substância espinosana

Category: Termos chaves da Filosofia
Submitter: mccastro

substância espinosana

substantia

III. Por substância entendo aquilo que é em si e é concebido por si, isto é, aquilo cujo conceito não precisa do conceito de outra coisa a partir do qual deva ser formado. ÉTICA I Deus Definições

IV. Por atributo entendo aquilo que o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela. ÉTICA I Deus Definições

V. Por modo entendo afecções [affectio] da substância, ou seja, aquilo que é em outro, pelo qual também é concebido. ÉTICA I Deus Definições

VI. Por Deus entendo o ente absolutamente infinito, isto é, a substância que consiste em infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita. Explicação: Digo absolutamente infinito, não porém em seu gênero; pois, daquilo que é infinito apenas em seu gênero, podemos negar infinitos atributos; porém, ao que é absolutamente infinito, à sua essência pertence tudo o que exprime uma essência e não envolve nenhuma negação. ÉTICA I Deus Definições

A substância é anterior por natureza a suas afecções [affectio]. ÉTICA I Deus Prop. I

Demonstração: Se fossem dadas várias [substâncias] distintas, deveriam distinguir-se entre si ou pela diversidade dos atributos ou pela diversidade das afecções [affectio] (pela Prop. preced.). Se apenas pela diversidade dos atributos, concede-se portanto que não se dá senão uma [substância] do mesmo atributo. Por outro lado, se pela diversidade das afecções [affectio], como a substância é anterior por natureza a suas afecções [affectio] (pela Prop. 1), portanto, afastadas as afecções [affectio] e em si considerada, isto é, (pela Def. 3 e Ax. 6) verdadeiramente considerada, não se poderá conceber que seja distinguida de outra, isto é (pela Prop. preced.), não poderão ser dadas várias [substâncias], mas apenas uma. C. Q. D. ÉTICA I Deus Prop. V

Uma substância não pode ser produzida por outra substância. ÉTICA I Deus Prop. VI

Corolário: Daí segue que a substância não pode ser produzida por outro. Com efeito, na natureza das coisas nada é dado exceto substâncias e suas afecções [affectio], como é patente pelo Ax. 1 e pelas Def. 3 e 5. Ora, não pode ser produzida por uma substância (pela Prop. preced.). Logo, a substância não pode absolutamente ser produzida por outro. C. Q. D. Doutra Maneira: Isto também é demonstrado mais facilmente pelo absurdo do contraditório. Com efeito, se a substância pudesse ser produzida por outro, seu conhecimento deveria depender do conhecimento de sua causa (pelo Ax. 4), e então (pela Def. 3) não seria substância. ÉTICA I Deus Prop. VI

A natureza da substância pertence existir. ÉTICA I Deus Prop. VII

Demonstração: A substância não pode ser produzida por outro (pelo Corol. da Prop. preced.). E assim será causa de si, isto é (pela Def. I), sua própria essência envolve necessariamente existência, ou seja, à sua natureza pertence existir. C. Q. D. ÉTICA I Deus Prop. VII

Toda substância é necessariamente infinita. ÉTICA I Deus Prop. VIII

Demonstração: A substância de um atributo não existe senão única (pela Prop. 5) e à sua própria natureza pertence existir (pela Prop. 7). De sua própria natureza, pois, há de existir ou finita ou infinita. Mas não finita. Com efeito, (pela Def. 2) deveria ser delimitada por outra de mesma natureza, que também deveria necessariamente existir (pela Prop. 7). Dar-se-iam então duas substâncias de mesmo atributo, o que é absurdo (pela Prop. 5). Logo, existe infinita. C. Q. D. ÉTICA I Deus Prop. VIII

Escólio I: Como ser finito é deveras negação parcial, e ser infinito é a afirmação absoluta da existência de alguma natureza, logo, segue da só Prop. 7 que toda substância deve ser infinita. ÉTICA I Deus Prop. VIII

Escólio II: Não duvido que, a todos que julgam confusamente as coisas e não se acostumaram a conhecê-las por suas causas primeiras, seja difícil conceber a demonstração da Prop. 7. Não é de admirar, já que não distinguem entre modificações das substâncias e as próprias substâncias nem sabem como as coisas são produzidas. Donde ocorre que imputem às substâncias o princípio que veem ter as coisas naturais. Com efeito, os que ignoram as verdadeiras causas das coisas confundem tudo, e sem nenhuma repugnância da mente forjam falantes tanto árvores como homens, e homens formados tanto a partir de pedras como de sêmen, e imaginam quaisquer formas mudadas em quaisquer outras. Assim também, os que confundem a natureza divina com a humana facilmente atribuem a Deus afetos [affectus] humanos, sobretudo enquanto ignoram também como os afetos [affectus] são produzidos na mente. Se, por outro lado, os homens prestassem atenção à natureza da substância, de jeito nenhum duvidariam da verdade da Prop. 7; e mais, esta Proposição seria axioma para todos e enumerada entre as noções comuns. Pois por substância entenderiam aquilo que é em si e é concebido por si, isto é, aquilo cujo conhecimento não precisa do conhecimento de outra coisa. Por modificações, porém, aquilo que é em outro e cujo conceito é formado a partir do conceito da coisa em que são. Por isso podemos ter ideias verdadeiras de modificações não existentes, visto que, embora não existam em ato fora do intelecto, todavia a essência delas é de tal modo compreendida em outro que podem por ele ser concebidas, ao passo que a verdade das substâncias fora do intelecto não está senão nelas próprias, já que são concebidas por si. Logo, se alguém dissesse ter a ideia clara e distinta, isto é, a verdadeira ideia da substância, e não obstante dissesse duvidar se porventura tal substância existe, seria o mesmo, por Hércules !, se dissesse ter uma ideia verdadeira e contudo duvidasse se acaso seria falsa (como é suficientemente manifesto a quem prestar atenção). Ou se alguém sustenta que a substância é criada, simultaneamente sustenta que se fez verdadeira uma ideia falsa, e certamente não pode ser concebido maior absurdo. Por isso é necessário confessar que a existência da substância, assim como sua essência, é uma verdade eterna. Daí podemos concluir, doutra maneira, que não é dada senão uma única de mesma natureza, o que aqui vale a pena mostrar. Mas para que eu faça isto com ordem, cumpre observar que: I. a verdadeira definição de cada coisa nada envolve nem exprime exceto a natureza da coisa definida. Disto segue II. que nenhuma definição envolve nem exprime um certo número de indivíduos, visto que nada outro exprime senão a natureza da coisa definida. P.ex.: a definição de triângulo nada outro exprime senão a simples natureza do triângulo, e não um certo número de triângulos. III. É de notar que de cada coisa existente é dada necessariamente uma certa causa pela qual existe. IV. Enfim, é de notar que esta causa, pela qual alguma coisa existe, ou deve estar contida na própria natureza e definição da coisa existente (não é de admirar, já que à sua natureza pertence existir), ou deve ser dada fora dela. Isto posto, segue que, se na natureza existe um certo número de indivíduos, deve necessariamente ser dada a causa por que existem aqueles indivíduos e por que não mais nem menos. Se, p. ex., na natureza das coisas existem 20 homens (os quais, a bem da clareza, suponho que existem simultaneamente e que, até então, não tinham existido outros na natureza), não bastará (para darmos a razão por que 20 homens existem) mostrar a causa da natureza humana em geral. Porém, será necessário ademais mostrar a causa por que nem mais nem menos de 20 existem, visto que (pela Observação III.) de cada um deve necessariamente ser dada a causa por que existe. E esta causa (pelas Observações II. e III.) não pode estar contida na própria natureza humana, visto que a verdadeira definição de homem não envolve o número 20. E por isso (pela Observação IV.) a causa por que estes 20 homens existem, e consequentemente por que cada um existe, deve necessariamente ser dada fora de cada um. E, em vista disso, cumpre concluir absolutamente que tudo de cuja natureza podem existir vários indivíduos deve ter necessariamente uma causa externa para que existam. Agora, pois que à natureza da substância (pelo já mostrado neste Esc.) pertence existir, deve sua definição envolver existência necessária e, consequentemente, de sua só definição deve ser concluída sua existência. Ora, da sua definição (como já mostramos nas Observações II. e III.) não pode seguir a existência de várias substâncias; logo, dela segue necessariamente que existe apenas uma única de mesma natureza, como propunha-se. ÉTICA I Deus Prop. VIII

Cada atributo de uma substância deve ser concebido por si. ÉTICA I Deus Prop. X

Demonstração: Com efeito, atributo é aquilo que o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela (pela Def. 4) e por conseguinte (pela Def. 3) deve ser concebido por si. C. Q. D. ÉTICA I Deus Prop. X

Escólio: Disto transparece que, embora dois atributos sejam concebidos realmente distintos, isto é, um sem a ajuda do outro, não podemos daí concluir, porém, que eles constituem dois entes, ou seja, duas substâncias diversas. Com efeito, é da natureza da substância que cada um de seus atributos seja concebido por si, visto que todos os atributos que ela tem sempre foram simultaneamente nela, e nenhum pôde ser produzido por outro, mas cada um exprime a realidade, ou seja, o ser da substância. Logo, está longe de ser absurdo atribuir a uma substância vários atributos; mais ainda, nada é mais claro na natureza quanto dever cada ente conceber-se sob algum atributo, e quanto mais realidade ou ser tenha, tanto mais atributos tem, os quais exprimem necessidade, ou seja, eternidade e infinidade, e por consequência, nada também é mais claro do que necessariamente haver de se definir o ente absolutamente infinito (conforme demos na Def. 6) como o ente que consiste em infinitos atributos, dos quais cada um exprime uma certa essência eterna e infinita. Agora, se alguém perguntar a partir de que sinal poderemos reconhecer a diversidade das substâncias, leia as proposições seguintes, que mostram que não existe na natureza das coisas senão uma única substância e que ela é absolutamente infinita, razão pela qual este sinal será procurado em vão. ÉTICA I Deus Prop. X

Deus, ou seja, a substância que consiste em infinitos atributos, dos quais cada um exprime uma essência eterna e infinita, existe necessariamente. ÉTICA I Deus Prop. XI

Demonstração: Se negas, concebe, se possível, que Deus não exista. Logo (pelo Ax. 7) sua essência não envolve existência. Ora, isto (pela Prop. 7) é absurdo. Logo Deus existe necessariamente. C. Q. D. Doutra Maneira: De toda coisa deve ser assinalada a causa ou razão tanto por que existe, quanto por que não existe. P. ex., se existe um triângulo, deve ser dada a razão ou causa por que existe; se, por outro lado, não existe, deve ser dada também a razão ou causa que impede que exista, ou seja, que inibe sua existência. Esta razão ou causa, na verdade, deve estar contida ou na natureza da coisa ou fora dela. P. ex., a razão por que não existe um círculo quadrado, sua própria natureza indica; não é de admirar, já que envolve contradição. Ao contrário, da só natureza da substância segue também por que existe, a saber, já que envolve existência (ver Prop. 7). A razão, porém, por que um círculo ou um triângulo existem ou por que não existem não segue de sua natureza, mas da ordem da natureza corpórea inteira; com efeito, disto deve seguir ou que o triângulo existe agora necessariamente ou que é impossível que exista agora. E essas coisas são por si manifestas. Daí segue existir necessariamente isso de que não é dada nenhuma razão nem causa que impeça que exista. E assim, se não pode ser dada nenhuma razão nem causa que impeça que Deus exista, ou que iniba sua existência, certamente cumpre concluir que ele existe necessariamente. Mas se tal razão ou causa fosse dada, deveria ser dada ou na própria natureza de Deus ou fora dela, isto é, em outra substância de outra natureza. Pois se fosse de mesma natureza, por isso mesmo seria concedido que Deus é dado [existe], Mas uma substância que fosse de outra natureza, nada tendo em comum com Deus (pela Prop. 1), por isso não poderia nem pôr nem tirar a existência dele. Portanto, como uma razão ou causa que iniba a existência divina não pode ser dada fora da natureza divina, deverá necessariamente ser dada, conquanto [Deus] não exista, na sua própria natureza, a qual por força disso envolveria contradição. Ora, afirmar tal coisa do ente absolutamente infinito e sumamente perfeito é absurdo; logo, nem em Deus nem fora de Deus é dada uma causa ou razão que iniba sua existência e, por conseguinte, Deus existe necessariamente. C. Q. D. Doutra Maneira: Poder não existir é impotência e, ao contrário, poder existir é potência (como é conhecido por si). E assim, se o que agora existe necessariamente não são senão entes finitos, então os entes finitos são mais potentes que o Ente absolutamente infinito; e isto (como é conhecido por si) é absurdo; logo, ou nada existe, ou necessariamente o Ente absolutamente infinito também existe. Ora, nós existimos, ou em nós ou em outro que existe necessariamente (ver Ax. 1 e Prop. 7). Logo, o ente absolutamente infinito, isto é (pela Def. 6), Deus, existe necessariamente. C. Q. D. ÉTICA I Deus Prop. XI

Escólio: Nesta última demonstração, quis mostrar a existência de Deus a posteriori para que a demonstração fosse mais facilmente percebida, e não porque deste mesmo fundamento a existência de Deus não siga a priori. Pois, como poder existir é potência, segue que quanto mais realidade cabe à natureza de alguma coisa, tanto mais forças tem de si para existir; por isso o Ente absolutamente infinito, ou seja, Deus, tem de si potência de existir absolutamente infinita, e por causa disso ele existe absolutamente. Todavia muitos talvez não possam ver facilmente a evidência desta demonstração, já que estão acostumados a contemplar somente as coisas que fluem de causas externas; dentre elas, veem as que são feitas rápido, isto é, que existem facilmente e também perecem facilmente; ao contrário, julgam coisas mais difíceis de ser feitas, isto é, não tão fáceis de existir, aquelas às quais concebem pertencer muita coisa. Na verdade, para liberá-los destes prejuízos, não me dou o trabalho de mostrar aqui por que razão o enunciado o que efeito rápido, rápido perece é verdadeiro, nem também se, com respeito à natureza inteira, tudo é ou não igualmente fácil. Mas basta notar apenas que não falo aqui de coisas feitas por causas externas, mas só de substâncias, que (pela Prop. 6) não podem ser produzidas por nenhuma causa externa. Com efeito, coisas feitas por causas externas, constem elas de muitas ou poucas partes, o que quer que tenham de perfeição, ou seja, realidade, deve-se totalmente à força da causa externa, e por isso a existência delas provém da só perfeição da causa externa e não da perfeição delas. Ao contrário, o que quer que a substância tenha de perfeição não se deve a nenhuma causa externa; por isso, também de sua só natureza deve seguir sua existência, a qual, por conseguinte, não é nada mais que sua essência. A perfeição, portanto, não tira a existência da coisa, mas ao contrário a põe; a imperfeição, ao invés, tira-a, e por isso não podemos estar mais certos da existência de nenhuma coisa do que da existência do Ente absolutamente infinito ou perfeito, isto é, de Deus. Pois, visto que sua essência exclui toda imperfeição e envolve absoluta perfeição, por isto mesmo suprime toda causa de duvidar da sua existência, e dela dá a suma certeza, o que, creio, será claro a quem prestar um pouco de atenção. ÉTICA I Deus Prop. XI

Não pode verdadeiramente ser concebido nenhum atributo da substância do qual siga que a substância possa ser dividida. ÉTICA I Deus Prop. XII

Demonstração: Com efeito, as partes em que se dividiria a substância, assim concebida, ou conservariam a natureza de substância, ou não. Se posto o primeiro caso, então (pela Prop. 8) cada parte deveria ser infinita e (pela Prop. 6) causa de si e (pela Prop. 5) deveria constar de um atributo diverso e, por isso, a partir de uma substância poderiam ser constituídas várias, o que (pela Prop. 6) é absurdo. Acrescente-se que as partes (pela Prop. 2) nada teriam em comum com seu todo, e o todo (pela Def. 4 e Prop. 10) poderia ser e ser concebido sem suas partes, o que ninguém duvidará ser absurdo. Agora, se posto o segundo, a saber, que as partes não conservariam a natureza de substância; então, quando a substância inteira fosse dividida em partes iguais, perderia a natureza de substância e cessaria de ser, o que (pela Prop. 7) é absurdo. ÉTICA I Deus Prop. XII

A substância absolutamente infinita é indivisível. ÉTICA I Deus Prop. XIII

Demonstração: Com efeito, se fosse divisível, as partes em que se dividiría, ou conservariam a natureza da substância absolutamente infinita, ou não. Se posto o primeiro caso, então seriam dadas várias substâncias de mesma natureza, o que (pela Prop. 5) é absurdo. Se posto o segundo, então (como acima) a substância absolutamente infinita poderia cessar de ser, o que (pela Prop. II) é também absurdo. ÉTICA I Deus Prop. XIII

Corolário: Disto segue que nenhuma substância, e consequentemente nenhuma substância corpórea, enquanto é substância, é divisível. ÉTICA I Deus Prop. XIII

Escólio: Que a substância seja indivisível é mais simplesmente entendido a partir disto apenas: a natureza da substância não pode ser concebida senão infinita, e por parte da substância nada outro pode ser entendido senão substância finita, o que (pela Prop. 8) implica contradição manifesta. ÉTICA I Deus Prop. XIII

Além de Deus nenhuma substância pode ser dada nem concebida. ÉTICA I Deus Prop. XIV

Demonstração: Como Deus é o ente absolutamente infinito do qual nenhum atributo que exprime a essência da substância pode ser negado (pela Def. 6), e existe necessariamente (pela Prop. 11), se alguma substância além de Deus fosse dada, deveria ser explicada por algum atributo de Deus, e assim duas substâncias de mesmo atributo existiriam, o que (pela Prop. 5) é absurdo. Por isso nenhuma substância fora de Deus pode ser dada e, consequentemente, nem tampouco ser concebida. Pois se pudesse ser concebida, deveria necessariamente ser concebida como existente, mas isto (pela primeira parte desta Demonstração) é absurdo. Logo, fora de Deus nenhuma substância pode ser dada, nem concebida. C. Q. D. ÉTICA I Deus Prop. XIV

Corolário I: Daí muito claramente segue: Iº que Deus é único, isto é (pela Def. 6), na natureza das coisas não é dada senão uma substância, e ela é absolutamente infinita, como já indicamos no Escólio da Proposição 10. ÉTICA I Deus Prop. XIV

Demonstração: Além de Deus não é dada nem pode ser concebida nenhuma substância (pela Prop. 14), isto é (pela Def. 3), uma coisa que é em si e é concebida por si. Modos, por sua vez (pela Def. 5), não podem ser nem ser concebidos sem substância; por isso só podem ser na natureza divina e só por ela ser concebidos. Ora, nada é dado além de substâncias e modos (pelo Ax. 1). Logo, nada sem Deus pode ser nem ser concebido. C. Q. D. ÉTICA I Deus Prop. XV

Escólio: Há os que forjam Deus à parecença do homem, constando de corpo e mente, e submetido às paixões; mas quão longe estão do verdadeiro conhecimento de Deus, isto consta suficientemente do já demonstrado. Mas deixo-os de lado, pois todos que de alguma maneira contemplaram a natureza divina negam que Deus seja corpóreo. O que também provam muito bem pelo fato de entendermos por corpo uma quantidade qualquer com comprimento, largura e profundidade, delimitada por uma certa figura; e nada mais absurdo que isso pode ser dito de Deus, o ente absolutamente infinito. Ao mesmo tempo, no entanto, com outras razões pelas quais se esforçam em demonstrar o mesmo, mostram claramente que removem por inteiro da natureza divina a própria substância corpórea, ou seja, extensa, e sustentam que ela é criada por Deus. Ora, por qual potência divina poderia ter sido criada, ignoram por completo; o que mostra claramente não entenderem o que eles próprios dizem. Eu ao menos, a meu juízo, demonstrei com suficiente clareza (ver Corol. da Prop. 6 e Esc. 1 da Prop. 8) que nenhuma substância pode ser produzida ou criada por outro. Ademais, mostramos na Proposição 14 que além de Deus nenhuma substância pode ser dada nem concebida; e daí concluímos que a substância extensa é um dos infinitos atributos de Deus. Porém, para uma explicação mais completa, refutarei os argumentos dos adversários, que se reduzem todos ao seguinte. Primeiro, que a substância corpórea, enquanto substância, consta de partes, pensam eles, e por isso negam que possa ser infinita e que possa consequentemente pertencer a Deus; e explicam-no com muitos exemplos, dentre os quais mencionarei um ou outro. Se a substância corpórea, acrescentam, é infinita, que se conceba ser dividida em duas partes; cada uma das partes será ou finita ou infinita. Se finita, então o infinito será composto de duas partes finitas, o que é absurdo. Se infinita, então dar-se-á um infinito duas vezes maior que outro infinito, o que também é absurdo. Além disso, se uma quantidade infinita for medida em partes iguais a um pé, deverá constar de infinitas partes como essas, bem como se medida em partes iguais a uma polegada; e com isso um número infinito será doze vezes maior que outro número infinito. Enfim, que se concebam a partir de um ponto em uma quantidade infinita qualquer duas linhas, como AB e AC, no início com uma distância certa e determinada e estendidas ao infinito; é certo que a distância entre B e C é aumentada continuamente e, por fim, de determinada torna-se indeterminável. ÉTICA I Deus Prop. XV

Portanto, visto que esses absurdos seguem, como pensam, de supor-se a quantidade infinita, daí concluem que a substância corpórea deve ser finita e que, consequentemente, não pertence à essência de Deus. O segundo argumento também é tomado à suma perfeição de Deus. Com efeito, dizem, como Deus é um ente sumamente perfeito, não pode padecer; ora, a substância corpórea, visto ser divisível, pode padecer; logo, segue que ela não pertence à essência de Deus. São esses os argumentos que encontro entre os doutos, pelos quais se esforçam em mostrar que a substância corpórea é indigna da natureza divina e não pode pertencer a ela. Mas na verdade, se alguém atentar corretamente, constatará que já o respondi, visto que tais argumentos fundam-se apenas nisto; supõem composta de partes a substância corpórea, o que já mostrei (Prop. 12 com o Corol. da Prop. 13) ser absurdo. Ademais, se alguém quiser ponderar corretamente o assunto, verá que todos aqueles absurdos (pois são todos absurdos, o que já não disputo), pelos quais querem concluir que a substância extensa é finita, de maneira alguma seguem de que seja suposta a quantidade infinita, mas de que suponham a quantidade infinita mensurável e formada de partes finitas; por isso, a partir dos absurdos que daí seguem, nada outro podem concluir senão que a quantidade infinita não é mensurável e não pode ser formada de partes finitas. E é isto mesmo que acima (Prop. 12 etc.) já demonstramos. Por isso, o golpe que nos pretendem desferir, na verdade acerta a eles mesmos. Portanto, se apesar disso querem concluir a partir desse absurdo que a substância extensa deve ser finita, nada mais fazem, por Hércules, senão como alguém que, de forjar um círculo que tenha as propriedades do quadrado, conclui que o círculo não tem um centro a partir do qual todas as linhas traçadas até a circunferência sejam iguais. Pois para concluir que é finita a substância corpórea, a qual não pode ser concebida senão infinita, senão única e senão indivisível (ver Prop. 8, 5 e 11), eles a concebem formada de partes finitas, múltipla e divisível. Assim também outros, após fingirem que a linha é composta de pontos, sabem inventar muitos argumentos pelos quais mostram que a linha não pode ser dividida ao infinito. E seguramente não é menos absurdo afirmar que a substância corpórea é composta de corpos, ou seja, de partes, do que afirmar que o corpo é composto de superfícies, as superfícies, de linhas, as linhas, enfim, de pontos. E isto devem confessar todos que sabem ser infalível a razão clara, e em primeiro lugar aqueles que negam que se dê o vácuo. Pois se a substância corpórea pudesse ser dividida de tal maneira que suas partes fossem realmente distintas, por que então uma parte não poderia ser aniquilada, permanecendo as demais, como antes, conectadas entre si? E por que todas devem ajustar-se de tal maneira que não se dê o vácuo? Por certo, das coisas que são realmente distintas entre si, uma pode ser sem a outra e permanecer em seu estado. Portanto, como não é dado o vácuo na natureza (do que falei alhures), mas todas as partes devem concorrer de tal maneira que não seja dado o vácuo, daí segue também que elas não podem distinguir-se realmente, isto é, a substância corpórea, enquanto é substância, não pode ser dividida. Se alguém, todavia, perguntar agora por que somos por natureza propensos a dividir a quantidade, respondo-lhe que a quantidade é por nós concebida de duas maneiras: abstratamente, ou seja, superficialmente, conforme a imaginamos, ou como substância, o que só é feito pelo intelecto. E assim, se prestarmos atenção à quantidade conforme ela é na imaginação, o que é feito amiúde e mais facilmente por nós, será encontrada finita, divisível e formada de partes; já se prestarmos atenção a ela conforme é no intelecto, e a concebermos enquanto é substância, o que é dificílimo fazer, então será encontrada infinita, única e indivisível, como já demonstramos suficientemente. O que será assaz manifesto a todos que saibam distinguir entre imaginação e intelecto; mormente se também for dada atenção a que a matéria é em todo lugar a mesma e que nela não se distinguem partes senão enquanto a concebemos afetada de diversos modos, donde suas partes se distinguirem apenas modalmente, mas não realmente. Por ex., concebemos que a água, enquanto é água, se divide, e suas partes separam-se umas das outras; mas não enquanto é substância corpórea, pois, como tal, nem se separa nem se divide. Ademais, a água, enquanto água, é gerada e corrompida; mas, enquanto substância, nem é gerada nem corrompida. E com isso penso ter respondido também ao segundo argumento, visto que este igualmente se funda em ser a matéria, enquanto substância, divisível e formada de partes. E ainda que não fosse assim, não sei por que ela seria indigna da natureza divina, visto que (pela Prop. 14) fora de Deus não pode ser dada nenhuma substância pela qual [essa natureza] padeça. Tudo, insisto, é em Deus, e tudo que é feito, somente é feito pelas leis infinitas da natureza de Deus e segue da necessidade de sua essência (como há pouco mostramos); pois por nenhuma razão podemos dizer que Deus padeça por outro ou que a substância extensa seja indigna da natureza divina, ainda que se a suponha divisível, contanto que se conceda que é eterna e infinita. Mas sobre isso por ora basta. ÉTICA I Deus Prop. XV

Demonstração: Tudo que é, é em Deus e por Deus deve ser concebido (pela Prop. 15), e por isso (pelo Corol. 1 da Prop. 16) Deus é causa das coisas que são nele; o que é o primeiro. Além disso, fora de Deus não pode ser dada nenhuma substância (pela Prop. 14), isto é (pela Def. 3), uma coisa que seja em si fora de Deus; o que era o segundo. Logo, Deus é a causa imanente de todas as coisas, mas não transitiva. C. Q. D. ÉTICA I Deus Prop. XVIII

Demonstração: Com efeito, Deus (pela Def. 6) é a substância que (pela Prop. 11) existe necessariamente, isto é (pela Prop. 7), a cuja natureza pertence existir, ou seja (o que é o mesmo), de cuja definição segue que ele existe, e por isso (pela Def. 8) é eterno. Em seguida, por atributos de Deus cumpre entender aquilo que (pela Def. 4) exprime a essência da substância divina, isto é, o que pertence à substância; é isso mesmo que os próprios atributos devem envolver. Ora, à natureza da substância (como já demonstrei pela Prop. 7) pertence a eternidade. Logo, cada um dos atributos deve envolver eternidade, e assim todos são eternos. C. Q. D. ÉTICA I Deus Prop. XIX

Demonstração: Tudo que é determinado a existir e operar, assim é determinado por Deus (pela Prop. 16 e Corol. da Prop. 24). Mas aquilo que é finito e tem existência determinada não pôde ser produzido pela natureza absoluta de algum atributo de Deus, pois tudo que segue da natureza absoluta de algum atributo de Deus é infinito e eterno (pela Prop. 11). Logo, deve ter seguido ou de Deus ou de algum atributo dele enquanto considerado afetado por algum modo; com efeito, além da substância e dos modos nada é dado (pelo Ax. 1 e Def. 3 e 5); e os modos (pelo Corol. da Prop. 25) nada são senão afecções [affectio] dos atributos de Deus. Ora, também não pôde seguir de Deus ou de algum atributo dele enquanto afetado por uma modificação que é eterna e infinita (pela Prop. 22). Logo, deve ter seguido ou sido determinado a existir e operar por Deus ou algum atributo dele enquanto modificado por uma modificação que é finita e tem existência determinada; o que era o primeiro. Ademais, por sua vez, esta causa, ou seja, este modo (pela mesma razão pela qual demonstramos, há pouco, a primeira parte desta), deve também ter sido determinada por outra, que também é finita e tem existência determinada, e por sua vez esta última (pela mesma razão) o é por outra, e assim sempre (pela mesma razão) ao infinito. C. Q. D. ÉTICA I Deus Prop. XXVIII

Escólio: Antes de prosseguir, quero aqui explicar, ou melhor, advertir, o que nos cumpre entender por Natureza naturante e por Natureza naturada. Com efeito, pelo já exposto, estimo estar estabelecido que por Natureza naturante nos cumpre entender aquilo que é em si e é concebido por si, ou seja, os atributos da substância, que exprimem uma essência eterna e infinita, isto é (pelo Corol. I da Prop. 14 e Corol. 1 da Prop. 17), Deus enquanto considerado como causa livre. Por Natureza naturada, entretanto, entendo tudo aquilo que segue da necessidade da natureza de Deus, ou seja, de cada um dos atributos de Deus, isto é, todos os modos dos atributos de Deus, enquanto considerados como coisas que são em Deus, e que sem Deus não podem ser nem ser concebidas. ÉTICA I Deus Prop. XXIX

Demonstração: A ideia verdadeira deve convir com seu ideado (pelo Ax. 6), isto é (como é conhecido por si), o que está contido objetivamente no intelecto deve necessariamente ser dado na Natureza; ora, na Natureza (pelo Corol. 1 da Prop. 14) não é dada senão uma única substância, Deus, e nenhumas outras afecções [affectio] (pela Prop. 15) senão as que são em Deus, as quais (pela mesma Prop.) sem Deus não podem ser nem ser concebidas; logo, o intelecto, finito em ato ou infinito em ato, deve compreender os atributos de Deus e as afecções [affectio] de Deus, e nada outro. C. Q. D. ÉTICA I Deus Prop. XXX

Demonstração: A vontade é somente um certo modo de pensar, assim como o intelecto; e por isso (pela Prop. 28) cada volição não pode existir nem ser determinada a operar, a não ser que seja determinada por outra causa, e essa por sua vez por outra e assim por diante ao infinito. E se a vontade for suposta infinita, deve também ser determinada a existir e a operar por Deus, não enquanto é substância absolutamente infinita, mas enquanto tem um atributo que exprime a essência eterna e infinita do pensamento (pela Prop. 23). Por conseguinte, qualquer que seja a maneira pela qual [a vontade] é concebida, seja finita seja infinita, requer uma causa pela qual seja determinada a existir e a operar; e por isso (pela Def. 7) não pode ser dita causa livre, mas somente necessária ou coagida. C. Q. D. ÉTICA I Deus Prop. XXXII

Escólio: Aqui, antes de prosseguir, cumpre-nos trazer à memória o que mostramos acima: o que quer que possa ser percebido pelo intelecto infinito como constituindo a essência da substância pertence apenas à substância única e, por conseguinte, a substância pensante e a substância extensa são uma só e a mesma substância, compreendida ora sob este, ora sob aquele atributo. Assim também um modo da extensão e a ideia desse modo são uma só e a mesma coisa, expressa todavia de duas maneiras; o que parecem ter visto certos Hebreus, como que por entre a névoa, ao sustentarem que Deus, o intelecto de Deus e as coisas por ele entendidas são um só e o mesmo. Por exemplo, um círculo existente na natureza e a ideia do círculo existente, que também está em Deus, são uma só e a mesma coisa, que é explicada por atributos diversos; e portanto, quer concebamos a natureza sob o atributo Extensão, quer sob o atributo Pensamento, quer sob outro qualquer, encontraremos uma só e a mesma ordem, ou seja, uma só e a mesma conexão de causas, isto é, as mesmas coisas seguirem umas das outras. E por isso, quando eu disse que Deus é causa de uma ideia, da de círculo por exemplo, apenas enquanto é coisa pensante, e do círculo apenas enquanto é coisa extensa, não foi senão porque o ser formal da ideia de círculo só pode ser percebido por outro modo de pensar, como causa próxima, e este, por sua vez, por outro, e assim ao infinito, de tal maneira que, enquanto as coisas são consideradas como modos de pensar, devemos explicar a ordem da natureza inteira, ou seja, a conexão das causas, pelo só atributo Pensamento, e enquanto são consideradas como modos da Extensão, também a ordem da natureza inteira deve ser explicada pelo só atributo Extensão; e entendo o mesmo quanto aos outros atributos. Por isso Deus, enquanto consiste em infinitos atributos, é verdadeiramente causa das coisas como são em si; e por ora não posso explicar isso mais claramente. ÉTICA II Prop. VII

À essência do homem não pertence o ser da substância, ou seja, a substância não constitui a forma do homem. ÉTICA II Prop. X

Demonstração: Com efeito, o ser da substância envolve existência necessária (pela Prop. 7 da parte 1). Portanto, se à essência do homem pertencesse o ser da substância, então, dada a substância, seria dado necessariamente o homem (pela Def. 1 desta parte) e, por conseguinte, o homem existiria necessariamente, o que (pelo Ax. 1 desta parte) é absurdo. Logo, etc. C. Q. D. ÉTICA II Prop. X

Escólio: Esta proposição também é demonstrada pela Prop. 5 da parte 1, a saber, que não são dadas duas substâncias de mesma natureza. E como podem existir vários homens, logo o que constitui a forma do homem não é o ser da substância. Além disso, esta proposição é patente pelas outras propriedades da substância, a saber, que a substância é, por sua natureza, infinita, imutável, indivisível etc, como cada um pode ver facilmente. ÉTICA II Prop. X

Demonstração: O ser da substância (pela Prop. preced.) não pertence à essência do homem. Esta, portanto (pela Prop. 15 da parte 1), é algo que é em Deus e que sem Deus não pode ser nem ser concebido, ou seja (pelo Corol. da Prop. 25 da parte 1), uma afecção [affectio], ou seja, um modo que exprime a natureza de Deus de maneira certa e determinada. ÉTICA II Prop. X

Lema I: Os corpos se distinguem uns dos outros em razão do movimento e do repouso, da rapidez e da lentidão, e não em razão da substância. Demonstração: Suponho a primeira parte conhecida por si. E que os corpos não se distingam em razão da substância é patente tanto pela Prop. 5, quanto pela Prop. 8 da parte 1. Mas, ainda mais claramente, a partir do que foi dito no Esc. da Prop. 15 da parte 1. ÉTICA II Prop. XIII

Lema IV: Se de um corpo que é composto de vários corpos, ou seja, de um Indivíduo, são separados alguns corpos, e simultaneamente tantos outros da mesma natureza ocupam o seu lugar, o Indivíduo manterá a sua natureza de antes, sem nenhuma mudança de sua forma. Demonstração: Com efeito, os corpos (pelo Lema 1) não se distinguem em razão da substância; e aquilo que constitui a forma do Indivíduo consiste na união de corpos (pela Def. preced.); ora, esta (por Hipótese) será mantida, ainda que ocorra uma contínua mudança de corpos; portanto, o Indivíduo manterá a sua natureza de antes tanto em razão da substância como do modo. C. Q. D. ÉTICA II Prop. XIII

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