qualidade dos valores

Category: Termos chaves da Filosofia
Submitter: Murilo Cardoso de Castro

qualidade dos valores

Vamos examinar esta segunda categoria dos valores, a qualidade (v. objetividade dos valores). É uma qualidade irreal, ou seja, que não é real. Uma qualidade irreal, por quê? Porque não é coisa. Uma qualidade irreal é uma qualidade tal que se eu a imagino artificialmente, à parte do objeto que a possui, não posso senão considerá-la irreal. Se eu me represento o verde à parte da lâmpada, posso considerar a "verdosidade" como algo real, porque tem todos os caracteres da realidade. Quais são estes caracteres da realidade? Descrevemo-los na lição anterior: têm ser, têm espacialidade, têm temporalidade e causalidade. Porém se eu separo a beleza daquilo que é belo, a beleza carece de ser; a beleza não é; não há algo entitativamente existente, ainda que seja idealmente, que seja a beleza, antes sempre beleza é qualidade de uma coisa. Por conseguinte, examinando as relações entre a coisa que tem valor e o valor tido pela coisa, chegamos à conclusão de que a qualidade valiosa — o valor — é irreal no sentido de que não é uma res, uma coisa.

Mas não basta com isto, porque, como conhecemos outra esfera de objetos que são os objetos ideais, poderíamos sentir-nos tentados a tirar daqui, em conclusão, que se o valor não é uma qualidade real, talvez seja uma qualidade ideal. Mas também não é uma qualidade ideal. Porque, que é o ideal? Definimo-lo numa lição anterior. Assim como o real é aquilo que tem causa e produz efeitos, disséramos que o ideal é aquilo que tem fundamento e consequências. O triângulo, o círculo, o número 3, qualquer objeto matemático, as relações, são ideais; o que quer dizer que seu modo de conexão não é o modo de conexão por causa é efeito, mas o mundo de conexão por fundamento e consequência, como, por exemplo, no silogismo, e por isso estão fora do tempo e do espaço, porque os fundamentos de conexão entre os elementos de um conjunto ideal não se sucedem uns aos outros no tempo por "causação", mas estão conexos fora do tempo por implicação de fundamento e consequência. E então se os valores fossem o fundamento da "valiosidade" da coisa, eu poderia demonstrar a beleza, demonstrar a bondade, demonstrar os valores mesmos, como posso demonstrar a propriedade dos números ou posso demonstrar as propriedades das figuras, as relações puras, as essências puras. Mas eis aqui que os valores não se podem demonstrar, mas a única coisa que se pode fazer é mostrá-los. Logo os valores não têm idealidade no sentido que demos nós a essa palavra. Não a têm, e não são, pois, qualidades nem reais nem ideais. Por isso, a única maneira de designá-los é uma maneira negativa, e dizer que são qualidades irreais, não reais. Porém não devemos chamá-los ideais, porque então os intuiríamos no conjunto das estruturas do ser ideal e os faríamos cair sob as leis rígidas da demonstração.

Com isto não fica ainda perfeitamente determinada a estrutura ontológica dos valores, porque, embora já saibamos que são valentes e não entes, e que são qualidades irreais, ainda devemos declarai mais algumas coisas. São, por exemplo, estranhos por completo à quantidade, e sendo estranhos à quantidade, são também estranhos — como já o indicamos de passagem — ao tempo e ao espaço.

Quando uma coisa é valiosa, quando um quadro é belo, ou um ato é justo ou generoso, assim é independentemente do tempo, do espaço e do número. Não se pode dizer que um quadro seja tantas vezes belo. Não há maneira de contar, de dividir a beleza em unidades. Não se pode dizer que um quadro começa a ser belo, que esteja sendo belo num momento e depois deixe de ser belo. Não se pode dizer que um quadro seja belo aqui e feio lá. De modo que os valores são independentes do número, independentes do tempo e independentes do espaço.

Além disso, os valores são absolutos. Se não fossem absolutos os valores, que seriam? Teriam que ser relativos. E, que significa ser relativo? Significa ser valor para uns indivíduos mas não para outros; para umas épocas históricas, mas não para outras. Mas isto não pode acontecer com os valores, porque vimos que os valores são alheios ao tempo, ao espaço e ao número. Se houvesse valores que fossem valores para uns mas não para outros, seriam dependentes desses uns para os quais são valores e não dependentes daqueles outros; quer dizer, estariam em relação ao tempo, e não o podem estar. Se dizemos que pode haver valores que o são para uma época histórica mas não para outra, também estariam em dependência de tempo e de espaço, e não o podem estar. Mas exclamará alguém: Isso não se pode dizer, já que há ações que foram consideradas como justas e logo mais, na história, foram consideradas como injustas; que há quadros ou objetos naturais que foram considerados como belos e logo mais, na história, foram considerados como feios, ou vice-versa: em suma, que não há unanimidade na história e no tempo sucessivo, nem no espaço, nem nos homens ao intuírem os valores. Mas isto não é uma objeção. Note-se bem que esta não é uma objeção; é o mesmo que se dissesse que antes de Pitágoras o teorema de Pitágoras não era verdade, ou que antes de Newton a lei da gravitação não existia. Não têm sentido estas suposições relativistas, porque a única coisa que pode ter e tem um sentido é dizer que a lei da gravitação não foi conhecida pelo homem até Newton; mas não que a lei da gravitação dependa na sua realidade ôntica do tempo em que foi descoberta. Pois é exatamente o mesmo. Os homens podem intuir tais valores ou não intuí-los, ser cegos ou clarividentes para eles; mas o fato de que exista uma relatividade "histórica" no homem e nos seus atos de percepção e de intuição de valores, não nos autoriza de modo algum a trasladar esta relatividade histórica do homem aos valores e dizer que porque o homem é relativo, relativamente histórico, sejam assim também os valores. O que se passa é que há épocas que não têm possibilidades de perceber certos valores; mas quando as épocas seguintes chegam a perceber tais valores, isto não quer dizer que de pronto ao perceberem-nos os criam, mas que estavam aí, de um modo que não vou agora definir, e que esses valores que estavam aí são, num momento da história, percebidos ou intuídos por essas épocas históricas e por esses homens descobridores de valores Tudo isto encontramos nas duas primeiras categorias dessa esfera axiológica, dessa esfera estimativa, a saber: que os valores não são entes, mas valentes. Que os valores são qualidades de coisas, qualidades irreais, qualidades alheias à quantidade, ao tempo, ao número, ao espaço, e absolutas. [Morente]

VIDE polaridade dos valores

Submitted on:  Fri, 30-Mar-2012, 18:27