite o acesso do leitor a um texto clássico tampouco pode ser concebida adequadamente se nos orientarmos pelo conceito [279] científico da objetividade e mantivermos o caráter de exemplaridade desse texto para um estreitamento dogmático da compreensão. Creio que a própria distinção entre hermenêutica dogmática e hermenêutica cética é dogmática e deveria desaparecer na análise hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.