código restrito

Category: Termos chaves da Filosofia
Submitter: mccastro

código restrito

A reflexão filosófica parte de uma experiência muito simples: do fato de que, em uma primeira aproximação, servimo-nos de dois tipos de linguagem para falar do mundo; o filósofo Bernstein (em Douglas, 1970) os distinguiu e chamou de códigos "restrito"e "elaborado".

Quando descrevo os objetos que estão sobre a minha escrivaninha, esta lâmpada de leitura, este ditafone, estas flores, estas folhas de papel, descrevo-os sem me preocupar com o alcance dessas descrições. O que me importa é que uma pessoa a par das práticas linguageiras de nossa cultura possa reconhecer a lâmpada de leitura, os livros, a caneta etc. Do mesmo modo, se digo que fulano esposou beltrana, normalmente não me lançarei com base nisso em uma reflexão elaborada sobre a significação do casamento e do amor. Utilizo então o código restrito: a linguagem do dia-a-dia, útil na prática e que não leva adiante todas as distinções que se poderia fazer para aprofundar o meu pensamento. Caracteriza-se pelo fato de que aqueles que a utilizam partilham as mesmas pressuposições de base sobre o sujeito de que falam; o discurso científico entra nessa categoria.

Por outro lado, se começo a colocar-me questões sobre a amizade a vida, a morte, a justiça etc, produzirei um outro tipo de discurso, bem diferente daquele do código restrito. Observarei, por exemplo, que a noção de amizade não é clara. Para torná-la mais precisa, contarei histórias, e efetuarei múltiplas distinções. Precisarei ultrapassar a minha experiência de vida cotidiana, a fim de atingir camadas "mais profundas" de minha personalidade e da nossa vida em comum. Bernstein chamou de "código elaborado" o tipo de discurso que produzimos quando tentamos superar dessa maneira a linguagem cotidiana e prática (chamada também por vezes de "linguagem da utensilidade"). O que caracteriza o discurso elaborado é que ele é utilizado para falar de sujeitos a respeito dos quais não partilhamos necessariamente as mesmas pressuposições de base.

Em uma primeira aproximação, o código restrito fala do "como" das coisas, do mundo e das pessoas, ao passo que o código elaborado procura dizer algo do "porquê" e do "sentido". De modo geral, as ciências se ocupam com a linguagem restrita. No Ocidente, ainda falando de maneira geral, a filosofia — e por vezes também a religião — ocupa-se com o código elaborado (não se deve contudo jamais levar demasiado longe as distinções nem as teorias, aliás. Pode haver momentos em que o físico ou o biólogo se colocam questões "mais elaboradas" sobre a matéria ou a vida. Pode-se dizer que eles começam então a filosofar. Qualquer que seja a maneira pela qual se considera essa tendência dos cientistas a filosofar, podemos dizer, em uma primeira abordagem, que a distinção entre os códigos "restrito" e "elaborado" funciona bastante bem).

Dentro desta perspectiva, o código restrito corresponde ao interesse que têm os homens e as mulheres em colocar ordem em seu mundo, em controlá-lo e comunicar a outrem a maneira pela qual o vêem. Habermas (1973) falará de um interesse técnico. É um código prático. Além disso, utiliza-se o código elaborado quando se trata de interpretar os acontecimentos, o mundo, a vida humana, a sociedade. Assim, Habermas dirá que esse interesse filosófico está ligado ao interesse hermenêutico ou interpretatório dos seres humanos. Ainda mais, o código elaborado — e a filosofia — é utilizado quando se trata de "criticar" interpretações habitualmente recebidas (ou seja, de emitir uma opinião mais refletida que especifique os seus "critérios"; a palavra "criticar" vem do grego e significa "efetuar um julgamento", não tem nada a ver com "denegrir"). Essa superação das ideias geralmente admitidas corresponde a um interesse emancipatório. Como somos por vezes prisioneiros de esquemas de interpretações da vida, do mundo e da sociedade, uma linguagem crítica tem por finalidade libertar-nos dessa prisão e renovar o nosso olhar.

Desse modo, se considero a noção de "mulher", posso primeiramente utilizá-la no código restrito: nesse caso, todos compreendem o que significa. Em um outro plano, porém, ultrapassamos essa visão pragmática da noção "mulher" para utilizar uma representação que dê uma interpretação mais "fundamental" dela; esta se liga evidentemente à cultura de uma civilização, de um meio social, de nossa história pessoal etc. (assim, as pessoas verão a mulher de modo diferente na Idade Média e na era industrial -civilizações diferentes -; meios de sociedade diferentes — por exemplo, as classes burguesa ou operária, ou ainda os homens e as mulheres — veicularão uma imagem que lhes será própria; e cada indivíduo terá uma representação da mulher influenciada pelas atitudes que tiveram os seus pais). Uma reflexão filosófica tentará fornecer uma representação da mulher (interesse interpretatório ou hermenêutico) que ultrapasse as noções alienantes de feminilidade (interesse emancipatório). O fato de que a noção de mulher é algumas vezes ligada à visão de um ser relativamente indefeso e pouco inteligente, se bem que sensível, e outras vezes à representação de um parceiro igual ao homem, mostra bem que uma certa atividade "crítica" pode ser necessária para superar visões que aprisionam. Do mesmo modo, uma reflexão crítica pode liberar visões morais demasiado estreitas.

Como outro exemplo, consideremos como a noção de "ciência" é utilizada no código restrito e no código elaborado. O código restrito é aquele utilizado na maior parte dos cursos de ciências. Supõe-se saber do que se fala, e não se exige reflexão ulterior. Porém, caso se procure fazer uma ideia do que seja "em definitivo" a ciência, isto é, dar uma interpretação que faça "sentido" para nós, a tarefa se torna mais complexa. Todas essas interpretações não são equivalentes. Nesse nível interpretatório, a noção que se tem da ciência será ligada, graças a uma linguagem elaborada, a outros conceitos, tais como a felicidade dos humanos, o progresso, a verdade etc. Essa linguagem elaborada — essa filosofia da ciência -permitirá uma interpretação daquilo que a linguagem restrita diz a respeito da ciência. Além disso, a palavra "ciência" pode por vezes "aprisionar", por exemplo, quando alguns passam a impressão de que, uma vez que se falou de cientificidade, não há nada mais a fazer senão se submeter a ela, sem dizer ou pensar mais nada a respeito. Um filósofo "crítico" ou "emancipatório" da ciência procurará portanto compreender como e por que as ideologias da cientificidade podem mascarar interesses de sociedade diversos. [FOUREZ]

Submitted on:  Sun, 21-Sep-2014, 08:44