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Dilthey

Definition:
DILTHEY (Wilhelm), filósofo alemão (Biebrich, Renânia, 1833 — Seis, Tirol, 1911). Filho de pastor, começou a escrever por volta dos cinquenta anos, sendo sua influência notada sobretudo depois de sua morte. É a ele que se deve a noção de "ciências do espírito" (Geisteswissenschaften), denominadas recentemente "ciências humanas". Tentou delimitar-lhe o domínio em relação às ciências naturais e às ciências exatas. Segundo ele, a psicologia é a sua base mais sólida, levando-se em conta que é uma ciência descritiva (ao contrário da moral e da metafísica). Contudo, se ela se preocupa em anexar o método e o rigor científicos, a filosofia tal como a concebe Dilthey não pretende limitar-se por causa dos recursos da inteligência discursiva: da mesma maneira que existe nas ciências da natureza uma "intuição do mundo sensível", existe uma intuição do mundo humano, cultural e social, cujo órgão, segundo Dilthey, é a "compreensão espiritual". Deve-se-lhe notadamente: Introdução às ciências do espírito (1883), A essência da filosofia (1907), A construção do mundo da história nas ciências do espírito (1910). — Seu objetivo foi estender a Crítica de Kant ao domínio das ciências do homem. Na verdade, sua obra é sobretudo pragmática: sua importância consiste em ter aberto um caminho, que seria explorado pelo desenvolvimento ulterior da sociologia e da psicologia social. [Larousse]


Wilhelm Dilthey (1833-1911) pertence a uma época já superada, mas sua influência começou a aumentar depois da Primeira Guerra Mundial. Por isso tem aqui seu lugar. Historiador eminente, partiu do positivismo, mas recebera também fortes influências kantianas. Sob este aspecto, é um pensador típico do século XIX. No entanto, merece ser contado entre os representantes eminentes da crise de 1900, pois que soube dominar as duas influências mencionadas em benefício de um relativismo irracionalista. Seu problema central é a vida e a compreensão da vida. Concebe a vida teleologicamente (v. teleologia), como um complexo de tendências, como unidade cerrada; ela é "uma conexão que abarca o gênero humano". Cada manifestação da vida possui um sentido, enquanto exprime, como sinal, algo que pertence à vida. Na teoria do conhecimento, Dilthey opõe-se às doutrinas intelectualistas: não conhecemos com a inteligência, mas sim com a totalidade de nossa alma e constatamos o mundo exterior por meio de nossa vontade ao esbarrar com uma resistência. Dilthey elaborou uma minuciosa teoria do conhecimento das ciências do espírito (hermenêutica), os três princípios básicos da qual são os seguintes: o conhecimento histórico é reflexão sobre si mesmo; compreender (verstehen) não é explicar (erklären), não é uma função racional, mas cumpre-se com todas as forças emotivas da alma; a compreensão é um movimento da vida para a vida, porque a própria realidade é vida. Só mediante a cooperação de todas as forças da alma e pela nossa coesão interna é que podemos compreender a coesão total.

Já quase no fim da vida, Dilthey elaborou uma doutrina da concepção do mundo: a Weltanschauung pode reduzir-se, em última instância, ao comportamento humano e às diversas posições vitais supremas. Ê mister repor o homem e sua filosofia na corrente histórica. Podemos assinalar na história três tipos de filosofias, que correspondem a três atitudes vitais. Se predomina a inteligência, surge o materialismo positivista; se uma atitude afetiva domina, chegamos ao idealismo panteísta objetivo; e quando a vontade prevalece, temos o idealismo da liberdade de Platão, do cristianismo ou de Kant. A filosofia, como tudo quanto é humano, é inteiramente relativa. "A derradeira palavra da concepção histórica do mundo é a relatividade de qualquer tipo de concepção humana, tudo flui, nada permanece". Principalmente por seu relativismo e pela permuta que faz entre a razão e a vida é que a filosofia de Dilthby, que todavia encerra outros aspectos, exerce grande influência sobre a filosofia contemporânea. Destes outros problemas mencionaremos tão-só a sua teoria do tempo, a qual já anuncia a filosofia de Heidegger.

Sucessores de Dilthey.

Um certo número de pensadores, que entre si, aliás, muito diferem, são influenciados pela filosofia de Dilthey. Mencionemos, por um lado, Ernst Troeltsch (1865-1923), teólogo protestante, filósofo da religião e da história e historiador da cultura, e, por outro lado, uma autêntica escola diltheyana, cujos membros, embora separando-se de outros pontos do seu sistema, permanecem todos fiéis ao historicismo. Em primeiro lugar, Eduard Spranger (1882-1963), célebre por seus trabalhos de filosofia da cultura, de psicologia e de pedagogia. A par dele, Erich Rothacker (1888-1965), Georg Misch (1878-1965) e Hans Freyer (1887-1969). Theodor Litt (1880- ) depende muito menos de Dilthey, mas apesar disso pode ainda ser contado entre os membros desta escola. Estes não são mais do que os nomes principais de um movimento muito ramificado.

Fora desta escola, muitos pensadores há que, embora não possam ser qualificados de diltheyanos no sentido estrito, se encontram sob a influência do historicismo, a qual se manifesta no profundo interesse pela filosofia da história. Nomeemos, em primeiro lugar, Oswald Spengler (1880-1936), autor da obra que se tornou tão famosa após a primeira guerra mundial, O Decadência do Ocidente (Der Untergang des Abenälandes, 1918-1922). A filosofia de Spengler estriba nas concepções radicalmente vitalistas de Nietzsche, bem como nas de Dilthey. Tornou-se famoso principalmente pela sua teoria dos ciclos de cultura, que, segundo ele, comportam uma duração de cerca de 1000 anos. Spengler é relativista radical: não há verdades eternas; cada filosofia é expressão de seu tempo e só de seu tempo. A verdade só existe em função de uma humanidade determinada. Arnold Toynbee (1889- ) tem sido apontado, e não sem razão, como discípulo de Spengler em matéria de filosofia da história; contudo dispõe de conhecimentos muitíssimo mais vastos e chega a conclusões menos pessimistas que Spengler. Em A Study of History (6 vols., 1934-1939), obra notável pela abundância do material histórico utilizado e pela riqueza de pensamento, Toynbee procurou estabelecer leis gerais do desenvolvimento e do declínio das civilizações. Particularmente importante é o fato de substituir a ideia de progresso, universalmente generalizada no século XIX, pelo conceito de ciclos culturais e históricos. Este conceito, que está já à base da obra de Spengler, adquiriu relevante importância graças a Toynbee e até foi utilizado no domínio científico pela notável escola sociológica dirigida por Pitrim Sorokin. Mencionemos ainda aqui outro filósofo inglês da história, R. G. Collingwood (1891-1943), também partidário do historicismo.


Wilhelm Dilthey, nascido em 1833 e falecido em 1911, professor em Berlim a partir de 1882, é — com Brentano — o mais importante de todos os antecedentes da filosofia atual. A rigor, é muito mais que um antecedente, porque a estranha realidade da vida humana foi por ele estudada com uma autêntica genialidade, e é forçoso recorrer continuamente a sua obra ao desejar-se um conhecimento aprofundado naquele campo. Porém o valor filosófico dos escritos — aparentemente psicológicos ou históricos — de Dilthey tardou a ser descoberto, pelo menos suficientemente: talvez tivesse sido preciso que a filosofia desse passos decisivos, que inclusive excedem as descobertas de Dilthey, para que estas fossem compreendidas e utilizadas em sua integridade. Hoje, junto à psicologia "empírica" de Brentano, regida por sua ideia da intencionalidade, que abriu espaço para o método fenomenológico e para a metafísica, deve-se colocar indubitavelmente a psicologia descritiva e analítica postulada em boa parte realizada, por Dilthey. Um e outro são as fontes mais diretas da filosofia que se está fazendo hoje na Europa: a metafísica da existência ou da vida humana, que tem como método a, fenomenologia e como exigência capital o sistematismo.

Em Dilthey encontra-se abordada a questão com uma maturidade superior a de todos os pensadores contemporâneos. Prova disso serão os fragmentos que traduzo a seguir. Não é possível tentar uma antologia de seu pensamento acerca da realidade humana, porque a totalidade de seus escritos versa unicamente sobre esse tema. Vi-me obrigado a escolher apenas algumas passagens representativas nas quais resume, em forma concisa e acertada, os resultados capitais de sua longa meditação sobre a vida humana.

Sobre Dilthey pode-se ler: O. Misch: Lebensphilosophie und Phänomenologie (1930, ‘); A. Degener: Dilthey und das Problem der Metaphysik (1933); J. Ortega y Qasset: Guillermo Dilthey y la idea de la vida (1934); J. Höfer: Vom Leben zur Wahrheit (1936) [Marías]


Observações de Gadamer

As pesquisas que se seguem tentam cumprir essa exigência, entrelaçando o mais estreitamente possível, o questionamento histórico-conceitual com a exposição objetiva de seu tema. A conscienciosidade da descrição fenomenológica, que Husserl nos tornou um dever, a abrangência do horizonte histórico, onde Dilthey situou todo o filosofar, e, não por último, a compenetração de ambos os impulsos, cuja iniciativa recebemos de Heidegger há décadas, assinalam o paradigma sob o qual se colocou o autor, e cujo comprometimento, apesar de toda imperfeição da execução, gostaria que ficasse claro. VERDADE E MÉTODO Introdução

Também Dilthey, em quem a influência do método científico-natural e o empirismo da lógica de Mill se faz sentir bem mais fortemente, mantém firme, no entanto, a herança romântico-idealista no conceito de espírito. Sempre se sentiu superior ao empirismo inglês, porque mantinha-se apegado à viva concepção do que caracterizava a escola histórica em face de todo e qualquer pensamento concernente às ciências da natureza e ao direito natural. "Só da Alemanha pode vir o verdadeiro procedimento empírico no lugar do empirismo preconceituoso e dogmático. "Mill é dogmático por lhe faltar formação histórica" — esta é uma anotação que Dilthey escreveu no seu exemplar da Lógica de Mill. Na realidade, todo o trabalho cansativo, de várias décadas, que Dilthey dedicou à fundamentação das ciências filosóficas, é um permanente confronto com a exigência lógica, que Mill apresentou no seu famoso capítulo final das ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Mesmo assim, Dilthey se deixou influenciar profundamente pelo modelo das ciências da natureza, embora quisesse justificar justamente a independência metódica das ciências do espírito. Duas testemunhas podem elucidar isso, e ao mesmo tempo indicar o caminho das considerações que se seguem. No seu necrológio sobre W. Scherer, Dilthey destaca que o espírito das ciências da natureza guiou o procedimento de Scherer, e pretende fundamentar por que Scherer se colocou tão diretamente sob a influência do empirismo inglês: "Ele era um homem moderno, e o mundo de nossos antepassados não era mais a pátria de seu espírito e de seu coração, mas seu objeto histórico". Nessa formulação observa-se o seguinte: Para Dilthey, ao conhecimento científico pertence a dissolução dos vínculos vitais, a conquista de uma distância em relação à própria história, pois somente isso possibilita torná-la objeto. Pode-se até reconhecer que o manuseio dos métodos indutivo e comparativo, tanto da parte de Scherer como de Dilthey, era guiado por um genuino tato individual, e que esse tato pressupõe uma cultura anímica, que comprova nesses homens, na verdade, a continuidade do mundo de formação clássica e da crença da individualidade romântica. Não obstante, continua sendo o modelo das ciências da natureza que orienta a autoconcepção científica de ambos. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Isso virá a ser bastante palpável num segundo testemunho, em que Dilthey se refere à independência dos métodos das ciências do espírito e fundamenta-os levando em consideração o seu objeto. Uma tal referência soa, de início, bem aristotélica e poderia gerar uma genuína substituição do modelo das ciências da natureza. No entanto, no que diz respeito a essa independência dos métodos das ciências do espírito, Dilthey continua vinculando-a ao antigo "Natura parendo vincitur" de Bacon — um postulado que faz saltar aos olhos a herança clássico-romântica, que Dilthey queria administrar. Pode-se assim dizer que, mesmo Dilthey, cuja formação histórica forma sua superioridade em face do neokantianismo de sua época, apesar de seus esforços lógicos, no fundo não conseguiu ir além das simples constatações que Helmholtz fez. Pode até ser que Dilthey tenha batalhado muito a favor da independência teorético-cognitiva das ciências do espírito — o que se denomina método na ciência moderna é algo único e o mesmo por toda parte e só especialmente nas ciências da natureza cunha-se como modelar. Não existe nenhum método específico para as ciências do espírito. Mas certamente pode-se indagar, como Helmholtz, quanto significa aqui o método, e se as outras condições, sob as quais se encontram as ciências do espírito, não serão, para sua forma de trabalhar, quem sabe muito mais importantes do que a lógica indutiva. Helmholtz o havia indicado corretamente, quando ele, para satisfazer as exigências das ciências do espírito, salientou a memória e a autoridade e falou do tato psicológico, que aqui entraria no lugar do concluir (Schliessen) consiste esse tato? Como podemos adquiri-lo? Será que, ao cabo, o que há de científico nas ciências do espírito depende mais do tato do que de sua metodologia? VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Corresponde a essa dupla direção do significado de "vivenciar" o fato de que a literatura biográfica é que por primeiro deu cidadania à palavra "vivência". A essência da biografia, principalmente a dos artistas e dos poetas do século XIX, é pois: a partir da vida, se compreende a obra. Sua contribuição reside justamente na mediação de ambas as direções do significado que diferenciamos na palavra "vivência", e correspondentemente, em reconhecê-las como uma conexão produtiva: Algo se transforma em vivência na medida em que não somente foi vivenciado, mas que o seu ser-vivenciado teve uma ênfase especial, que lhe empresta um significado duradouro. O que, dessa maneira, vem a ser uma "vivência" ganha um status de ser totalmente novo na expressão da arte. O título de um livro de Dilthey, Das Erlebnis und die Dichtung, que se tornou famoso, dá uma fórmula pregnante a essa conexão. De fato, foi Dilthey quem primeiro atribuiu a essa palavra uma função conceitual, que em breve viria elevar-se a uma palavra favorita da moda e à denominação de um conceito de valor tão elucidativo, tanto que muitos idiomas europeus a assimilaram como um estrangeirismo. Permita-se, porém, supor que o verdadeiro acontecido na própria vida do idioma, sedimentou no realce terminológico, que a palavra encontra em Dilthey. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Entrementes, e de uma forma bastante feliz, pode-se isolar, em Dilthey, os motivos atuantes na nova cunhagem linguística e conceitual da palavra "vivência". O título do livro, Das Erlebnis und die Dichtung é, saiba-se, tardio (1905). A primeira versão da dissertação de Goethe que se encontra nele, que Dilthey havia publicado em 1877, mostra, é verdade, já uma certa utilização da palavra "vivência", mas nada ainda da solidez terminológica que o conceito teria mais tarde. Vale a pena examinar mais detidamente as pré-formas do sentido tardio da vivência, fixado conceitualmente. Não parece acaso que seja justamente numa biografia de Goethe (e numa dissertação sobre ela), onde de repente se encontra a palavra com frequência. Goethe, como nem um outro, seduz à formulação dessa palavra, porque suas poesias recebem sua compreensibilidade, em um novo sentido, a partir do que ele vivenciou. Aliás, de si mesmo ele disse que todas as suas poesias têm o caráter de uma grande confissão. A biografia de Goethe escrita por Hermann Grimm segue esse enunciado como um princípio metódico, acontecendo assim que utilize frequentemente a palavra "vivências". VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

A dissertação de Goethe na obra de Dilthey permite-nos lançar um olhar retrospectivo à pré-história inconsciente da palavra, porque essa dissertação se encontra na versão de 1877115 e, mais tarde, na reelaboração do livro Das Erlebnis und die Dichtung (1905). Dilthey compara, nessa dissertação, Goethe com Rousseau e, para descrever o poetar moderno de Rousseau, extraído do mundo de suas experiências íntimas, ele utiliza a expressão "o vivenciar". Na paráfrase de um texto de Rousseau encontra-se então a expressão "as vivências de dias de antanho". VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

No entanto, mesmo nos primeiros trabalhos de Dilthey nota-se uma certa insegurança no significado da palavra vivência. Verifica-se isso bastante bem, principalmente num trecho em que Dilthey, nas edições posteriores, faz desaparecer a palavra vivência: "Em correspondência ao que ele vivenciou e, de acordo com a sua ignorância do mundo, ele co-fantasiou como vivência". De novo volta-se a falar de Rousseau. Mas uma vivência co-fantasiada já não quer se adequar corretamente ao sentido originário da palavra "vivenciar" — nem mesmo quanto ao uso que Dilthey deu à sua própria linguagem científica mais tarde, onde vivência significa justamente o imediatamente dado, que é o último material para toda a configuração de uma fantasia. A cunhagem da palavra "vivência" lembra, claramente, a crítica ao racionalismo do Aufklärung, que, partindo de Rousseau, deu validade ao conceito da vida. Deve ter sido a influência de Rousseau sobre o classicismo alemão que deu vigor ao padrão do "ser vivenciado", possibilitando assim a formação da palavra "vivência". O conceito da vida forma, porém, também o pano de fundo metafísico, que sustenta o pensamento especulativo do idealismo alemão, e que desempenha um papel fundamental tanto para Fichte como para Hegel, mas também para Schleiermacher. Em face da abstração do entendimento, bem como em face da particularidade da percepção ou da representação, esse conceito implica a vinculação à totalidade, e ao infinito. Isso é o que se pode perceber nitidamente no tom da palavra vivenciada até os nossos dias. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Assim ter-se-á de entender a cunhagem do conceito por parte de Dilthey a partir da pré-história romântica da palavra, e lembrar-se-á que Dilthey foi o biógrafo de Schleiermacher. É claro que a palavra "vivência" ainda não se encontra em Schleiermacher, nem mesmo, pelo que parece, a palavra "vivenciar". Mas o que não falta são sinônimos, que ocupam o círculo do significado da palavra vivência, permanecendo sempre visível o pano de fundo panteístico. Cada ato permanece ligado com um momento de vida da infinitude da vida, que se manifesta nele. Tudo que é finito é expressão, representação do infinito. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

De fato, na biografia de Schleiermacher escrita por Dilthey encontramos, na descrição da contemplação religiosa, uma aplicação especialmente marcante da palavra "vivência", que já alude ao conteúdo conceitual: "Cada uma de suas vivências, existindo por si, uma específica imagem do universo, extraída do contexto explicativo". VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Se agora pesquisarmos, em prosseguimento à história da palavra, a história do conceito de "vivência", podemos concluir do que precedeu que o conceito de vivência de Dilthey contém claramente dois momentos, o panteístico e mais ainda o positivista, a vivência e mais ainda seu resultado. Isso não é, certamente, nenhum acaso, mas uma consequência de sua posição intermediária entre a especulação e o empirismo, do qual ainda voltaremos a nos ocupar em pormenores. Como o que importa a ele é justificar o trabalho das ciências do espírito, do ponto de vista cognitivo-teórico, domina-o por toda parte o motivo do verdadeiramente dado. E pois um motivo cognitivo-teórico ou, melhor, o motivo da própria teoria do conhecimento que motiva sua formação do conceito e que corresponde ao processo linguístico, em cujo encalço nos encontrávamos acima. Como o distanciamento da vivência e a fome de vivência, que atingem a partir do sofrimento causado pela complicada aparelhagem da civilização, alterada pela revolução industrial, fazem a palavra "vivência" alcançar o uso comum da linguagem, da mesma forma o novo distanciamento que a consciência histórica toma com relação à tradição, designa o conceito da vivência em sua função cognitivo-teórica. Isso caracteriza pois o desenvolvimento das ciências do espírito no século XIX, mostrando que não somente externamente reconhecem as ciências da natureza como modelo mas que partindo do mesmo fundamento que vive moderna na natureza, desenvolvem, com ela, o mesmo patos de experiência e pesquisa. Se a estranheza que a era da mecânica tinha de experimentar face à natureza como mundo natural, encontrou sua expressão epistemológica no conceito da autoconsciência e na regra da certeza na "perception clara e distinta", que foi transformada em método, as ciências do espírito do século XIX experimentaram uma estranheza semelhante face ao mundo histórico. As criações espirituais do passado, da arte e da história não pertencem mais ao conteúdo auto-evidente do presente, mas se tornaram objetos e situações dadas (Gegebenheiten) propostos como tarefa à pesquisa, a partir dos quais pode-se atualizar um passado. E assim como o conceito do dado, que guia também a cunhagem do conceito de vivência de Dilthey. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

As situações dadas (Gegebenheiten) no terreno das ciências do espírito são aliás de um gênero especial, e é isso que Dilthey quer formular através do conceito da "vivência". Partindo da caracterização que Descartes dá ao res cogitans, ele determina o conceito da vivência através da reflexividade, através da interioridade, e quer, com base nessa forma especial da situação dada, justificar epistemologicamente o conhecimento do mundo histórico. As situações dadas primárias, a que retrocedem a interpretação dos objetos históricos, não são dados de experimentação e de medição, mas unidades de significado. E isso o que o conceito da vivência quer dizer: as configurações de sentido, que nos vêm ao encontro nas ciências do espírito, mesmo que nos apareça como muito estranhas e incompreensíveis, deixam-se reconduzir a unidades últimas do dado na consciência, unidades que já nada mais contêm de estranho, objetivo, nem mesmo necessitado de interpretação. Trata-se das unidades vivenciais, que são em si mesmas unidades de sentido. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Havemos de ver que para o pensamento de Dilthey é de decisiva importância que não se denomine a "sensation" ou a percepção, como a última unidade do consciente, o que era natural para o kantianismo e mesmo para a teoria do conhecimento positivista do século XIX, até Ernst Mach, já que Dilthey chama a isso de "vivência". Ele delimita, assim, o ideal construtivo de uma estrutura do conhecimento a partir de átomos de percepção e contrapõe a ele uma versão mais aguda do conceito do dado. A unidade da vivência (e não elementos psíquicos, sob os quais ela pode ser analisada) compõe a unidade real do dado. Dessa maneira, apresenta-se na teoria do conhecimento das ciências do espírito um conceito da vida que limita o modelo mecânico. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Esse conceito de vida é imaginado teleologicamente: Vida é, para Dilthey, produtividade, sem mais nem menos. Na medida em que a vida se objetiva em imagens dos sentidos, todo o entendimento de sentido é "uma retro-transposição das objetivações da vida na vivacidade espiritual, da qual são procedentes". É assim que o conceito da vivência forma o fundamento epistemológico para todo o conhecimento do que seja objetivo. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Vê-se assim que, em Dilthey, como em Husserl, na filosofia da vida, tal como na fenomenologia, o conceito da vivência se mostra, de início, como um conceito puramente epistemológico. Em ambos ele é reivindicado com a sua significação teleológica, mas não é determinado conceitualmente. Que é a vida que se manifesta na vivência, significa apenas que é a última coisa a que tornamos a voltar. Para essa cunhagem conceitual, do ponto de vista do desempenho, a história da palavra forneceu uma certa legitimação. Pois vimos que uma significação condensadora e intensiva faz parte da formação da palavra vivência. Quando algo é denominado ou avaliado como uma vivência, isso ocorre através de sua significação associada à unidade de sentido total. O que vale como vivência é realçado tanto por outras vivências — nas quais se experimenta algo diferente — bem como pelo restante do decurso da vida — no qual "nada" é experimentado. O que vale como uma vivência não é mais meramente uma fugaz torrente passageira na torrente da vida consciente — é vista como unidade e ganha, através disso, uma nova maneira de ser una. Nesse sentido é muito compreensível que a palavra apareça na literatura biográfica e que se origine, ao final das contas, do uso autobiográfico. O que se pode denominar vivência constitui-se na lembrança. Aludimos com isso ao conteúdo significante que, para quem teve a vivência, fica como uma posse duradoura. É isso o que ainda legitima o discurso da vivência intencional e da estrutura teleológica, que o consciente possui. Por outro lado, porém, há no conceito da vivência também a contraposição da vida para com o conceito. A vivência possui uma acentuada imediaticidade, que se subtrai a todas as opiniões sobre o seu significado. Tudo o que foi vivenciado é auto-vivência e colabora para perfazer seu significado o fato de que este pertence à unidade do "auto", contendo assim uma correlação insubstituível e imprescindível com o todo dessa vida. Nesse sentido e de acordo com a natureza da coisa, não desabrocha nele o que se pode obter por intermédio dele e se pode fixar como seu significado. A reflexão autobiográfica ou biográfica, em que se determina seu conteúdo significante, fica fundida no todo do movimento da vida e continua acompanhando-a ininterruptamente. Ser assim tão determinada, a ponto de a gente não conseguir dar conta dela, é, por assim dizer, a maneira de ser da vivência. Nietzsche diz: "Nos homens profundos as vivências duram longo tempo". Com isso ele quer dizer o seguinte: elas não são esquecidas rapidamente, sua elaboração é um longo processo e justamente nisso reside seu ser específico e seu significado e não somente no conteúdo, como tal, experimentado originariamente. O que denominamos enfaticamente de vivência significa pois algo inesquecível e insubstituível, que é basicamente inesgotável para uma determinação compreensível de seu significado. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Foram sobretudo dois princípios a partir dos quais se apresentou esse tema abrangente, que diz respeito à correlação entre a vida e a vivência; e veremos mais tarde como Dilthey, e especialmente Husserl, se enredaram na presente problemática. De um lado, trata-se do significado fundamental que possui a crítica de Kant sobre toda a doutrina substancial da alma e sobre a unidade transcendental da autoconsciência, que é diferente daquela, e que é a unidade sintética da aperception. Nessa crítica da psicologia racionalista foi possível vincular a ideia de uma psicologia baseada num método crítico, iniciativa que Paul Natorp já havia tomado em 1888127 e a partir do que Richard Hõnigswald viria a fundamentar, mais tarde, o conceito da psicologia do pensamento. Através do conceito do estar-consciente, que proclama a imediaticidade da vivência, Natorp designou o objeto da psicologia crítica e desenvolveu o método de uma subjetivação universal como sendo a forma de pesquisa da psicologia reconstrutiva. Natorp apoiou e continuou desenvolvendo, mais tarde, seu princípio fundamental através de uma crítica pormenorizada à formação do conceito da pesquisa psicológica contemporânea. Mas já em 1888 estava fixado o pensamento básico de que a concreção da vivência originária, isto é, a totalidade da consciência, constitui uma unidade indivisível, que somente se diferencia e determina através do método objetivador do conhecimento. "O consciente, porém, significa vida, isto é, relações recíprocas generalizadas." Isso se observa principalmente na relação entre o consciente e o tempo: "O dado não é o consciente como fenômeno no tempo, mas o tempo como forma do consciente". VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

O trabalho que se realizou até agora, nesse terreno, determinado sobretudo pela fundamentação hermenêutica das ciências do espírito de Wilhelm Dilthey e suas investigações sobre a gênese da hermenêutica, fixou as dimensões do problema hermenêutico, a seu modo. Nossa tarefa atual poderia ser a de tentar subtrair-nos da influência dominante do questionamento diltheyano e dos preconceitos da "história do espírito", fundada por ele. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Se reconhecermos como tarefa seguir mais Hegel do que Schleiermacher, teremos de acentuar a história da hermenêutica de um modo totalmente novo. Esta já não terá sua realização na liberação da compreensão histórica de todos os pressupostos dogmáticos, e já não poder-se-á considerar a gênese da hermenêutica sob o aspecto em que a apresentou Dilthey, seguindo os passos de Schleiermacher. Nossa tarefa, antes, será refazer o caminho aberto por Dilthey, atendendo a objetivos diversos dos que ele tinha em mente com a sua autoconsciência histórica. Nesse sentido desviar-nos-emos inteiramente do interesse dogmático pelo problema hermenêutico que o Antigo Testamento despertou já na igreja antiga, e nos contentaremos em palmilhar o desenvolvimento do método hermenêutico na Idade Moderna, que desemboca da consciência histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A doutrina da arte da compreensão e da interpretação havia se desenvolvido por dois caminhos diversos, o teológico e o filológico, a partir de um estímulo análogo: a hermenêutica teológica, como mostrou Dilthey muito bem, a partir da autodefesa da compreensão reformista da Bíblia contra o ataque dos teólogos tridentinos e seu apelo ao caráter indispensável da tradição; a hermenêutica filológica apareceu como instrumentaria para as tentativas humanísticas de redescobrir a literatura clássica. Num caso e noutro trata-se de redescobrimentos, e talvez de um redescobrimento de algo que não é totalmente desconhecido, mas de cujo sentido se havia tornado estranho e inacessível: A literatura clássica, enquanto material de formação, até estava sempre presente, mas havia sido amoldada por completo ao mundo cristão; também a Bíblia era, sem dúvida alguma, o livro sagrado que se lia ininterruptamente na igreja, segundo a convicção dos reformados, também por ela encoberta. Em ambas as tradições trata-se de linguagens estranhas, não a linguagem universal dos eruditos da época medieval latina, de maneira que o estudo da tradição, que se procura recuperar originariamente, torna necessário tanto aprender grego e hebreu como purificar o latim. A hermenêutica procura em ambos os terrenos, da tradição, tanto para a literatura como para a Bíblia pôr a descoberto o sentido original dos textos, através de um procedimento de correção quase artesanal, e ganha uma importância decisiva o fato de que em Lutero e Melanchthon se reúnam a tradição humanística e o impulso reformador. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Mais ainda: a teologia da Reforma parece nem sequer ser consequente. Ao acabar reivindicando como fio condutor para a compreensão da unidade da Bíblia, a fórmula de fé protestante suspende, também ela, o princípio da Escritura, em favor de uma tradição reformatoria, que em todo caso é breve. Sobre isso, e deste modo, já apresentaram seu julgamento não só a teologia da Contra-reforma, mas também o próprio Dilthey. Este glosa essas contradições da hermenêutica protestante, partindo do auto-senso pleno das ciências históricas do espírito. Mais tarde teremos de nos indagar se essa autoconsciência realmente se justifica — precisamente também com relação ao sentido teológico da exegese bíblica — e se o princípio fundamental filológico-hermenêutico de compreender os textos a partir deles mesmos não trará em si uma certa insuficiência e não necessitará, ainda que não na maioria das vezes o reconheça, ser completado por um fio condutor de caráter dogmático. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Todavia, uma pergunta como esta só pode ser colocada hoje, depois que o Aufklärung histórico já mediu plenamente suas possibilidades. Os estudos de Dilthey sobre a gênese da hermenêutica desenvolvem um nexo congruente consigo mesmo e convincente, se se o examina do ponto de vista das pressuposições do conceito de ciência da Idade Moderna. A hermenêutica teve que começar por desvencilhar-se de todos os enquadramentos dogmáticos e liberar-se a si mesma para elevar-se ao significado universal de um organon histórico. Isto ocorreu no século XVIII, quando homens como Semler e Ernesti reconheceram que, para compreender adequadamente a Escritura, pressupõe-se reconhecer a diversidade de seus autores, e abandonar, por consequência, a unidade dogmática do cânon. Com essa "liberação da interpretação do dogma" (Dilthey), a reunião das Escrituras Sagradas da cristandade assume o papel de reunir fontes históricas que, na qualidade de obras escritas, têm de se submeter a uma interpretação não somente gramatical mas também histórica. A compreensão a partir do contexto do todo requer agora, necessariamente, também a restauração histórica do contexto de vida, a que pertencem os documentos. O velho princípio interpretativo de compreender o individual a partir do todo já não podia reportar-se nem limitar-se à unanimidade dogmática do cânon, mas dirigia-se à abrangência conjuntural da realidade histórica, a cuja totalidade pertence cada documento individual. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

E assim, como desde esse momento já não existe nenhuma diferença entre a interpretação de escritos sagrados e profanos, e portanto só há uma hermenêutica, esta hermenêutica acaba sendo não apenas uma função propedêutica de toda historiografia — como a arte da interpretação correta das fontes escritas — mas abarca ainda toda a atividade da historiografia. Pois o que se afirma das fontes escritas, ou seja, que nelas cada frase não pode ser entendida a não ser a partir de seu contexto, vale também para os conteúdos sobre os quais dão notícia. E mesmo o significado destes não pode estar de pé por próprios pés. O contexto histórico universal, no qual mostram-se em seu significado verdadeiramente relativo, os objetos individuais da investigação histórica, tanto os grandes como os pequenos, é, ele próprio, um todo, a partir do qual pode-se compreender plenamente cada elemento individual em seu sentido, e ele, inversamente, só pode ser plenamente compreendido a partir desses elementos individuais: a história universal é, igualmente, o grande livro obscuro, a obra completa do espírito humano, composta nas línguas do passado, cujo texto terá de ser entendido. A investigação histórica se compreende a si mesma segundo o modelo da filologia, de que se serve. Mais tarde, veremos que, de fato, é este o modelo pelo qual se guia Dilthey para fundamentar a concepção histórica do mundo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Aos olhos de Dilthey, a hermenêutica não chega, pois, à sua verdadeira essência, a não ser quando ela transforma sua posição, a serviço de uma tarefa dogmática — que para o teólogo cristão é a correta proclamação do Evangelho — na função de um organon histórico. E se, pelo contrário, o ideal do Aufklärung histórico, a que pertence Dilthey, tivesse de se revelar como uma ilusão, então toda a pré-história da hermenêutica, esboçada por ele, teria de adquirir, também, um significado totalmente diferente; a virada em direção à consciência histórica já não seria sua liberação das presilhas do dogma, mas uma mudança de sua essência. E exatamente o mesmo vale para a hermenêutica filológica. Pois a ars critica da filologia teve, em princípio, sua pressuposição no caráter modelar irrefletido da antiguidade clássica, de cuja transmissão cuidava. Também ela, portanto, terá que se transformar em sua essência, se entre a antiguidade e o próprio presente já não existe nenhuma relação inequívoca de modelo e seguimento. Um índice disso é a quereile des anciens et des modernes, que cunha o tema geral para toda época compreendida entre o classicismo francês e o alemão. Este seria também o tema em torno do qual se desenvolveria a reflexão histórica, que acabaria dissolvendo a pretensão normativa da antiguidade clássica. Nos dois caminhos, portanto, da filologia e da teologia, dá-se o mesmo processo, que acabou levando à concepção de uma hermenêutica universal, para a qual o caráter de modelo especial já não representa uma pressuposição para a tarefa hermenêutica. [182] VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Para poder situar em seu pano de fundo correto a verdadeira virada que Schleiermacher dá à história da hermenêutica, começaremos com uma reflexão que nele não desempenha o menor papel, e que desde ele desapareceu por completo dos questionamentos da hermenêutica (coisa que também restringe de uma maneira muito peculiar o interesse histórico de Dilthey pela história da hermenêutica), que na verdade domina o problema da hermenêutica e só através da qual torna-se compreensível a posição que Schleiermacher ocupa na história da hermenêutica. Partiremos do lema: compreender significa, de princípio, entender-se uns com os outros. Compreensão é, de princípio, entendimento. Assim, os homens se entendem entre si, na maioria das vezes imediatamente, isto é, vão se pondo de acordo até chegar a um entendimento. Acordo é sempre, portanto, acordo sobre algo. Compreender-se é compreender-se em [184] algo. Já a linguagem mostra que o "sobre quê" e o "em quê" não são apenas um objeto qualquer do discurso, do qual a compreensão mútua pudesse prescindir ao buscar seu caminho, mas são, antes, caminho e meta do próprio compreender-se. E quando se pode dizer que duas pessoas se entendem, independentemente do "sobre quê" e do "em quê", isso quer dizer que não somente se entendem nisso ou naquilo, mas em todas as coisas essenciais que unem os homens. A compreensão só se converte numa tarefa especial no momento em que esta vida natural experimenta alguma distorção no co-visar do visado, que é um visar da coisa em causa comum. No momento em que se produz um mal-entendido, ou alguém manifesta uma opinião que causa estranheza por ser incompreensível, é apenas aí que a vida natural fica tão inibida com relação à coisa em causa comum, que a opinião enquanto opinião, isto é, enquanto opinião do outro, do tu ou do texto, se converte num dado fixo. Mas mesmo assim, ainda se procura em geral chegar a um acordo, e não somente compreender. E isso, de tal modo, que se refaz o caminho em direção à coisa em causa. Só quando se mostram vãs todas essas idas e vindas, que perfazem a arte do diálogo, da argumentação, do perguntar e do responder, do objetar e do refutar, e que se realizam também face a um texto como diálogo interior da alma que busca a compreensão, far-se-á uma mudança no questionamento. Só então o esforço da compreensão vai perceber a individualidade do tu e considerar sua peculiaridade. Na medida em que se trata de uma língua estrangeira, o texto já será, isso não é mais do que uma condição prévia. O verdadeiro problema da compreensão aparece quando, no esforço de compreender um conteúdo, coloca-se a pergunta reflexiva de como o outro chegou à sua opinião. Pois é evidente que um questionamento como este anuncia uma forma de alteridade bem diferente, e significa, em último caso, a renúncia a um sentido comum. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Como se vê, a pré-história da hermenêutica do século XIX adquire um aspecto bastante diferente se não a considerarmos mais sob as premissas de Dilthey. Que guinada se dá entre Spinoza e Chladenius, de um lado, e Schleiermacher, do outro! A incompreensibilidade, que para Spinoza, motivava o rodeio pelo histórico e que para Chladenius, convoca a arte da interpretação para um sentido de orientação completamente objetivo, adquire em Schleiermacher um significado completamente diverso e universal. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Assim, paralelamente à interpretação gramatical, ele coloca a psicológica (técnica) — e nesta é que se encontra o que ele tem de mais próprio. No que se segue, deixaremos de lado as elaborações de Schleiermacher sobre a interpretação gramatical, que em si mesmas são da maior perspicácia. Elas são primorosas para o papel que a totalidade já dada da linguagem desempenha para o autor — e com isso também para o seu intérprete, assim como para o significado do todo de uma literatura para cada obra individual. Pode ser também — como uma nova investigação do legado de Schleiermacher torna provável — , que a interpretação psicológica, no desenvolvimento do pensamento de Schleiermacher, só adquira paulatinamente sua posição de primeiro plano. Seja como for, essa interpretação psicológica tornou-se realmente determinante para a formação das teorias do século XIX — para Savigny, Boeckh, Steinthal, e sobretudo para Dilthey. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Seguindo Schleiermacher, também outros repetiram sua fórmula no mesmo sentido, por exemplo, August Boeckh, Steinthal e Dilthey: "O filólogo entende melhor o orador e o poeta, do que este se entende a si mesmo, e melhor do que o entenderam os que eram simplesmente seus contemporâneos. Pois ele torna claramente consciente o que naquele somente prejazia de maneira inconsciente e fática". Através do "conhecimento das leis psicológicas" o filólogo pode aprofundar a compreensão conhecedora, até convertê-la em conceitual, na medida em que chega ao fundo da causalidade, da gênese da obra do discurso da mecânica do espírito compositor. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A repetição da frase de Schleiermacher por Steinthal mostra já os efeitos da pesquisa das leis psicológicas, que a pesquisa da natureza havia tomado como modelo. Nisso Dilthey é mais livre, enquanto conserva com mais força a conexão com a estética do gênio. Aplica a fórmula em questão, particularmente na interpretação dos poetas. Compreender a "ideia" de um poema, a partir de sua "forma interior", pode-se dizer, obviamente, que é "compreender melhor esta ideia". Dilthey vê nisso pouco menos que o "supremo triunfo da hermenêutica", pois o conteúdo filosófico da grande poesia abre-se aqui, através do fato de que a compreendemos como criação livre. A criação livre não está restringida por condições externas ou materiais, e, por isso só pode ser concebida como "forma interior". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Mesmo a história não é para ele mais que uma tal peça teatral de livre criação, ou seja, a peça de uma produtividade divina, e ele entende o comportamento histórico como a contemplação e o desfrute desse grandioso teatro. Esse desfrute da reflexão romântica sobre a história aparece muito bem descrito numa passagem do diário de Schleiermacher, publicado por Dilthey: "O verdadeiro sentido histórico se eleva acima da história. Todos os fenômenos estão aí tão-somente como milagres sagrados, para orientar a consideração rumo ao espírito que os produziu jogando". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Uma reflexão clara e metódica sobre isso não se encontra expressa obviamente em Ranke, nem no arguto metodólogo que foi Droysen, mas somente em Dilthey, que toma conscientemente a hermenêutica romântica e a amplia até fazer dela uma historiografia e até uma teoria do conhecimento das ciências do espírito. A análise lógica de Dilthey do conceito do nexo na história representa, segundo a questão em causa, a aplicação do princípio hermenêutico, segundo o qual as partes individuais de um texto só podem ser entendidas a partir do todo, e este somente a partir daquelas, sobre o mundo da história. Não somente as fontes chegam a nós como textos, mas também a realidade histórica é em si um texto que deve ser compreendido. Com essa transferência da hermenêutica para a historiografia, Dilthey torna-se o intérprete da escola histórica. Ele formula o que Ranke e Droysen, no fundo, pensavam. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Mais tarde veremos que também Dilthey pensou, partindo dessas unidades relativas, edificando assim, inteiramente sobre a base da hermenêutica romântica. O que se há de compreender num e noutro caso é um conjunto de sentido, que em ambos os casos se encontra igualmente destacado de quem procura compreendê-lo: sempre é uma individualidade estranha, que deve ser julgada a partir de seus próprios conceitos, paradigmas etc., e que, apesar disso, pode ser compreendida, porque o eu e o tu são "momentos" da mesma vida. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Todavia, tampouco a negação de um tal paradigma apriorístico e a-histórico, situada nos começos da investigação histórica no século XIX, está tão livre de pressuposições metafísicas como esta crê e afirma, quando se compreende a si mesmo como investigação científica. Isso pode ser demonstrado, analisando os conceitos dominantes dessa concepção histórica do mundo. É verdade que, por sua intenção, esses conceitos estão orientados precisamente para corrigir a apreensão prévia de uma construção apriorista da história. Porém, na medida em que polemizam com o conceito idealista do espírito, mantêm sua referência a ele. A demonstração mais clara disso é a detalhada reflexão filosófica que Dilthey faz sobre essa concepção do mundo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

É óbvio que o seu ponto de partida encontra-se inteiramente determinado pela oposição à "filosofia da história". A premissa fundamental comum a todos os representantes dessa concepção histórica do mundo, tanto de Ranke como de Droysen e mesmo de Dilthey, consiste em que a ideia, a essência, a liberdade não encontram uma expressão completa e adequada na realidade histórica. Mas isso não deve ser entendido no sentido de uma mera deficiência ou de um ficar faltando. Ao contrário, nisso descobrem esses autores o princípio constitutivo da própria história, ou seja, de que, na história, a ideia possui apenas uma re-presentação imperfeita. E somente porque isso é assim, é que se carece, em vez de filosofia, de uma investigação histórica que instrua o homem sobre si mesmo e sobre sua posição no mundo. A ideia de uma história que fosse pura re-presentação da ideia significaria, ao mesmo tempo, a renúncia a ela como um caminho próprio rumo à verdade. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

História universal, história do mundo — não são, na verdade, sumidades conceituais de natureza formal, nas quais se intenta o todo do acontecer, mas, no pensamento histórico, o universo, enquanto criação divina, é elevado à consciência de si mesmo. Evidentemente que não se trata de uma consciência conceitual: o resultado último da ciência histórica é "sim-patia, co-ciência do todo". Sobre este pano de fundo panteísta compreende-se bem a famosa frase de Ranke, segundo a qual ele mesmo desejaria acabar apagando-se. Obviamente que este auto-apagamento, como objeta Dilthey, representa a ampliação do eu (Selbst) a um universo interior. Todavia, não é por acaso que Ranke não completa essa reflexão, a qual leva Dilthey à sua fundamentação psicológica das ciências do espírito. Para Ranke, o auto-apagamento continua sendo uma forma de participação real. O conceito da participação não deve ser entendido como psicológico-subjetivo, mas tem de ser concebido a partir do conceito da vida que lhe é subjacente. Porque todos os fenômenos históricos são manifestações do todo da vida, participar deles é participar da vida. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A expressão da compreensão adquire, a partir daqui, seu tom quase religioso. Compreender é participar imediatamente da vida, sem a mediação do pensamento através do conceito. O que interessa ao historiador não é referir a realidade a conceitos, mas chegar em todas as partes ao ponto em que "a vida pensa e o pensamento vive". Os fenômenos da vida histórica são entendidos na compreensão, como manifestações do todo da vida, da divindade. Essa penetração compreensiva dos mesmos significa, de fato, mais do que um universo interior, tal como Dilthey reformulou o ideal do historiador face a Ranke. Trata-se de um enunciado metafísico, pelo que Ranke se aproxima enormemente de Fichte e Hegel, quando diz: "A intuição clara, plena e vivida, tal é a marca do ser que se tornou transparente e que enxerga através de si mesmo. Numa tal formulação, é impossível não perceber como Ranke, no fundo, permanece próximo do idealismo alemão. A plena auto-transparência do ser, que Hegel pensou no saber absoluto da filosofia, continua legitimando também a autoconsciência de Ranke como historiador, por mais que ele recuse as pretensões da filosofia especulativa. Essa é justamente a razão pela qual se [216] torna tão próximo para ele o modelo do poeta, e porque não sente a menor necessidade de estabelecer limites face a ele, como historiador. Pois o que o historiador e o poeta têm em comum é que um e outro conseguem representar o elemento em que vivem todos "como algo que está fora deles". Esse puro abandono à contemplação das coisas, a atitude épica de quem busca a lenda da história do mundo, tem direito a chamar-se de poético, na medida em que, para o historiador, Deus está presente em tudo, não sob a forma do conceito, mas sob a da "representação externa". Não é possível descrever melhor a autocompreensão de Ranke, do que através desses conceitos de Hegel. O historiador, tal como o entende Ranke, pertence à forma do espírito absoluto que Hegel descreveu como "religião da arte". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

1.2. O enredamento de Dilthey nas aporias do historicismo VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A tensão entre o motivo estético-hermenêutico e o motivo da filosofia da história na escola histórica alcança seu ponto culminante em Wilhelm Dilthey. Seu status se deve a que reconhece realmente o problema epistemológico que implica a concepção histórica do mundo face ao idealismo. Como biógrafo de Schleiermacher, como historiador que, ante a teoria romântica da compreensão, coloca a pergunta histórica sobre gênese e a essência da hermenêutica e que escreve a história da metafísica ocidental, Dilthey até se movimenta no horizonte de problemas do idealismo alemão — porém como aluno de Ranke e da nova filosofia da experiência, própria de seu século, encontra-se simultaneamente num solo tão diferente, que já não pode aceitar a validez nem da filosofia da identidade estético-panteísta, de Schleiermacher, nem da metafísica hegeliana integrada histórico-filosoficamente. Indubitavelmente, também em Ranke e Droysen se dá uma discrepância análoga de sua atitude entre idealismo e pensamento empírico, mas em Dilthey essa discrepância tornou-se particularmente aguda. Pois nele já não se trata de uma mera continuação do espírito clássico-romântico dentro de uma reflexão empírica de investigação, mas sim que essa tradição continuada é abafada por uma retomada consciente das ideias primeiro de Schleiermacher e depois de Hegel. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Por isso, ainda que se faça abstração da enorme influência que, a princípio, o empirismo inglês e a teoria do conhecimento das ciências da natureza exercem sobre Dilthey como se eles deformassem suas verdadeiras intenções, não é fácil de apreender essas intenções em uníssono. Devemos a Georg Misch um passo importante nessa direção. Mas como o propósito de Misch era confrontar a posição de Dilthey com a orientação filosófica da Fenomenologia de Husserl e da ontologia fundamental de Heidegger, é a partir dessas contraposições contemporâneas que se descreve a discrepância interna da orientação de Dilthey, de uma "filosofia da vida". E a mesma coisa pode-se dizer da meritória exposição de Dilthey, de O.F. Bollnow. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A raiz da discrepância, que demonstraremos em Dilthey, situa-se na já caracterizada posição da escola histórica, a meio caminho entre filosofia e experiência. A tentativa de Dilthey de fundamentá-la epistemologicamente não resolve essa discrepância, antes leva-a à sua formulação mais extremada. Em seu esforço para fundamentar filosoficamente as ciências do espírito, Dilthey procurará extrair as consequências epistemológicas do que Ranke e Droysen haviam feito valer face ao idealismo alemão. E o mesmo Dilthey estava perfeitamente consciente disso. Para ele, a debilidade da escola histórica estava na inconsequência de suas reflexões: "Em vez de retornar às pressuposições epistemológicas da escola histórica às do idealismo, desde Kant até Hegel, e reconhecer assim a incompatibilidade dessas premissas, uniram esses pontos de vista sem criticá-los". Desse modo ele pôde impor-se o objetivo de construir um novo fundamento, com capacidade de sustentação epistemológica, entre a experiência histórica e a herança idealista da escola histórica. Tal é o sentido de seu propósito de completar a crítica kantiana da razão pura com uma crítica da razão histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Já essa colocação de tarefa torna patente a repulsa ao idealismo especulativo. Apresenta uma analogia que deve ser entendida em sentido completamente literal. Dilthey quer que a razão histórica necessita de uma justificação igual à da razão pura. Se a crítica da razão pura fez época, não foi só por ter destruído a metafísica como pura ciência racional do mundo, da alma e de Deus, mas porque, ao mesmo tempo, apontava para um âmbito, dentro do qual o emprego de conceitos apriorísticos estava justificado e tornava possível o conhecimento. A crítica da razão pura não somente destruía os sonhos de um vidente do espírito, mas, ao mesmo tempo, respondia à pergunta de como é possível uma ciência da natureza pura. Assim, nesse entremeio, o idealismo especulativo havia acolhido o mundo da história junto com a auto-explicação da razão, e, além disso, havia conseguido, sobretudo em Hegel, resultados geniais precisamente no terreno histórico. Com isso, a pretensão de ciência racional pura ficava estendida, em princípio, ao conhecimento histórico. Este fazia parte da enciclopédia do [224] espírito. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Essa exigência não podia ser satisfeita com uma mera volta a Kant, que era o caminho que se oferecia por si só, face às divagações da filosofia da natureza. Kant leva à sua conclusão os esforços em torno ao problema do conhecimento, colocados pela aparição da nova ciência do século XVII. A construção matemático-natural-científica, de que se servia a nova ciência, encontrou nele a justificação de seu valor cognitivo, da qual se encontrava necessitada, porque seus conceitos não traziam outra pretensão de ser que a de entia rationis. A velha teoria da copia já não bastava, evidentemente, para sua legitimação . A incomensurabilidade do pensamento e ser havia colocado o problema do conhecimento de uma maneira completamente nova. Dilthey percebe isso e em sua correspondência com o conde Yorck fala-se já do pano de fundo nominalista dos questionamentos epistemológicos do século XVII, brilhantemente constatados pela nova investigação desde Duhem. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

As ciências históricas conferem agora ao problema da teoria do conhecimento uma nova atualidade. Isso já se pode comprovar na história da palavra, na medida em que a expressão "teoria do conhecimento" aparece somente na época pós-hegeliana. Começou a ser usada quando a investigação empírica havia desacreditado o sistema hegeliano. O século XIX se converteu no século da teoria do conhecimento, pois somente com a dissolução da filosofia hegeliana ficou definitivamente destruída [225] a correspondência óbvia de logos e ser. Na medida em que Hegel mostrava a razão em tudo, inclusive na história, foi ele o último e mais universal representante da filosofia antiga do logos. Agora, frente à crítica da filosofia apriorista da história, viram-se jogados novamente para o campo de forças da crítica kantiana, cuja problemática se colocava agora também para o mundo histórico, uma vez rechaçada a pretensão de uma construção racional pura da história do mundo e uma vez que também o conhecimento histórico estava limitado à experiência. Se tanto a natureza, como a história não são pensadas como uma forma de manifestação do espírito, então se torna problema para o espírito humano o modo como deve conhecer a história, da mesma forma que o conhecimento da natureza se lhe tornara problemático em virtude das construções do método matemático. Assim, junto à resposta kantiana sobre o modo como é possível uma ciência pura da natureza, Dilthey tinha de procurar uma resposta à sua questão, qual seja: como a experiência histórica pode se converter em ciência? Em clara analogia com o questionamento kantiano, também irá perguntar pelas categorias do mundo histórico que possam sustentar a construção do mundo histórico nas ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Mas o que não pôde satisfazer a Dilthey foi a mera remodelação dessa construção e sua transposição ao terreno do conhecimento histórico , empreendida pelo neokantismo por exemplo, sob a forma da filosofia dos valores. O próprio criticismo neokantiano lhe parecia dogmático, e nisso ele tinha razão, como quando chamou o empirismo inglês de dogmático. Pois o que sustenta a construção do mundo histórico não são fatos extraídos da experiência e em seguida incluídos numa referência valorativa, mas o fato de que a sua base é, antes, a historicidade interna, própria da mesma experiência. Este é um processo vital e histórico, e não tem seu caso-modelo na [226] constatação de fatos, mas na peculiar fusão de recordação e expectativa num todo que chamamos experiência e que se adquire na medida em que se faz experiência. O que prefigura o modo de conhecimento das ciências históricas e, em particular, o sofrimento e a lição que resulta da dolorosa experiência da realidade para aquele que amadurece rumo à compreensão. As ciências históricas tão-somente continuam o pensamento começado na experiência da vida. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Nesse sentido, o questionamento epistemológico tem aqui um começo diferente. De algum modo sua tarefa é mais fácil. Não necessita começar pelo fundamento da possibilidade de que nossos conceitos coincidam com o "mundo exterior". Pois o mundo histórico de cujo conhecimento se trata aqui tem sido sempre um mundo formado e conformado pelo espírito humano. É por essa razão que Dilthey entende que os juízos sintéticos e universalmente válidos da história não representam aqui um problema, e para isso reporta-se a Vico. Recordamos aqui que, em oposição à dúvida cartesiana e à certeza do conhecimento matemático da natureza fundado sobre aquela, Vico havia afirmado o primado epistemológico do mundo da história feito pelo homem. Dilthey irá repetir o mesmo argumento: "A primeira condição de possibilidade da ciência da história consiste em que eu mesmo sou um ser histórico, em que aquele que investiga a história é o mesmo que a faz". O que torna possível o conhecimento histórico é a homogeneidade de sujeito e objeto. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Mesmo assim, esta constatação ainda não apresenta uma solução para o problema epistemológico, tal qual o colocava Dilthey. Antes, nessa condição de homogeneidade, o verdadeiro problema epistemológico da história permanece ainda oculto. Pois a pergunta é propriamente como se eleva a experiência do indivíduo e seu conhecimento à experiência histórica. Na história não se trata já de nexos que são vividos, como tais, pelo indivíduo ou que como tais podem ser revividos por outros. A argumentação de Dilthey só vale de imediato para o viver e reviver do indivíduo. Por isso, é nele que se inicia a reflexão epistemológica. Dilthey desenvolve o modo como o indivíduo adquire um contexto vital e procura ganhar, a partir daí, os conceitos constitutivos capazes de sustentar também o contexto histórico e seu conhecimento. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Esses conceitos, diferentemente das categorias do conhecimento da natureza, são conceitos vitais. Pois a última pressuposição para o conhecimento do mundo histórico, no qual a identidade de consciência e objeto — esse postulado especulativo do idealismo — ainda representa uma realidade demonstravel [227] é, em Dilthey, a vivência. Aqui existe certeza imediata. Pois o que é vivência não é divisado num ato, por exemplo, o dar-se conta de algo, e num conteúdo, aquilo de que alguém se dá conta. Pelo contrário, trata-se de um ter presente já não dissociável. Mesmo a versão de que na vivência algo que é possuído, ainda distingue demais. Dilthey persegue agora como se configura um nexo, a partir desse elemento do mundo espiritual, que é imediatamente certo, e como é possível um conhecimento de tal nexo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Já nas suas ideias "para uma psicologia descritiva e analítica" Dilthey havia distinguido a tarefa de deduzir "o adquirido nexo da vida da alma", das formas de explicação próprias do conhecimento da natureza. Havia empregado o conceito de estrutura para, com ele, destacar o caráter vivencial dos nexos da alma com relação aos nexos causais dos acontecimentos da natureza. O que caracterizava logicamente essa "estrutura" era que aqui intentava-se a um todo de relações, que não repousava sobre a sucessão temporal do ser efetivado, mas sobre relações internas. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Sobre essa base, Dilthey entendia haver ganho um ponto de partida próprio e operante, e haver superado, com isso, os desequilíbrios que perturbavam as reflexões metodológicas de Ranke e Droysen. Dava razão à escola histórica em que não existe um sujeito geral, mas somente indivíduos históricos. A idealidade do significado não pode ser atribuída a um sujeito transcendental, mas surge da realidade histórica da vida. É a vida mesma que se desenvolve e configura rumo a unidades compreensíveis, e é o indivíduo em particular o que compreende essas unidades como tais. Este é o ponto de partida auto-evidente para a análise de Dilthey. O nexo da vida tal como se oferece ao indivíduo (e como é revivido e compreendido no conhecimento biográfico de outros indivíduos) se fundamenta na significância de determinadas vivências. A partir delas, como a partir de um centro organizador, constitui-se a unidade de um decurso de uma vida, da mesma forma como se dá a formulação de sentido de uma melodia — não a partir da mera sucessão de tons passageiros, mas a partir dos motivos musicais que determinam a unidade de sua forma. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O passo decisivo que Dilthey terá de dar na sua fundamentação epistemológica das ciências do espírito será o de empreender, a partir da construção do nexo na experiência vital do indivíduo, a transição ao nexo histórico que já não é vivido riem experimentado por indivíduo algum. Mesmo com toda a crítica à especulação, é necessário, nesse ponto, pôr sujeitos reais no lugar de "sujeitos lógicos". Dilthey vê claramente essa aporia. Mas responde a si mesmo que isso não pode ser improcedente em si, na medida em que a pertença mútua do indivíduo a um todo — por exemplo, na unidade de uma geração ou de uma nação — representa uma realidade psíquica, que teria de ser reconhecida como tal, precisamente porque não se pode transcendê-la em suas explicações. É verdade que aqui não se trataria de sujeitos reais. A fluidez de suas fronteiras seria demonstração disso; nem tampouco os indivíduos concretos participariam nisso, cada um com uma parte de seu ser. Não obstante, para Dilthey não é problema o fato de se poder fazer afirmações sobre tais sujeitos. O historiador o faz continuamente quando fala dos fatos e destinos dos povos. O único problema é como se justificam epistemologicamente essas afirmações. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Não se pode afirmar que, sobre esse ponto, no qual Dilthey vê o problema decisivo, as suas ideias não tivessem alcançado completa clareza. O que apresenta o ponto decisivo, aqui, é o problema do passo a ser dado da fundamentação psicológica para a fundamentação hermenêutica das ciências do espírito. Nisso Dilthey não passou nunca de simples esboços. Na mencionada passagem do Aufbau, a autobiografia e a biografia — dois casos especiais de experiência e conhecimento históricos — conservam uma preponderância não inteiramente fundamentada. Pois já vimos que o problema da história não é saber como pode ser vivido e conhecido o nexo geral, mas como devem ser conhecíveis também aqueles nexos que nenhum indivíduo pôde viver como tal. Seja como for, não há muitas dúvidas sobre o modo como Dilthey imaginava o esclarecimento desse problema, partindo do fenômeno da compreensão. Compreender é compreender uma expressão. Na expressão o que é expressado está presente de uma maneira distinta do que [229] a causa no efeito. Ele está presente na expressão e é compreendido quando se compreende esta. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Dilthey procura desde o início diferenciar as relações do mundo espiritual das relações causais no nexo da natureza, e essa é a razão pela qual o conceito da expressão e da compreensão da expressão ocupam nele, desde o início, uma posição central. Caracteriza a nova clareza metódica, que ganhou apoiando-se em Husserl, o fato de que ele acaba integrando com as Investigações lógicas de Husserl, o conceito do significado que se eleva do nexo de atuação. Nesse sentido, o conceito de Dilthey do caráter estrutural da vida da alma corresponde à teoria da intencionalidade da consciência, mesmo que essa descreva fenomenologicamente não só um fato psicológico, mas uma determinação essencial da consciência. Toda consciência é consciência de algo; todo comportamento é comportamento para com algo. O para que (Wozu) dessa intencionalidade, o objeto intencional, não é para Husserl um componente psíquico real, mas uma unidade ideal, um intencionado (Gemeintes) como tal. Nesse sentido, Husserl tinha defendido na primeira investigação lógica o conceito de um significado ideal-unitário face aos preconceitos do psicologismo lógico. Essa indicação teve, para Dilthey, uma importância decisiva, pois só a partir da análise de Husserl é que ele definiu verdadeiramente o que distingue a "estrutura", do nexo causal. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Um exemplo tornará a coisa mais clara: uma estrutura psíquica, como por exemplo, um indivíduo forma sua individualidade na medida em que desenvolve sua disposição natural, mas ao mesmo tempo sofre o efeito condicionador das circunstâncias. O que daí resultará, a verdadeira "individualidade", isto é, o caráter do indivíduo, não é uma mera consequência dos fatores causais, nem pode ser entendida meramente a partir dessa causalidade, mas representa uma unidade compreensível em si mesma, uma unidade vital que se expressa em cada uma de suas exteriorizações e pode, por isso, ser compreendida a partir de cada uma. Independentemente da ordem dos efeitos se integra aqui em uma configuração própria. Isso é o que queria dizer Dilthey com o nexo estrutural e que agora, apoiando-se em Husserl, chamará significado. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Agora Dilthey pode dizer também até que ponto esse nexo estrutural está dado — seu principal ponto de atrito com Ebbinghaus — : não está dado na imediatez de uma vivência, mas tampouco se constrói simplesmente como resultante de fatores operativos sobre a base do "mecanismo" da vida da alma. A teoria da intencionalidade da consciência permite agora uma nova fundamentação do conceito do dado. A partir daqui já não se pode colocar como tarefa o derivar nexos a partir de átomos de vivências e explicá-los desse modo. Ao contrário, a consciência já se encontra sempre em tais nexos e tem seu próprio ser ao intensioná-los. Dilthey entendia que as investigações [230] lógicas de Husserl fizeram época, porque legitimaram conceitos como estrutura e significado, embora não fossem deduzíveis a partir de elementos. Esses conceitos foram caracterizados como sendo mais originários do que esses supostos elementos, a partir dos quais e sobre os quais deve construir-se. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Naturalmente que a demonstração husserliana da idealidade do significado era o resultado de investigações puramente lógicas. O que Dilthey faz disso é algo completamente diferente. Para ele o significado não é um conceito lógico, mas é entendido como expressão da vida. A própria vida, essa temporalidade em constante fluir, está voltada à configuração de unidades de significado duradouras. A própria vida se auto-interpreta. Tem estrutura hermenêutica. É dessa forma que a vida constitui a verdadeira base das ciências do espírito. A hermenêutica não é uma herança romântica no pensamento de Dilthey, mas dá-se consequentemente a partir da fundamentação da filosofia na "vida". Dilthey pensa que com isso superou fundamentalmente o "intelectualismo" de Hegel. Igualmente não podia satisfazer-lhe o conceito de individualidade romântico-panteísta de origem leibniziana. A fundamentação da filosofia na vida distancia-se também de uma metafísica da individualidade e sabe-se muito distante da monada sem janelas que desenvolve sua própria lei, segundo o aspecto destacado por Leibniz. Para ela a individualidade não é uma ideia originária enraizada no fenômeno. Antes, Dilthey insiste em que toda "vitalidade da alma" se encontra "sob circunstâncias". Não há uma força originária da individualidade. Esta é o que é na medida em que se impõe. A limitação pelo decurso dos efeitos pertence à essência da individualidade — como é próprio de todos conceitos históricos. Também conceitos como objetivo e significado não fazem referência, em Dilthey, a ideias no sentido do platonismo ou da escolástica. Também eles são conceitos históricos, na medida em que estão referidos a uma limitação pelo decurso dos efeitos: eles têm que ser conceitos de energia. Para isso, Dilthey se reporta a Fichte, que também havia exercido uma influência determinante sobre Ranke. Nesse sentido, sua hermenêutica da vida procura permanecer sobre o solo da concepção histórica do mundo. A filosofia lhe proporciona unicamente as possibilidades conceituais de expressar a verdade daquela. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Não obstante, com essas delimitações explicadas ainda não está decidido se a fundamentação da hermenêutica de Dilthey na "vida", conseguiu também subtrair-se, de verdade, às consequências implícitas da metafísica idealista. Para ele, a questão se coloca como segue: "Como se vincula a força do indivíduo com aquilo que está para além dele e que lhe é anterior [231], o espírito objetivo? Como se deve pensar a relação de força e significado, de poderios e ideias, de facticidade e de idealidade da vida? Com esta questão se decidirá, em última análise, também como é possível o conhecimento da história. Pois o homem na história está determinado fundamentalmente também pela relação de individualidade e espírito objetivo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Isso é de essencial importância metódica para o modo próprio das ciências do espírito. O conceito do dado tem aqui uma estrutura completamente diferente. Caracteriza o caráter dos dados das ciências do espírito face aos das ciências da natureza, o fato de que, nesse terreno, "tem-se de separar do conceito do dado, tudo o que é fixo, tudo o que é estranho, como é próprio das imagens do mundo psíquico". Todo o dado é produzido aqui. A velha vantagem atribuída já por Vico aos objetos históricos é o que fundamenta, segundo Dilthey, a universalidade com que a compreensão se apropria do mundo histórico. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A questão" é, porém, se alcança realmente a passagem da posição psicológica para a hermenêutica a partir dessa base, ou se Dilthey se enreda em nexos de problemas que o levam a uma proximidade tão pouco desejada quanto confessada, com respeito ao idealismo especulativo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

As passagens citadas soam não somente a Fichte, mas, até nas palavras, ao próprio Hegel. Sua crítica à "positividade", o conceito da auto-alienação, a determinação do espírito como conhecimento de si mesmo no ser diverso, tudo isso pode ser facilmente deduzido dessa frase de Dilthey, e nos leva a indagar pela real diferença que a concepção histórica do mundo asseverava ante o idealismo, e que Dilthey procurou legitimar epistemologicamente. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Essa questão se intensifica se ponderarmos a cunhagem central com a qual Dilthey caracteriza a vida, esse fato básico [232] da história. Como se sabe, ele fala do "trabalho formador de ideias, próprias da vida". Não é fácil precisar em que se distingue isso, de Hegel. Por mais "insondável" que seja a fisionomia da vida, por mais que Dilthey faça troça desse aspecto demasiado amável da vida, que vê nela somente progresso da cultura — no entanto, na medida em que é compreendida na perspectiva das ideias que a formam, a vida é submetida a um esquema de interpretação teleológica e é pensada como espírito. Concorda com isso o fato de que, em seus últimos anos, Dilthey se apoia cada vez mais em Hegel e começa a falar de espírito onde antes dizia "vida". Com isso ele não faz mais do que repetir um desenvolvimento conceitual que o próprio Hegel realizou. E, à luz desse fato, parece digno de nota o fato de que devamos a Dilthey o conhecimento dos chamados escritos teológicos da juventude de Hegel. Nesses materiais para a história do desenvolvimento do pensamento de Hegel aparece muito claramente, que ao conceito hegeliano de espírito, subjaz um conceito pneumático da vida. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O próprio Dilthey procurou prestar conta do que o unia com Hegel e do que o separava dele. Mas o que pode significar sua crítica à fé de Hegel na razão, à sua construção especulativa da história do mundo, à sua dedução apriorística de todos os conceitos, a partir do autodesenvolvimento dialético do absoluto, quando ele mesmo confere uma posição tão central contra a construção ideal desse conceito hegeliano. "Hoje, temos de partir da realidade da vida". Ele escreve: "Procuramos entender essa realidade e apresentá-la em conceitos adequados. Na medida em que o espírito objetivo for libertado de uma fundamentação unilateral na razão universal geral que expressa a essência do espírito do mundo, libertado também da construção ideal, torna-se possível um novo conceito do mesmo: nele são acolhidos linguagem, costumes, todo tipo de formas de vida e de estilos de vida, do mesmo modo que família, sociedade civil, estado e direito. Finalmente, encontra-se também [233] sob esse conceito o que em Hegel distinguia o espírito absoluto do objetivo: arte, religião e filosofia..." VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Não há dúvida de que isso é uma reformulação do conceito hegeliano. Mas o que significa? Até que ponto leva em conta a "realidade da vida"? O mais significativo é evidentemente a expansão do conceito do espírito objetivo à arte, à religião e à filosofia; pois isso significa que Dilthey vê também neles não uma verdade imediata, mas formas de expressão da vida. Equiparando a arte e a religião com a filosofia, rechaça simultaneamente as pretensões do conceito especulativo. Dilthey não nega, em absoluto, que essas formas tenham primazia ante as outras formas do espírito objetivo, na medida em que é "justamente nas suas poderosas formas" onde o espírito se objetiva e é conhecido. De outra parte, foi essa primazia do pleno autoconhecimento do espírito que permitiu a Hegel compreender essas formas como formas do espírito absoluto. Nelas já não havia nada de estranho e, por isso, o espírito estaria inteiramente em casa, estando consigo mesmo. Também para Dilthey as objetivações da arte representavam, como já vimos, o verdadeiro triunfo da hermenêutica. E assim, a oposição a Hegel se releva a término o retorno do espírito, enquanto que para Dilthey o conceito filosófico não tem significado cognitivo, mas expressivo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

E assim teremos de nos indagar se não haverá também para Dilthey uma forma do espírito que seja verdadeiro "espírito absoluto", isto é, plena autotransparência, total extensão de toda estranheza e de todo ser diverso. Para Dilthey, não há dúvida de que isso existe e que é a consciência histórica que corresponde a esse ideal, e não a filosofia especulativa. Essa consciência vê todos os fenômenos do mundo humano-histórico tão-somente como objetos, nos quais o espírito se conhece mais profundamente a si mesmo. E, na medida em que os entende como objetivações do espírito, transfere-os de volta "à vitalidade espiritual de onde procedem". As configurações do espirito objetivo são para a consciência histórica, portanto, objetos do autoconhecimento desse espírito. A consciência histórica se estende ao universal, na medida em que entende todos os dados da historia como manifestação da vida, da qual procedem; "a vida compreende aqui a vida". Nessa medida, toda a tradição se converte, para a consciência histórica, num auto-encontro do espirito humano. Com isso, atrai para si o que parecia reservado às criações específicas da arte, da religião e da filosofía. Não é no saber especulativo do conceito, mas na consciência histórica, onde se leva a cabo o saber de si mesmo do espírito. Esta descobre o espirito histórico em tudo. A [234] própria filosofía só vale como expressão da vida. E, na medida em que ela é consciente disso, renuncia à sua antiga pretensão de ser conhecimento por conceitos. Volta a ser filosofía da filosofía, uma fundamentação filosófica do fato de que, na vida — e junto à ciência — há filosofía. Em seus últimos trabalhos, Dilthey esboça uma tal filosofia na qual ele reconduz os diversos tipos de concepção de mundo à pluralidade de facetas da vida que se desenvolve neles. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Paralelamente a essa superação histórica da metafísica aparece a interpretação espiritual-científica da grande poesia, na qual Dilthey vê o triunfo da hermenêutica. Permanece, porém, uma primazia relativa ao fato de que a filosofia e a arte possuam primazia para a consciência que compreende historicamente. Enquanto tais, essas podem manter uma preferência especial, porquanto nelas não se tem de secar-lhe o espírito, porque são "expressão pura" e não querem ser outra coisa. Mas tampouco assim são verdade imediata, porém só se prestam como órgão que serve à compreensão da vida. Tal qual certas épocas de esplendor de uma cultura são preferidas para o conhecimento de seu "espírito", ou tal como o fato de que o que caracteriza as grandes personalidades é que representam em seus planos e em seus feitos as verdadeiras decisões históricas, do mesmo modo a filosofia e a arte tornam-se particularmente acessíveis à compreensão interpretadora. Aqui a história do espírito segue a preferência da forma, do puro aperfeiçoamento de totalidades significativas que se destacam do devir. Em sua introdução à biografia de Schleiermacher, Dilthey escreve: VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

"A história dos movimentos espirituais tem a vantagem de monumentos que são verdadeiros. Poderemos nos equivocar com respeito às suas intenções, mas não com respeito ao conteúdo da própria interioridade que está expresso em obras". Não é por acaso que Dilthey nos tenha colocado ao alcance essa anotação de Schleiermacher: "A flor é a verdadeira madureza. O fruto não é mais que a caótica casca do que já não pertence à planta orgânica". Dilthey compartilha, evidentemente, essa tese de uma metafísica estética. Ela subjaz à sua relação com a história. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A ela corresponde também a transformação do conceito do espírito objetivo, que coloca a consciência histórica no lugar da metafísica. Mas aqui se apresenta a questão de se saber se a consciência histórica está realmente em condições de ocupar este posto, que em Hegel estava ocupado pelo saber absoluto do espírito que se concebe a si mesmo no conceito especulativo. O próprio Dilthey aponta o fato de que somente conhecemos historicamente porque nós mesmos somos históricos. Isso deveria representar uma facilitação epistemológica. Mas [235] poderá sê-lo? É realmente correta a fórmula de Vico, tantas vezes citada? Não é isso uma transposição da experiência do espírito artístico do homem e para o mundo histórico, onde já não se pode falar de "fazer", isto é, de planos e execuções face ao decurso das coisas? Aonde entra aqui a facilitação epistemológica? Não se torna, com isso, mais difícil? O condicionamento histórico da consciência não deveria representar, antes, uma barreira intransponível para sua própria consumação como saber histórico? Hegel podia crer que havia superado essa barreira com sua subsunção da história no saber absoluto. Mas se a vida é realmente criadora e inesgotável, tal como pensa Dilthey, a constante transformação do nexo de significado da história não terá, em última instância, um ideal utópico, que contém em si mesmo uma contradição? VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

1.2.2. A discrepância entre a ciência e a filosofia da vida na análise da consciência histórica de Dilthey VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Dilthey refletiu incansavelmente sobre esse problema. Sua reflexão tinha sempre como meta legitimar o conhecimento do que é condicionado historicamente como desempenho da ciência objetiva, apesar do próprio condicionamento. A isso devia ser a teoria da estrutura, que constrói sua unidade a partir de seu próprio centro. O fato de que se compreenda um nexo estrutural a partir do próprio centro é algo que corresponde ao velho princípio da hermenêutica e da exigência do pensamento histórico, segundo o qual tem-se de compreender cada época a partir de si própria e de não medi-la com o padrão de um presente estranho a ela. Segundo esse esquema — de acordo com Dilthey — poderia pensar-se o conhecimento de nexos históricos cada vez mais amplos e estendê-lo até um conhecimento histórico universal, do mesmo modo que uma palavra só pode ser compreendida plenamente a partir da frase inteira e esta somente a partir do contexto do texto inteiro e até, da totalidade da literatura transmitida. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Naturalmente a aplicação desse esquema pressupõe que seja possível superar a vinculação a um ponto de vista verdadeiramente histórico para tudo. É nisso que vê a sua perfeição. Por isso concentra os seus esforços em desenvolver o "sentido histórico", a fim de aprender a elevar-se para além dos preconceitos do próprio presente. E assim que Dilthey se considerou o autêntico realizador da concepção histórica do mundo, porque procurou legitimar a elevação da consciência à consciência [236] histórica. O que a sua reflexão epistemológica pretendia justificar não era, no fundo, mais do que o grandioso auto-esquecimento épico de um Ranke. Somente que em lugar do auto-conhecimento estético aparece aqui a soberania de uma compreensão holifacetária e infinita. A fundamentação da historiografia em uma psicologia da compreensão, tal como Dilthey a tinha em mente, desloca o historiador justamente a essa simultaneidade ideal com seu objeto, que chamamos de estética e da qual nos admiramos em Ranke. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Claro que a questão decisiva continua sendo a de como é possível tal compreensão inesgotável para a natureza limitada. Isso pode representar realmente a opinião de Dilthey? Não é Dilthey exatamente quem afirma face a Hegel a necessidade de manter a consciência da própria finitude? VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Só que aqui convirá observar mais de perto. Sua crítica ao idealismo racional de Hegel se referia meramente ao apriorismo de sua especulação conceitual — a infinitude interna do espírito não apresentava nenhuma questionabilidade fundamental, antes enchia-se positivamente com o ideal de uma razão esclarecida historicamente, que amadureceria rumo à genialidade da compreensão total. Para Dilthey a consciência da finitude não significava uma finalização da consciência nem uma limitação. Antes, testemunha a capacidade da vida de elevar-se com sua energia e atividade para além de toda barreira. Nesse sentido aparece nele precisamente a infinitude potencial do espírito. É claro que não é a especulação, mas a razão histórica, o modo como se atualiza essa infinitude. A compreensão histórica estende-se sobre todo dado histórico e é verdadeiramente universal, porque tem seu sólido fundamento na totalidade e infinitude interna do espírito. Nisso, Dilthey adere à velha doutrina que deriva a possibilidade de compreensão da semelhança da natureza humana. Entende o próprio mundo das vivências como mero ponto de partida de uma ampliação, que, em viva transposição, completa a estreiteza e casualidade da própria vivência, através da infinitude daquilo que lhe é acessível revivendo o mundo histórico. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Portanto, as barreiras que são impostas à universalidade da compreensão, através da finitude histórica do nosso ser são, para Dilthey, de natureza puramente subjetiva. Claro que, apesar disso, ele pode reconhecer nelas algo positivo, que pode tornar-se fecundo para o conhecimento; é nesse sentido que ele assegura que somente a simpatia torna possível uma verdadeira compreensão. Mas seria preciso indagar, se isso reveste uma significação fundamental. Tem-se de constatar, em primeiro lugar: Dilthey considera a simpatia unicamente como uma condição de conhecimento. E cabe perguntar, com Droysen, se a simpatia (que é uma forma de amor) não representa algo bem diferente do que uma condição afetiva para o conhecimento. A [237] simpatia faz parte das formas de relação entre o eu e o tu. É evidente que nessa classe de relações éticas reais opera também o conhecimento, e nessa medida demonstra-se de fato que o amor ajuda a ver. Mas a simpatia é, em todo caso, muito mais que uma simples condição do conhecimento. Através dela o tu também se transforma. Em Droysen se lê a profunda frase: "assim tens de ser, porque assim te quero: o mistério de toda educação". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Quando Dilthey fala de simpatia universal, pensando no assentamento maduro da idade avançada, não se refere, certamente, a esse fenômeno ético da simpatia, mas ao ideal da consciência histórica consumada, que supera fundamentalmente os limites que são impostos à compreensão através da casualidade subjetiva das preferências e das afinidades com respeito a algum objeto. Segundo a coisa em questão, Dilthey acompanha aqui a Ranke, que via na compaixão e na consciência do todo a dignidade do historiador. Até dá a impressão que Dilthey restrinja Ranke, quando destaca como condições preferenciais da compreensão histórica aquelas em que subjaz "um condicionamento duradouro da própria vitalidade, através do grande objeto", e quando vê nelas a suma possibilidade da compreensão. Entretanto, seria falso entender, sob esse condicionamento da própria vitalidade, outra coisa que não uma condição subjetiva de conhecimento. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Alguns exemplos o confirmarão. Quando Dilthey menciona a relação de Tucídides com Péricles ou a de Ranke com Lutero, tem em mente com isso uma vinculação congenial e intuitiva que possibilita espontaneamente, ao historiador, uma compreensão que, de outro modo, seria difícil de alcançar. Ele sustenta basicamente, que uma relação desse tipo, que em casos excepcionais consegue-se de uma maneira genial, é sempre acessível, em virtude da metodologia da ciência. O fato de que as ciências do espírito se utilizam dos métodos comparativos, ele fundamenta explicitamente com a tarefa da própria ciência, ou seja, superar as barreiras contingentes que o próprio círculo das experiências apresenta, e "elevar-se assim a verdades de maior generalidade". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Seja como for, parece claro que Dilthey não vê na vinculação do homem finito e histórico ao seu ponto de partida um prejuízo fundamental da possibilidade do conhecimento espiritual-científico. A consciência histórica teria de realizar em si mesma uma tal superação da própria relatividade, que, com isso, torne possível a objetividade do conhecimento espiritual-científico. E tem-se de indagar como se deve justificar essa pretensão, sem implicar um conceito do saber absoluto, filosófico, para além de toda a consciência histórica. Qual é a distinção da consciência histórica — face a todas as demais formas de consciência da história — , para que seus próprios condicionamentos não devam suspender a sua pretensão fundamental de alcançar um conhecimento objetivo? VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Em Dilthey não se encontra resposta explícita a essa pergunta. Todavia, toda sua obra científica responde indiretamente a ela. Talvez se pudesse dizer: a consciência histórica não é tanto um apagar-se a si mesmo, como uma progressiva posse de si mesmo, e é isso o que distingue a consciência histórica de todas as demais formas do espírito. Por mais indissociável que seja o fundamento da vida histórica, do qual ela se eleva, a consciência histórica é capaz de compreender historicamente sua própria possibilidade de comportar-se historicamente. Por isso, não se trata — como acontece com a consciência, frente a seu desenvolvimento vitorioso que se torna consciência histórica — de expressão imediata de uma realidade da vida à tradição, na qual se encontra, nem a continuar assim, em ingênua apropriação da tradição, essa mesma tradição. Pelo contrário, se reconhece em uma relação reflexiva consigo mesma e com a tradição na qual se encontra. Compreende-se a si mesma a partir de sua história. A consciência histórica é uma forma do autoconhecimento. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Uma resposta como esta poderia indicar a necessidade de determinar mais profundamente a essência do autoconhecimento. E, de fato — como veremos — as fracassadas tentativas de Dilthey acabam se encaminhando ao fito de tornar compreensível, "a partir da vida", o modo como a consciência científica se eleva, partindo do autoconhecimento. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Dilthey parte da vida: a própria vida está apontada à reflexão. É a Georg Misch a quem devemos uma enérgica elaboração da tendência da filosofia da vida no filosofar de Dilthey. Seu fundamento repousa no fato de que a vida mesma contém saber. Já a interiorização (Innesein), que caracteriza a vivência, contém uma espécie de retorno da vida sobre si mesma. "O saber está aí, unido à vivência sem dar-se conta" (VII, 18). Essa mesma reflexividade imanente da vida determina também o modo como, segundo Dilthey, o significado surge no nexo vital. Somente se experimenta o significado, quando se sai à "caça das metas". O que torna possível essa reflexão é um distanciamento, uma lonjura do nexo do nosso próprio fazer. Dilthey destaca, e, sem dúvida, com razão, que antes de toda objetivação científica o que se forma é uma visão natural da vida sobre si mesma. Esta se objetiva na sabedoria dos provérbios e sagas, mas sobretudo nas grandes obras da arte, nas quais "algo espiritual se desprende de seu criador". Por isso a arte é um órgão especial da compreensão da vida, porque em seus "confins entre o saber e a ação" a vida se abre com uma profundidade que não é acessível nem à observação, nem à reflexão, [240] nem à teoria. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Algo assim poderia também ser encontrado em Droysen, mas em Dilthey possui um matiz próprio. Tanto na direção da contemplação como na da reflexão prática surge, segundo Dilthey, a mesma tendência da vida: a "aspiração à estabilidade". A partir disso compreende-se que Dilthey pudesse considerar a objetividade do conhecimento científico e da auto-reflexão filosófica como a realização suprema da tendência natural da vida. O que guia a reflexão de Dilthey não é uma adaptação externa da metodologia das ciências do espírito aos procedimentos das ciências da natureza, mas o fato de que detecta em ambas uma comunidade genuína. A essência do método experimental é a elevação acima da casualidade subjetiva da observação, e com ajuda disso dá-se o conhecimento da regularidade da natureza. Assim, as ciências do espírito também procuram elevar-se metodicamente acima da casualidade subjetiva do próprio ponto de partida e da tradição que lhes é acessível, alcançando assim a objetividade do conhecimento histórico. A própria auto-reflexão filosófica encaminha-se na mesma direção, na medida em que "se torna objetiva para si mesma como fato humano e histórico" e renuncia à pretensão de alcançar um conhecimento puro a partir de conceitos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O nexo de vida e saber é, pois, para Dilthey, um dado originário. É isso o que torna invulnerável a posição de Dilthey ante toda objetivação que se possa fazer ao "relativismo" histórico, a partir da filosofia e, especialmente, com os argumentos da filosofia idealista da reflexão. Sua fundamentação da filosofia no fato originário da vida não busca um nexo de proposições, livre de contradições, que quisessem substituir os sistemas de ideias da filosofia precedente. Para a auto-reflexão [241] filosófica vale, antes, o mesmo que Dilthey indicou para o papel da reflexão na vida. A auto-reflexão pensa a própria vida até o fim, compreendendo a própria filosofia, mas não no sentido nem com a pretensão do idealismo: não procura fundamentar a única filosofia possível a partir da unidade de um princípio especulativo, mas continua simplesmente o caminho da auto-reflexão histórica. E dessa maneira subtrai-se à objeção de estar comprometida com o relativismo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

É verdade que o próprio Dilthey sempre levou em consideração essa objeção e procurou uma solução para a questão pelo modo como é possível a objetividade, dentro da relatividade, e como pode-se pensar a relação do finito com o absoluto. A tarefa é expor como se ampliaram esses conceitos de valor, relativos à época, a algo absoluto". Em Dilthey, porém, será vã a procura de uma resposta real a esse problema do relativismo, e isto não porque ele jamais tenha encontrado a resposta certa, mas porque essa não era sua própria e verdadeira pergunta. Antes, no desenvolvimento da auto-reflexão histórica que o levava de relatividade a relatividade, ele se soube sempre no caminho rumo ao absoluto. Nesse sentido, Ernst Troeltsch resumiu perfeitamente o trabalho de toda a vida de Dilthey na formulação: da relatividade à totalidade. A fórmula que Dilthey emprega para isso diz o seguinte: "Ser conscientemente um ser condicionado" — uma fórmula que se dirige abertamente contra a pretensão da filosofia da reflexão, pretensão de deixar para trás todas as barreiras da finitude, ascendendo para o absoluto e para o infinito do espírito, para a consumação e a verdade da autoconsciência. No entanto, sua incansável reflexão sobre a objeção do "relativismo" mostra que ele não pôde manter realmente a consequência de sua investida da filosofia da vida contra a filosofia da reflexão do idealismo. Não fosse assim, ele teria de reconhecer, na objeção do relativismo, o "intelectualismo", a que seu próprio ponto de partida da imanência do saber na vida pretendia minar pela base. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Essa ambiguidade tem seu fundamento último na falta de unidade interna de seu pensamento, no resíduo do cartesianismo, donde ele parte. Suas reflexões epistemológicas sobre a fundamentação das ciências do espírito não se coadunam bem com seu ponto de partida na filosofia da vida. Nas suas anotações mais tardias encontra-se um testemunho eloquente. Ali, Dilthey exigirá a toda fundamentação filosófica que se estenda a todo o campo em que "a consciência já tenha sacudido toda autoridade e procure chegar a um saber válido do ponto de [242] vista da reflexão e da dúvida". Essa frase parece uma afirmação inocente sobre a essência da ciência e da filosofia da época moderna como tal. Não há como não perceber uma ressonância cartesiana. Na verdade, porém, essa frase encontra sua aplicação em um sentido totalmente diferente, quando Dilthey continua: "Por toda parte a vida conduz a reflexões sobre o que está colocado nela, a reflexão quanto à dúvida, e somente se a vida quiser se firmar frente a esta, então e somente então pode o pensamento acabar sendo um saber válido". Aqui já não mais existem preconceitos filosóficos que têm de ser superados por uma fundamentação epistemológica ao estilo de Descartes, já que se trata de realidades da vida, de tradições dos costumes, da religião e do direito positivo, que são desintegrados pela reflexão e necessitam de uma nova ordem. Quando Dilthey fala aqui do saber e da reflexão, não está querendo aludir à imanência geral do saber na vida, mas a um movimento dirigido contra a vida. Ao contrário, a tradição dos costumes, da religião e do direito repousa, de sua parte, sobre um saber da vida a partir de si mesma. Inclusive já vimos que na entrega à tradição, na qual certamente está envolvido algum saber, realiza-se a ascensão do indivíduo ao espírito objetivo. Terá de se concordar prazerosamente com Dilthey que a influência do pensamento sobre a vida "procede da necessidade interna de estabelecer algo fixo em meio à mudança inconstante das percepções sensoriais, dos desejos e sentimentos, algo fixo e estável que torne possível um modo de vida continuado e unitário". Mas esse desempenho do pensamento é imanente à própria vida e se realiza nas objetivações do espírito que, como costumes, direito e religião sustentam o indivíduo, na medida em que este se entrega à objetividade da sociedade. O fato de que, para isso, tenha-se de adotar "o ponto de vista da reflexão e da dúvida" e que esse trabalho se realize "em todas as formas de reflexão e científica (e não fora disso), não se coaduna, em absoluto, com as ideias da filosofia da vida de Dilthey. Antes, aqui se descreve o ideal específico do Aufklärung científico, que bem pouco concorda com a reflexão imanente da vida, justamente ao modo como foi o "intelectualismo" do Aufklärung, contra o qual se orienta a fundamentação de Dilthey no fato da filosofia da vida. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

É porém característico para a problemática de Dilthey com respeito à fundamentação das ciências do espírito, que não distinga entre essa dúvida metódica e as dúvidas que aparecem "por si mesmas". A certeza das ciências significa, para ele, a consumação da certeza da vida. Isso não quer dizer, por exemplo, que ele não tenha percebido a incerteza da vida na plena pujança da concreção histórica. Ao contrário, quanto mais se inteirava da ciência moderna, com tanto mais força percebia a tensão entre a sua procedência da tradição cristã e os poderes históricos liberados pela vida moderna. A necessidade de proteção face às tremendas realidades da vida menos desta estabilização, proporcionada pela experiência da vida, do que da ciência. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A forma cartesiana de se alcançar a certeza através da dúvida é, para Dilthey, de uma evidência imediata, na medida em que ele é um filho do Aufklärung. Esse sacudir fora o que é autoritativo, de que fala, não corresponde somente à necessidade epistemológica de fundamentar as ciências da natureza, mas diz respeito também ao saber de valores e objetivos. Para ele, estes também não representam um todo indubitável, extraído da tradição, dos costumes, da religião, do direito, mas "também aqui o espírito tem de produzir por si mesmo um saber válido". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

[244] O processo privado de secularização que levou Dilthey, estudante de teologia, à filosofia coincide com o processo mundial-histórico da gênese das ciências modernas. Assim como a investigação moderna da natureza não considera a natureza como um todo compreensível, mas como um acontecimento estranho ao eu, em cujo decurso ela introduz uma luz limitada, mas confiável, e cujo domínio se torna assim possível, da mesma maneira o espírito humano, que procura proteção e certeza, tem de opor à "insondabilidade" da vida, a esse "semblante terrível", a capacidade da compreensão, formada cientificamente. Esta deve abrir a vida, na sua realidade sócio-histórica, de uma forma tão completa que, apesar da insondabilidade da vida, o saber garanta proteção e certeza. O Aufklärung consuma-se como Aufklärung histórico. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A partir disso pode-se entender o que Dilthey vincula à hermenêutica romântica. Com a sua ajuda consegue ele cobrir a diferença entre a essência histórica da experiência e a forma de conhecimento da ciência, ou melhor, pôr em consonância a forma de conhecimento das ciências do espírito com os padrões metodológicos das ciências da natureza. Já vimos acima que o que o levou a isso não foi uma adaptação externa. Reconhecemos agora que não o conseguiu sem descuidar a própria e essencial historicidade das ciências do espírito. Isso se torna claro no conceito de objetividade válida nas ciências da natureza. E por isso que Dilthey gosta de empregar a palavra "resultados" e de demonstrar pela descrição da metodologia das ciências do espírito sua igualdade de categoria com as ciências da natureza. Para isso a hermenêutica romântica veio-lhe ao encontro, na medida em que, como já vimos, esta própria não levava em conta a essência histórica da experiência. Pressupunha que o objeto da compreensão é o texto a ser decifrado e compreendido em seu sentido. Assim, todo encontro com um texto é, para ela, um auto-encontro do espírito. Todo texto é suficientemente estranho para representar uma tarefa, e, no entanto, suficientemente familiar para manter sua essencial possibilidade de resolução, mesmo quando não se saiba de um texto a não ser que é texto, escrito ou espírito. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

[245] Como vimos em Schleiermacher, o modelo de sua hermenêutica é a compreensão congenial possível de ser alcançada na relação entre o eu e o tu. A compreensão de textos tem a mesma possibilidade de adequação total que a compreensão do tu. Pode-se ver diretamente no texto a opinião do autor. O intérprete é absolutamente coetâneo com seu autor. Este é o triunfo do método filológico: conceber o espírito passado como presente, o espírito estranho como familiar. Dilthey está totalmente compenetrado desse triunfo. Sobre isso fundamenta sua afirmação de que as ciências do espírito possuem o mesmo padrão. Assim como o conhecimento natural-científico interroga algo presente sempre em relação a uma explicação que é projetada nele, assim o investigador do espírito interroga os textos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Com isso Dilthey acredita ter preenchido a tarefa, que considerou sua, ou seja, justificar epistemologicamente as ciências do espírito, pensando o mundo histórico como um texto que se deve decifrar. Com isso ele chegou a uma consequência que, como já vimos, a escola histórica nunca quis admitir por completo. É verdade que Ranke designa o deciframento dos hieróglifos da história como a tarefa sagrada do historiador. Mas que a realidade histórica representa um indício de sentido tão puro que baste decifrá-lo como se fosse um texto, isso não correspondia realmente às tendências mais profundas da escola histórica. Dilthey, o intérprete dessa concepção histórica do mundo, viu-se, todavia, obrigado a chegar a essa consequência (como, em algum momento, também Ranke e Droysen), na medida em que a hermenêutica lhe estava servindo de modelo. O resultado foi que, ao cabo, a história ficou reduzida à história do espírito, redução que Dilthey admite, de fato, na sua meia negação e meia afirmação da filosofia hegeliana do espírito. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Enquanto a hermenêutica de Schleiermacher repousava sobre uma abstração metodológica artificial, que procurava produzir uma ferramenta universal para o espírito, mas que se propunha, como objetivo, trazer à fala com a ajuda dessa ferramenta, à força salvadora da fé cristã, para a fundamentação das ciências do espírito de Dilthey a hermenêutica representava mais do que um instrumento. É o médium universal da consciência histórica, para a qual não existe nenhum outro conhecimento da verdade do que compreender a expressão e, na expressão, a vida. Na história tudo é compreensível. E isso porque tudo é texto. "Tal qual as letras de uma palavra têm vida e a história, um sentido". Assim a investigação de Dilthey sobre o passado histórico acaba sendo pensada como um deciframento e não como uma experiência histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

É indubitável que, com isso, não se satisfaça ao objetivo da escola histórica. A hermenêutica romântica e o método filológico, sobre os quais ela se ergue, não são base suficiente para a história; da mesma forma, não é satisfatório para Dilthey o conceito dos procedimentos indutivos que se pede emprestado [246] às ciências da natureza. A experiência histórica, tal como ele fundamentalmente a entende, não é um procedimento e não possui a anonimidade de um método. Certamente que dela se podem deduzir regras de experiência gerais, mas o seu valor metodológico não é o do conhecimento de leis, sob as quais se possam subsumir univocamente os casos que apareçam. Antes, as regras da experiência exigem um uso já experimentado e são, no fundo, o que são apenas nesse uso particular. Frente a essa situação é preciso admitir que o conhecimento das ciências do espírito não é o mesmo das ciências indutivas, mas possui uma objetividade bem diferente e deve ser adquirido de uma maneira totalmente diversa. A fundamentação das ciências do espírito na filosofia da vida de Dilthey e a sua crítica a todo dogmatismo, bem como ao dos empiristas, procuram tornar válido exatamente isso. Mas o cartesianismo epistemológico, ao qual não consegue escapar, acabou sendo mais forte, de maneira que, para Dilthey, a historicidade da experiencia histórica não chegou a se tornar verdadeiramente determinante. É verdade que Dilthey não menosprezou a significação que tem a experiencia de vida, tanto individual como universal, para o conhecimento das ciencias do espirito — mas ambos, para ele, são determinados de maneira meramente privada. Trata-se de uma indução não-metódica, carente de verificação, que já aponta para a indução metódica da ciencia. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Se nos lembrarmos agora do estado da auto-reflexão das ciencias do espírito, que nos serviu de ponto de partida, iremos reconhecer que a contribuição de Dilthey é particularmente característica para isso. A discrepancia que domina seus esforços nos torna patente o grau de coação que procede do pensamento metódico da ciência moderna, e que o que importa é descrever mais adequadamente a experiência operada nas ciencias do espírito e a objetividade que se pode alcançar nelas. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Reside na natureza das coisas que, tendo em vista a tarefa que se nos propõe, o idealismo especulativo oferece melhores possibilidades do que Schleiermacher e a hermenêutica que a ele se vincula. É que no idealismo especulativo o conceito do dado, da positividade, tinha sido submetido a uma profunda crítica — e justamente a ela é que Dilthey havia atentado apelar para a sua filosofía da vida. Ele escreve: "Através de que designa Fichte o início de algo novo? Pelo fato de que parte da contemplação intelectual do eu, porém concebendo-o não [247] como uma substância, um ser, um dado, mas exatamente através dessa contemplação, isto é, desse difícil aprofundamento do eu em si próprio, o concebe como vida, atividade, energia, e por consequência, mostra nele a realização de conceitos energéticos como oposição etc". Da mesma forma, Dilthey acabou reconhecendo no conceito hegeliano do espírito a vitalidade de um genuíno conceito histórico. Nessa mesma direção atuam alguns de seus contemporâneos, como já destacamos na análise do conceito da vivência: Nietzsche, Bergson, este já um tardio seguidor da crítica romântica contra a forma de pensar da mecânica, e Georg Simmel. Mas foi somente Heidegger que tornou consciente, de uma maneira geral, a radical exigência que se coloca ao pensamento em virtude da inadequação do conceito de substância para o ser e o conhecimento histórico. Somente através dele é que se liberou a intenção filosófica de Dilthey. Para o seu trabalho, Heidegger se engatou na investigação da intencionalidade da Fenomenologia de Husserl, que representa a ruptura mais decidida, na medida em que não é o platonismo extremo, como o via Dilthey. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Ao contrário, quanto mais clarividente se nos torna o lento desenvolvimento do pensamento husserliano, através da evolução de sua grande tarefa, vai se tornando mais claro que, com o tema da intencionalidade, institui-se uma crítica cada vez mais radical ao "objetivismo" da filosofia anterior — incluindo a Dilthey — que deveria culminar na exigência de "que a fenomenologia intencional, pela primeira vez, fez do espírito enquanto espírito, um campo de experiência sistemática e uma [248] ciência, dando, com isso, uma reviravolta total à tarefa do conhecimento. A universalidade do espírito absoluto abarca todo o ente numa historicidade absoluta, na qual se inclui a natureza como uma construção do espírito". Não é por acaso que, aqui, o espírito se oponha como o único absoluto, isto é, não relativo, à relatividade de tudo que se lhe manifesta; sim, o próprio Husserl reconhece a continuidade entre a sua fenomenologia e o questionamento transcendental de Kant e de Fichte: Mas é preciso que se acrescente que o idealismo alemão que parte de Kant já estava apaixonadamente preocupado em superar a ingenuidade que já era bem visível (sc. do objetivismo). VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Essas declarações do Husserl tardio já podem ter sido motivadas pela confrontação com Ser e tempo, mas a elas precedem inumeráveis tentativas de Husserl, demonstrando que ele tinha sempre em vista a aplicação de suas ideias aos problemas das ciências do espírito históricas. Aqui, portanto, não se trata de um ponto de conexão periférico com o trabalho de Dilthey — ou, mais tarde, com o de Heidegger — mas representa a consequência de sua própria crítica à psicologia objetivista e ao objetivismo da filosofia precedente. Isso se torna absolutamente claro após a publicação das Ideias III". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O engate de Dilthey às Investigações lógicas de Husserl atinge em cheio o cerne da questão. Segundo o próprio Husserl, o trabalho de toda sua vida encontra-se dominado, desde as Investigações lógicas, pelo a priori da correlação entre o objeto da experiência e a forma dos dados. Já na quinta investigação lógica ele tinha elaborado o modo próprio das vivências intencionais e diferenciado a consciência, tal como a convertera em tema de investigação, "enquanto vivência intencional" (este é o título do segundo capítulo), da unidade real das vivências na consciência, e de sua percepção interna. Nesse sentido, e já nessa época, a consciência não é para ele um "objeto", mas uma atribuição (Zuordnung) essencial — esse foi o ponto que se tornou tão elucidativo para Dilthey. O que se manifestou na investigação dessa atribuição foi uma primeira superação do "objetivismo", na medida em que, por exemplo, o significado das palavras não pode continuar sendo confundido com o conteúdo psíquico real da consciência, p. ex., com as representações associativas que uma palavra desperta. Intenção de significado e cumprimento de significado fazem parte essencialmente da unidade do significado, e, tal qual os significados das palavras que usamos, todo ente que possua validez para mim possui, correlativamente e com necessidade essencial, uma "generalidade ideal dos modos reais e possíveis das coisas dadas serem experimentadas". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Este é o ponto em que Husserl podia julgar-se, de certa forma, em consonância com as intenções de Dilthey. De uma forma semelhante, Dilthey combateu o criticismo dos neokantianos, por não lhe ser satisfatório o retrocesso ao sujeito epistemológico. "Nas veias do sujeito conhecedor, que construíram Locke, Hume e Kant, não corre sangue verdadeiro". O próprio Dilthey retrocede até a unidade da vida, até "o ponto de vista da vida", e, de uma forma muito parecida a isso, a "vida da consciência" de Husserl — palavra que parece provir de Natorp — já é uma indicação da tendência que se impôs amplamente, de estudar não somente vivências individuais da consciência, mas as intencionalidades ocultas, anônimas e [251] implícitas da consciência, tornando assim compreensível o todo de qualquer validez objetiva do ser. Mais tarde se dará a isso a denominação de esclarecimento dos desempenhos da "vida produtiva". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O papel que aqui desempenha o conceito da vida tem uma clara correspondência com as investigações de Dilthey sobre o nexo vivencial. Da mesma forma que Dilthey não partia ali da vivência, a não ser para ganhar o conceito do nexo psíquico, Husserl mostra a unidade da corrente vivencial como prévia e essencialmente necessária face à individualidade das vivências. A investigação temática da vida da consciência está obrigada a superar, assim como em Dilthey, o ponto de partida da vivência individual. Nessa perspectiva, existe entre os dois pensadores uma genuína comunidade. Ambos retrocedem à concreção da vida. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Não obstante, permanece a indagação de se saber se ambos chegam a fazer justiça às exigências especulativas contidas no conceito da vida. Dilthey quer derivar a construção do mundo histórico da reflexividade que é inerente à vida, enquanto que Husserl procura derivar a constituição do mundo histórico a partir da "vida da consciência". E a pergunta a ser feita é se em ambos os casos o autêntico conteúdo do conceito de vida não permanece ignorado através do esquema epistemológico de uma tal derivação a partir dos dados últimos da consciência. O que levanta essa questão é, sobretudo, as dificuldades que nos coloca o problema da intersubjetividade e a compreensão do eu estranho. Nisso a dificuldade parece a mesma, tanto em Husserl como em Dilthey. Os dados imanentes da consciência, examinada reflexivamente, não contêm o tu de maneira imediata e originária. Husserl tem toda a razão quando destaca que o tu não possui essa espécie de transcendência imanente, que é princípio dos objetos do mundo da experiência externa. Pois todo tu é um alter ego, isto é, é compreendido a partir do ego e, não obstante, é compreendido também como separado dele, e no modo do próprio ego, como autônomo. Em suas laboriosas investigações, Husserl procurou esclarecer a analogia do eu e do tu — que Dilthey interpreta de uma maneira puramente psicológica, através da conclusão analógica da empatia — pelo caminho da intersubjetividade do mundo comum. Foi suficientemente consequente para não restringir, o mínimo que fosse, a primazia epistemológica da subjetividade transcendental. Todavia, o recurso ontológico é nele o mesmo que em Dilthey. O "outro" aparece inicialmente como uma coisa da percepção, que mais tarde "se converte", por empatia, num tu. E verdade que em Husserl esse conceito da empatia tem uma referência puramente transcendental, no entanto está orientado para a [255] interioridade (Innesein) da autoconsciência e não explicita a orientação segundo o âmbito funcional da vida, que ultrapassa em muito a consciência, e ao qual ele pretende retroceder. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Na realidade, o conteúdo especulativo do conceito de vida, em ambos os autores, fica sem ser desenvolvido. Dilthey objetiva somente opor polemicamente o ponto de vista ao pensamento metafísico, e Husserl não possui a mínima noção da conexão desse conceito com a tradição metafísica, em particular com o idealismo especulativo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Nesse ponto ganham uma importância surpreendentemente atual os escritos póstumos publicados recentemente, mas lamentavelmente muito fragmentários, do Conde Yorck. Ainda que Heidegger se tenha referido explicitamente às geniais indicações desse interessante personagem e tenha reconhecido nas suas ideias uma certa primazia em relação aos trabalhos de Dilthey, apesar de tudo está sempre contra ele o fato de que Dilthey realizou uma gigantesca obra, enquanto que as declarações epistolares do conde não chegam jamais a desenvolver um nexo realmente sistemático. Entretanto, esse escrito póstumo, procedente de seus últimos anos de vida, e agora editado, muda inteiramente essa situação. Embora não passe de um fragmento, sua intenção sistemática encontra-se desenvolvida com suficiente consequência, de tal modo que não podemos mais nos enganar sobre o topos teórico dessa tentativa. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Ele oferece exatamente o que acima sentimos fazer falta em Dilthey e Husserl. Entre o idealismo especulativo e o novo ponto de vista da experiência de seu século estende-se uma ponte, no sentido de que o conceito da vida é apresentado como o que abrange ambas as direções. A análise da vitalidade, que constitui o ponto de partida de Yorck, por mais especulativo que soe, inclui o modo de pensar das ciências da natureza próprio de seu século — explicitamente, o conceito da vida de Darwin. Vida é auto-afirmação. Essa é a base. A estrutura da vitalidade consiste em ser julgamento, ou seja, afirmar-se a si mesmo como unidade na participação e articulação de si mesmo. Mas o julgamento mostra-se também como a essência da autoconsciência, pois mesmo quando ela se dirime constantemente no si-próprio e no outro, sua consistência, no entanto — enquanto ser vivo — se mantém no jogo e contra-jogo desses seus fatores constitutivos. Pode-se dizer dela o que se afirma [256] de toda vida, que é prova, isto é, experimento. "Espontaneidade e dependência são os caracteres básicos da consciência; são constitutivos tanto no âmbito da articulação somática como da psíquica, do mesmo modo que sem objetividade não existiria nem o ver ou o sentir corporal, nem tampouco o imaginar, o querer ou o experimentar". Também a consciência deve ser entendida como um comportamento vital. Essa é a exigência metódica fundamental que Yorck coloca à filosofia e na qual se considera uno com Dilthey. E a esse alicerce oculto (Husserl diria: sobre esse desempenho oculto) há que se reconduzir o pensamento. Para isso torna-se necessário o esforço da reflexão filosófica. Pois a filosofia age opondo-se à tendência da vida. Yorck escreve: "O fato é que o nosso pensamento se move nos resultados da consciência" (ou seja, o pensamento não tem consciência da relação real desses "resultados" com o comportamento vital, sobre o qual repousam os mesmos). "A diremptio alcançada é aquele pressuposto". O conde Yorck quer dizer com isso que os resultados do pensamento somente são resultados, na medida em que se encontrem separados e se deixem separar do comportamento vital. A partir daí o conde Yorck conclui que a filosofia tem de reverter essa divisão. Tem de repetir, na direção inversa, o experimento da vida "com o fim de reconhecer as relações que condicionam os resultados da vida". Isso pode estar formulado de uma maneira muito objetivista e natural-científica, e a teoria husserliana da redução poderia apelar, diante disso, à sua forma de pensar estritamente transcendental. Na verdade, nas reflexões de Yorck, ousadas e conscientes de seus objetivos, não somente se mostra com grande clareza a tendência comum a Dilthey e a Husserl, senão que nelas ele aparece como nitidamente superior a estes. Pois, aqui, o pensamento prossegue realmente o nível da filosofia da identidade do idealismo estético e, com isso, torna-se evidente a procedência oculta do conceito da vida de que estão em busca Dilthey e Husserl. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Com isso, o conde Yorck eleva à categoria de um princípio metódico o que Husserl, mais tarde, irá desenvolver amplamente na sua fenomenologia. Compreende-se, dessa maneira, como foi possível que se encontrassem, no geral, dois pensadores tão diversos como Husserl e Dilthey. O retorno a posições anteriores à abstração do neokantismo torna-se comum a ambos. Yorck concorda com ambos, e no entanto, ele oferece ainda mais que isso. Pois não retrocede até a vida apenas com intenção epistemológica, senão que retém também a relação metafísica de vida e autoconsciência, da forma como Hegel a havia elaborado. E é nisso que Yorck se mostra superior a Husserl e a Dilthey. As reflexões epistemológicas de Dilthey, como vimos, acabaram errando o alvo no momento em que derivou a objetividade da ciência, num raciocínio excessivamente curto, a partir do comportamento vital e sua busca do estável. A Husserl faltou, de modo absoluto, uma determinação mais próxima do que é a vida, embora o núcleo da fenomenologia, a investigação das correlações acompanhem, segundo a coisa em causa, o modelo estrutural da relação vital. O conde Yorck, porém, estende a ponte que sempre fazia falta entre a Fenomenologia do espírito de Hegel e a Fenomenologia da subjetividade transcendental de Husserl. Não obstante, os fragmentos que nos legou não mostram como pensava evitar a metafisização dialética da vida, que ele mesmo reprova em Hegel. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Também Heidegger está determinado, inicialmente, por aquela tendência comum a Dilthey e a Yorck, que um e outro formularam como "conceber a partir da vida", tendência que, em Husserl, encontrou expressão como retorno a uma posição anterior à objetividade da ciência. Entretanto, ele não ficou mais submetido às implicações epistemológicas, segundo as quais o retorno à vida (Dilthey), tal como a redução transcendental (o caminho de Husserl da auto-reflexão absolutamente [259] radical), encontram seu fundamento metódico no fato de as vivências darem-se por si mesmas. Antes, tudo isso torna-se o objeto de sua crítica. Sob o termo-chave de uma "hermenêutica da facticidade" Heidegger opõe à fenomenologia eidética de Husserl, e à distinção entre fato e essência, sobre que ela repousa, uma exigência paradoxal. A facticidade da pre-sença, a existência, que não é passível de fundamentação nem de dedução, deveria representar a base ontológica do questionamento fenomenológico, e não o puro "cogito", como estruturação essencial de uma generalidade típica: uma ideia tanto audaz como difícil de ser cumprida. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Todavia, justamente nesse apelo de Husserl aos seus precursores torna-se patente sua diferença com respeito a Heidegger. A crítica de Husserl ao objetivismo da filosofia precedente representava uma continuação metódica das tendências modernas e se entendia como tal. A reivindicação de Heidegger, [261] pelo contrário, era, desde o princípio, a de uma teologia de signo inverso. Em sua própria iniciativa ele vê menos o cumprimento de uma tendência, preparada e já pronta há muito tempo, do que uma retomada do primeiro começo da filosofia ocidental, um reacender da velha e esquecida polêmica grega em torno do "ser". Quando apareceu Ser e tempo já se admitia de modo natural, que essa retomada do mais antigo era, ao mesmo tempo, um progresso com respeito à oposição da filosofia contemporânea, e, sem dúvida, o fato de que Heidegger assuma as investigações de Dilthey e as ideias do conde Yorck na continuação da filosofia fenomenológica não representou um engate arbitrário. O problema da facticidade era, de fato, também o problema central do historicismo, pelo menos sob a forma da crítica hegeliana às pressuposições dialéticas da "razão na história". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Essa é a razão pela qual o verdadeiro precursor da posição heideggeriana na indagação pelo ser e no seu remar contra a corrente dos questionamentos metafísicos ocidentais não podiam ser nem Dilthey nem Husserl, mas Nietzsche. Pode ser que o próprio Heidegger só o tenha compreendido mais tarde. Mas, retrospectivamente, pode-se dizer: elevar a crítica radical de Nietzsche ao "platonismo" até a altura da tradição criticada por ele, confrontar-se com a metafísica ocidental à sua própria altura e reconhecer e superar o questionamento transcendental como uma consequência do subjetivismo moderno são tarefas que estão, segundo o enfoque, já esboçadas em Ser e tempo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A fenomenologia hermenêutica de Heidegger e a análise da historicidade da pre-sença buscavam uma renovação geral da questão do espírito ou uma superação das aporias do historicismo [263]. Tratava-se meramente de problemas atuais, nos quais se pudesse demonstrar as consequências de sua renovação radical da questão do ser. Mas graças precisamente à radicalidade de seu questionamento pôde sair do labirinto em que se haviam deixado apanhar as investigações de Dilthey e Husserl sobre os conceitos fundamentais das ciências do espírito. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O esforço de Dilthey para tornar compreensíveis as ciências do espírito a partir da vida e para tomar como ponto de partida a experiência vital, não havia chegado nunca a equiparar-se realmente com o conceito cartesiano da ciência, a que se mantinha apegado. Por mais que ele acentuasse a tendência contemplativa da vida e o "impulso à estabilidade" que lhe é inerente, a objetividade da ciência, ao modo como ele a entendia, como uma objetividade dos resultados, provinha de uma origem diferente. Foi por isso que Dilthey não conseguiu superar as tarefas que ele mesmo havia escolhido e que consistiam em justificar epistemologicamente a peculiaridade metódica das ciências do espírito, equiparando-se assim em dignidade com as da natureza. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

À luz da ressuscitada questão do ser, Heidegger dá uma mudança nova e radical a tudo isso. Segue a Husserl no fato de que o ser histórico não precisa destacar-se, como em Dilthey, face ao ser da natureza para legitimar epistemologicamente a peculiaridade metódica das ciências históricas. Ao contrário, a forma de conhecer das ciências da natureza evidencia-se como uma forma desviada de compreensão, "que se perdeu na tarefa apropriada de acolher o que é simplesmente dado em sua [264] incompreensibilidade essencial". Compreender não é um ideal resignado da experiência de vida humana na idade avançada do espírito, como em Dilthey, mas tampouco, como em Husserl, um ideal metódico último da filosofia frente à ingenuidade do ir-vivendo, mas ao contrário, é a forma originária de realização da pre-sença, que é ser-no-mundo. Antes de toda diferenciação da compreensão nas diversas direções do interesse pragmático ou teórico, a compreensão é o modo de ser da pre-sença, na medida em que é poder-ser e "possibilidade". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Diante do pano de fundo dessa análise existencial da pre-sença, com todas as suas amplas e mal exploradas consequências para os interesses da metafísica geral, de repente o círculo de problemas da hermenêutica das ciências do espírito porta-se totalmente diferente. Nosso trabalho tem por escopo desenvolver esse novo aspecto do problema hermenêutico. Na medida em que Heidegger ressuscita o tema do ser e, com isso, ultrapassa toda a metafísica precedente — e não somente o seu ponto mais alto no cartesianismo da ciência moderna e da filosofia transcendental — ganha ele, face às aporias do historicismo, uma posição fundamentalmente nova. O conceito da compreensão já não é mais um conceito metódico como em Droysen. A compreensão não é, tampouco, como na tentativa de Dilthey de fundamentar hermeneuticamente as ciências do espírito, uma operação que só se daria posteriormente na direção inversa, ao impulso da vida rumo à idealidade. Compreender é o caráter ôntico original da própria vida humana. Se, a partir de Dilthey, Misch tinha reconhecido no "livre distanciamento de si mesmo" uma estrutura fundamental da vida humana, sobre a qual repousa toda a compreensão, a reflexão ontológica radical de Heidegger procura cumprir a tarefa de esclarecer essa estrutura da pre-sença mediante uma "analítica transcendental da pre-sença". Revelou o caráter de projeto que reveste toda compreensão e pensou a própria compreensão como o movimento da transcendência, da ascensão acima do ente. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Isso representa uma provocação para a hermenêutica tradicional. É verdade que na língua alemã a compreensão (Verstehen) designa também um saber fazer prático ("er versteht nicht zu lesen" "ele não entende ler", o que significa tanto como: "ele fica perdido na leitura", ou seja, não sabe ler). Mas isso parece muito diferente do compreender orientado cognitivãmente no exercício da ciência. Obviamente, se se olha mais detidamente, surgem traços comuns: nos dois significados aparece a ideia de conhecer, entender do assunto. E mesmo aquele que "compreende" um texto (ou mesmo uma lei) não somente projetou-se a si mesmo a um sentido, comprendendo — no [265] esforço do compreender — mas que a compreensão alcançada representa o estado de uma nova liberdade espiritual. Implica a possibilidade de interpretar, detectar relações, extrair conclusões em todas as direções, que é o que constitui o entender do assunto dentro do terreno da compreensão dos textos. E isso vale também para aquele que entende de uma máquina, isto é, aquele que entende de como se deve tratar com ela, ou aquele que entende de um ofício, ferramenta: admitindo-se que a compreensão racional-finalista está sujeita a normas diferentes do que, p. ex., a compreensão de externalizações da vida ou textos, o que é verdade é que todo compreender acaba sendo um compreender-se. Enfim, também a compreensão de expressões se refere não somente à captação imediata do que contém a expressão, mas também ao descobrimento do que há para além da interioridade oculta, de maneira que se chega a conhecer esse oculto. Mas isso significa que a gente tem de se haver com isso. Nesse sentido vale para todos os casos que aquele que compreende se compreende, projeta-se a si mesmo rumo à possibilidades de si mesmo. A hermenêutica tradicional havia estreitado, de uma maneira inadequada, o horizonte de problemas a que pertence a compreensão. A ampliação que Heidegger empreende, para além de Dilthey, será, por essa mesma razão, fecunda também para o problema da hermenêutica. E verdade que já Dilthey havia rechaçado, para as ciências do espírito, os métodos das ciências da natureza, e que Husserl havia qualificado de "absurda" a aplicação do conceito natural-científico de objetividade às ciências do espírito, estabelecendo a relatividade essencial de todo mundo histórico e de todo conhecimento histórico. Porém agora torna-se visível pela primeira vez a estrutura da compreensão histórica em toda sua fundamentação ontológica, sobre a base da futuridade existencial da pre-sença humana. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Mas o que importa agora, naturalmente, é compreender corretamente essa reiterada constatação. Essa constatação não significa uma mera "homogeneidade" do conhecedor e do conhecido, sobre o que se poderia alicerçar a especificidade da transposição psíquica, como "método" das ciências do espírito. Nesse caso a hermenêutica histórica tornar-se-ia uma parte da psicologia (no que, de fato, Dilthey pensava). Na verdade, a adequação de todo conhecedor ao conhecido não se baseia no fato de que ambos possuam o mesmo modo de ser, mas que receba seu sentido da especificidade do modo de ser que é comum a ambos. E esta consiste em que nem o conhecedor nem o conhecido estão simplesmente dados "onticamente", mas "historicamente", isto é, são do mesmo modo de ser que a historicidade. Nesse sentido, como dizia o conde Yorck, tudo depende da "diferença genérica entre o ôntico e o histórico". Quando o conde Yorck faz frente ao conceito da "homogeneidade" com o conceito da "pertença", torna-se claro o problema que somente Heidegger desenvolveu em toda a sua radicalidade: o fato de que somente fazemos história na medida em que nós mesmos somos "históricos", significa que a historicidade da pre-sença humana em toda a sua mobilidade do atender e do esquecer é a condição de possibilidade de atualização do vigor-de-ter-sido, como tal. O que a princípio parecia somente uma barreira que atrapalhava o conceito usual de ciência e método, ou uma condição subjetiva de acesso ao conhecimento histórico, passa agora a ocupar o lugar central de um questionamento fundamental. A pertença é condição para o sentido originário do interesse histórico, não porque a eleição de temas e o questionamento estejam submetidos a motivações subjetivas e extracientíficas (nesse caso a pertença não seria mais um caso especial de dependência emocional do tipo da simpatia), mas porque a pertença a tradições pertence à finitude histórica da pre-sença tão originária e essencialmente como seu estar-projetado para possibilidades futuras de si mesmo. Foi com razão que Heidegger se manteve firme na afirmação de que aquilo que ele chama de estar-lançado (Geworfenheit), e o que é projeto, encontra-se numa pertença mútua. Assim, [267] não existe compreensão nem interpretação em que não entre em funcionamento a totalidade dessa estrutura existencial, mesmo que a intenção do conhecedor seja apenas a de ler "o que está aí", e de extrair das fontes "como realmente foi". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O problema epistemológico deve ser colocado aqui de uma forma fundamentalmente diferente. Já mostramos acima que Dilthey chegou a compreender isso, porém, não conseguiu superar os liames que o fixavam à teoria do conhecimento tradicional. Seu ponto de partida, a interiorização das "vivências", não pode construir a ponte para as realidades históricas, porque as grandes realidades históricas, sociedade e estado, são sempre, na verdade, determinantes prévios de toda "vivência". A auto-reflexão e a autobiografia — pontos de partida de Dilthey — não são fatos primários e não bastam como base para o problema hermenêutico, porque por eles a história é reprivatizada. Na realidade, não é a história que pertence a nós mas nós é que a ela pertencemos. Muito antes de que nós compreendamos a nós mesmos na reflexão, já estamos nos compreendendo de uma maneira auto-evidente na família, na sociedade e no Estado em que vivemos. A lente da subjetividade é um espelho deformante. A auto-reflexão do indivíduo não é mais que uma centelha na corrente cerrada da vida histórica. Por isso os preconceitos de um indivíduo são, muito mais que seus juízos, a realidade histórica de seu ser. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Schleiermacher distingue nesse círculo hermenêutico do todo e da parte um aspecto objetivo e um aspecto subjetivo. Tal como cada palavra forma parte do nexo da frase, cada texto forma parte do nexo da obra de um autor, e esta forma parte, por sua vez, do conjunto do correspondente gênero literário e mesmo de toda a literatura. Mas, por outro lado, o mesmo texto pertence, como manifestação de um momento criador, ao todo da vida da alma de seu autor. A compreensão acaba acontecendo, a cada caso, a partir desse todo, de natureza tanto objetiva como subjetiva. No que se relaciona com essa teoria, Dilthey falará de "estruturas" e da "concentração em um ponto central", a partir do qual se produz a compreensão do todo. Com isso ele transporta ao mundo histórico, como já dizíamos, o que desde sempre tem sido um fundamento de toda interpretação textual: que cada texto deve ser compreendido a partir [297] de si mesmo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Entretanto, é evidente que hermenêutica e historiografia não são inteiramente a mesma coisa. Na medida em que aprofundamos um pouco as diferenças metodológicas que as separam, poderemos discernir a sua aparente comunidade e reconhecer sua verdadeira comunidade. O historiador se relaciona diferentemente com os textos transmitidos, na medida em que procura conhecer através deles um trecho do passado. Por isso busca completar e controlar o texto com outras tradições [341] paralelas. Ele considera como que uma debilidade do filólogo o fato deste olhar para seu texto como uma obra de arte. Uma obra de arte é um mundo completo que basta a si próprio. O interesse histórico, porém, não conhece esta auto-suficiência. Dilthey já havia sentido, face a Schleiermacher, que "a filologia gostaria de encontrar em toda parte uma existência acabada em si mesma". Quando uma obra literária transmitida chega a impressionar o historiador, este fato não pode ter para ele significado hermenêutico algum. Basicamente ele não pode entender-se a si mesmo como destinatário do texto, nem sujeitar-se à sua pretensão. As perguntas que dirige ao texto se referem, antes, a algo que o texto não oferece por si mesmo. E isto vale inclusive para aquelas formas de tradição que pretendem ser por si mesmas representação histórica. Também o historiador tem de ser submetido à crítica histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Seja como for, isso não quer dizer que compartilhamos a atitude hermenêutica da escola histórica, cujos questionamentos apresentamos mais acima. Havíamos mencionado, então, o predomínio do esquema filológico na autocompreensão histórica, e mostramos na fundamentação diltheyana das ciências do espírito até que ponto a verdadeira intenção da escola histórica de conhecer a história como realidade, e não como mero desenvolvimento de nexos de ideias, não pôde impor-se realmente. De nossa parte, não afirmamos em absoluto no sentido de Dilthey de que todo acontecer componha uma configuração de sentido tão acabada como a de um texto legível. Se denominamos a historiografia de uma filologia em grande escala, isso não quer dizer que aquela deva ser entendida como história do espírito. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Não podemos tomar esta questão suficientemente a sério, se pensarmos a concepção histórica do mundo e seu desenvolvimento desde Schleiermacher até Dilthey. O fenômeno é sempre o mesmo. A exigência da hermenêutica somente parece se satisfazer na infinitude do saber, da mediação pensante da totalidade da tradição com o presente. Esta se apresenta baseada no ideal de um Aufklärung total, da ruptura definitiva dos limites de nosso horizonte histórico, da subsunção da finitude própria na infinitude do saber, em uma palavra, na onipresença do espírito que sabe historicamente. Não tem maior importância que no século XIX o historicismo não tenha reconhecido expressamente esta consequência. Em última instância o historicismo só encontra sua legitimação na posição de Hegel, ainda que os historiadores, animados pelo pathos da experiência, tenham preferido apelar a Schleiermacher e a Wilhelm von Humboldt. Mas nem um nem outro pensaram realmente até o final sua própria posição. Por muito que acentuassem a individualidade, a barreira da estranheza que a nossa compreensão tem que superar, a compreensão só alcança, em definitivo, sua perfeição, e a ideia da individualidade só encontra sua fundamentação, numa consciência infinita. É a inclusão panteísta de toda individualidade no absoluto o que torna possível o milagre da compreensão. Assim, também aqui o ser e o saber se interpretam [348] mutuamente no absoluto. Nem o kantismo de Schleiermacher nem o de Humboldt representam, pois, uma afirmação autônoma e sistemática face à perfeição especulativa do idealismo na dialética absoluta de Hegel. A crítica à filosofia da reflexão, pela mesma forma que alcança a Hegel, alcança a eles também. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

E assim, surge a questão de se saber até que ponto a superioridade dialética da filosofia da reflexão corresponde a uma verdade pautada na coisa ou até que ponto gera tão-somente uma aparência formal. Pois a argumentação da filosofia da reflexão não pode acabar ocultando que a crítica contra o pensamento especulativo, que é exercida do ponto de vista da limitada consciência humana, contém algo de verdade. Isso se mostra muito particularmente nas formas epigônicas do idealismo, por exemplo, na crítica neokantiana da filosofia da vida e da filosofia existencial. Em 1920, Heinrich Rickert, argumentando fundamentalmente a "filosofia da vida", não conseguiu alcançar o efeito de Nietzsche e de Dilthey, que então começava a exercer sua grande influência. Mesmo que se mostre claramente a contraditoriedade interna de qualquer relativismo, as coisas não deixam de ser como as descreve Heidegger: todas essas argumentações triunfais têm sempre algo de uma tentativa de ataque de surpresa. Por mais convincentes que pareçam, passam ao largo face ao verdadeiro núcleo das coisas. Servindo-se delas se tem razão, e, no entanto, não expressam nenhuma evidência superior, que fosse fecunda. É uma argumentação irrefutável que a tese do ceticismo ou do relativismo pretende ser verdade e, por conseguinte, se auto-suprime. Mas, o que se consegue com isso? O argumento da reflexão, que alcança esse fácil triunfo, ricocheteia contra aquele que o emprega, na medida em que torna suspeito o valor de verdade da reflexão. O que se alcança através dessa argumentação não é a realidade do ceticismo ou de um relativismo capaz de dissolver qualquer verdade, mas a pretensão de verdade do argumentar formal em geral. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Isso é exatamente o que se tem de reter para a análise da consciência da história efeitual: que ela tem a estrutura da experiência. Por paradoxal que seja, o conceito da experiência me parece um dos menos que possuímos. Devido ao papel orientador que desempenha na lógica da indução, para as ciências da natureza, viu-se submetido a uma esquematização epistemológica que me parece encurtar amplamente seu conteúdo originário. Gostaria de recordar que já Dilthey acusava, no empirismo inglês, uma certa falta de formação histórica. Para nós, que detectamos em Dilthey uma vacilação não explícita entre o motivo da "filosofia da vida" e o da teoria da ciência, essa nos parece somente uma crítica pela metade. De fato, a deficiência da teoria da experiência, que constatamos até hoje, e que afeta também a Dilthey, consiste em que ela está integralmente orientada para a ciência e, por conseguinte, não percebe a historicidade interna da experiência. O escopo da ciência é objetivar a experiência até que fique livre de qualquer momento histórico. No experimento natural-científico consegue-se isso através do modo de seu aparato metodológico. Algo parecido realiza também o método histórico-crítico nas ciências do espírito. Num e noutro caso a objetividade ficaria garantida pelo fato de que as experiências que jazem ali poderiam ser repetidas por qualquer pessoa. Tal como na ciência da natureza os experimentos têm de ser possíveis de comprovação posterior, também nas ciências do espírito o procedimento completo tem que ser passível de controle. Nesse sentido, na ciência não pode restar lugar para a historicidade da experiência. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

No terreno hermenêutico o correlato dessa experiência do tu é o que se costuma chamar a consciência histórica. A consciência histórica tem notícia da alteridade do outro e do passado em sua alteridade, tal como a compreensão do tu tem notícia do mesmo como pessoal. No outro do passado não busca o caso de uma regularidade geral, mas algo historicamente único. Mas, na medida em que nesse reconhecimento procura elevar-se por inteiro acima de seu próprio condicionamento, fica aprisionado na aparência dialética, pois o que realmente procura é tornar-se ao mesmo tempo senhor do passado. Isto não precisa acontecer nos moldes da pretensão especulativa de uma filosofia da história universal — pode também rebrilhar como o ideal do esclarecimento consumado, que ilumina o caminho de experiência das ciências históricas, como vimos, por exemplo, em Dilthey. Já revelamos a aparência dialética que a consciência histórica produz, e que é correlata da aparência dialética da experiência consumada no saber, quando na nossa análise da consciência hermenêutica descobrimos que o ideal . do esclarecimento histórico é algo irrealizável. Aquele que se crê seguro na sua falta de preconceitos, porque se apoia na objetividade de seu procedimento e nega seu próprio condicionamento histórico, experimenta o poder dos preconceitos que o dominam incontroladamente como uma vis a tergo. Aquele que não quer conscientizar-se dos preconceitos que o dominam acaba considerando erroneamente o que vem a se mostrar sob eles. É como na relação entre o eu e o tu. Aquele que sai reflexivamente da reciprocidade de uma tal relação altera-a e destrói sua vinculatividade moral. Da mesma maneira, aquele que sai reflexivamente da relação vital para com a tradição destrói o verdadeiro sentido desta. A consciência histórica que quer compreender a tradição não pode abandonar-se à forma metódico-crítica de trabalho com que se aproxima das fontes, como se ela fosse suficiente para proteger contra a intromissão dos seus próprios juízos e preconceitos. Verdadeiramente tem que pensar também a própria historicidade. Estar na tradição não [367] restringe a liberdade do conhecer, mas a faz possível, como já o formulamos. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A linguagem do intérprete é certamente um fenômeno secundário da linguagem, comparado, por exemplo, com a imediatez do entendimento inter-humano ou com a palavra do poeta. É assim que, por fim, volta a referir-se a algo linguístico. E, não obstante, a linguagem do intérprete é ao mesmo tempo a manifestação abrangente da linguisticidade em geral, que encerra em si todas as formas de uso e formas linguísticas. Havíamos partido dessa linguisticidade abrangente da compreensão, de sua referência à razão em geral, e agora vemos como se reúne sob esse aspecto todo o conjunto de nossa investigação. O desenvolvimento do problema da hermenêutica desde Schleiermacher, passando por Dilthey e chegando a Husserl e Heidegger, representa, como já expusemos, a partir do ponto de vista histórico, uma confirmação do que agora resultou: que a auto-reflexão metodológica da filologia tende necessariamente a um questionamento sistemático da filosofia. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Objetivamente, parti de Dilthey e do problema da fundamentação das ciências do espírito, assumindo uma distância crítica frente a ele. Foi com muita dificuldade que alcancei, nesse percurso, a universalidade do problema hermenêutico, que me ocupou desde o princípio. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Não nos importa falar de um sentido puramente linguístico da interpretação gramatical, como se ela pudesse existir sem a interpretação psicológica. O problema hermenêutico mostra-se justamente na interpenetração da interpretação gramatical pela interpretação psicológica individualizante, na qual entram em jogo os condicionantes complexos do intérprete. Reconheço que, para isso, deveria ter observado de modo mais contundente a dialética e estética de Schleiermacher, que Frank invoca com razão. Teria feito mais justiça à riqueza da compreensão individualizante em Schleiermacher. No entanto, logo após o aparecimento de Verdade e método, consegui recuperar alguma coisa disto. Meu interesse não era apreciar Schleiermacher em todas as suas dimensões, mas caracterizá-lo como o propulsor de uma história efeitual, que se inicia justamente com Steinthal e que ao alcançar o cimo teórico-científico com Dilthey passa a dominar de maneira indiscutível. A meu ver, isso restringiu o problema hermenêutico, e esta história efeitual não é uma ficção. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Ao sair das profundezas do hegelianismo epigonal e do materialismo acadêmico da metade do século, a filosofía passou a se afirmar sob o signo de Kant e de seu questionamento epistemológico pela fundamentação da ciência. Na Crítica da razão pura, Kant respondeu à questão pela possibilidade de uma ciência pura da natureza. Isso agora foi ultrapassado na medida em que se pergunta pela possibilidade da ciência da história. Ao lado da Crítica da razão pura, procurou-se colocar uma Crítica da razão histórica (para usar uma expressão de Wilhelm Dilthey). O problema da história apresentou-se como o problema da ciência da história. Como esta adquire seu direito de ser uma teoria do conhecimento? Perguntar desta forma, porém, significou medir a [29] ciência da história nos moldes das ciências da natureza. O livro clássico da lógica neokantiana da história traz um título bem característico: "Os limites da formação conceitual das ciências da natureza". Nele, Heinrich Rickert procura demonstrar o que caracteriza o objeto da história, e porque na história em lugar de se procurar leis universais, como na ciência da natureza, reconhece-se o singular, o individual. O que é que transforma um mero fato numa realidade histórica? A resposta é: Seu significado, isto é, sua relação com o sistema dos valores culturais humanos. Neste questionamento, apesar de todas as restrições, o modelo de conhecimento das ciências da natureza continua sendo o determinante. O problema da história resume-se inteiramente no problema epistemológico sobre a possibilidade de uma ciência da história. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Wilhelm Dilthey, professor de filosofia em Berlim durante muitos decênios, na Alemanha guilhermina, foi o famoso e reconhecido historiógrafo do espírito alemão que descobriu e pensou com muita clarividência o problema da historicidade, na época do predomínio da teoria do conhecimento. Seus contemporâneos e até muitos de seus alunos e amigos viram nele apenas o genial historiador, o herdeiro digno da grande tradição historiográfica alemã, que contribuiu com uma nova e esplêndida produção no âmbito da história da filosofia e da história do espírito. Seus escritos dispersaram-se por muitos lados, tendo sido publicados somente como artigos e tratados acadêmicos. Depois da Primeira Guerra Mundial, porém, apareceu sua obra completa em muitos volumes, que se multiplicaram em virtude dos importantes trabalhos póstumos. Desde então, Dilthey começou a ser visto como filósofo, como pensador do problema da historicidade. Ortega y Gasset foi tão longe nesse sentido, chegando a considerá-lo o maior pensador da segunda metade do século XIX. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Decerto, precisamos aprender a ler Dilthey contra sua própria [30] concepção de método. Aparentemente, os trabalhos de Dilthey partilhavam o mesmo ponto de partida que questionamento epistemológico neokantiano. Também ele procurou ajudar as ciências do espírito a encontrar uma fundamentação autônoma, filosófica, demonstrando seus princípios próprios. Concebeu a base de todas as ciências do espírito numa psicologia descritiva e analítica. Num trabalho clássico de 1892, intitulado Ideias para uma psicologia descritiva e analítica, Dilthey supera a metodologia das ciências naturais, no âmbito da psicologia, fornecendo assim às ciências do espírito sua própria consciência metodológica. Desta forma, ele também parece estar dominado pelo questionamento epistemológico, que pergunta pela possibilidade da ciência, e não pelo que é a história. Na verdade, porém, Dilthey não se restringe a refletir a respeito de nosso saber sobre a história, como acontece na ciência da história, mas pensa sobre o ser humano, que determina pelo seu próprio saber sobre sua história. Ele caracteriza o caráter fundamental da existência humana como "vida". Esta é para ele a realidade originária "nuclear", na qual também radica todo conhecimento histórico. Tudo que há de objetivo na vida humana repousa no trabalho da vida, formador de pensamento, e não num sujeito epistemológico. Arte, Estado, sociedade, religião, todos os valores, bens e normas incondicionais, que encontram sua consistência nesta esfera, provêm em última instância do trabalho da vida, formador de pensamento. Se estas realidades objetivas reivindicam uma validade incondicional, isso só pode ser esclarecido pela "limitação do horizonte do tempo", isto quer dizer, pela falta de um horizonte histórico. Aquele que conhece história sabe, por exemplo, que o homicídio não é incondicionalmente um delito maior do que o roubo. Ele sabe que o antigo direito germânico punia o roubo de modo mais severo do que o homicídio, por ser, aquele, covarde e pouco viril. Somente quem não sabe disto é que pode acreditar numa hierarquia absoluta das coisas. O Iluminismo histórico leva à ideia da condicionalidade do incondicional, à ideia da relatividade histórica. Nem por isso, Dilthey torna-se o representante de um relativismo histórico, pois o seu pensamento não se ocupa da relatividade, mas da realidade "nuclear" da vida, que serve de fundamento para toda relatividade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Como se cumpre esse trabalho da vida, formador de pensamentos? Dilthey fundamenta sua filosofia na experiência interna da compreensão, a qual nos abre a realidade que resiste ao conceito. Todo conhecimento histórico é uma tal compreensão. A compreensão não é, porém, somente o procedimento da ciência histórica, mas uma determinação fundamental do ser humano. Isso repousa sobre o fato de termos vivências, que nos são conscientes. Essas vivências configuram-se na "recordação" para a compreensão significativa. Dilthey apoiou-se aqui no pensamento romântico, ao reconhecer que esta compreensão significativa está estruturada [31] de modo bem diferente do que o procedimento cognitivo das ciências da natureza. Aqui não se transita de um elemento para outro e deste para o próximo, para com isso abstrair-lhe o comum. Antes, a vivência singular já é sempre uma totalidade significativa, um nexo reunitivo. E por isso a vivência singular constitui uma parte da totalidade do decurso da vida. Apesar disso, seu significado está referido a essa totalidade de um modo todo próprio. Não é a última coisa vivenciada por alguém que consuma e determina o significado do nexo de vida. O sentido de um destino de vida é, antes, uma totalidade própria que se forma não a partir do final, mas de um centro formador de sentido. O significado do nexo não se forma em torno da última vivência, mas em torno da vivência decisiva. Um instante pode ser decisivo para toda uma vida. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Apoiando-se nas teorias românticas, Dilthey explicita essa relação recorrendo à compreensão da música. É verdade que uma melodia é uma sequência de tons singulares; no entanto, a configuração da melodia não se constrói como se ela passasse a existir apenas com o ressoar do último tom. Antes, há também aqui, temas significativos, de cujo centro a estrutura do todo se realiza e congrega numa unidade. Pode ser que o sentido pleno da história só se consume na história universal. Nesse sentido, Ernst Troeltsch formulou certa vez esse interesse de Dilthey com a seguinte expressão: "Da relatividade para a totalidade". Mas também aqui é decisivo o fato de a totalidade não ser o todo consumado da história que se estende até o presente, mas de construir-se a partir de um centro, a partir de uma significação centralizadora. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Mas esse nexo significativo, assim formado, é ao mesmo tempo um nexo operativo, isto é, não se forma primeiramente na compreensão, mas já está operando igualmente como um nexo de forças. A história é sempre conjuntamente significação e força. Dilthey mostra de certo modo que cada época representa um nexo de significação unitário e consistente. Chama esse nexo de "estrutura" do tempo. Faz sentido portanto dizermos que se deve compreender todos os fenômenos desse tempo a partir de sua estrutura. Para a compreensão, não é suficiente reconhecer aqui meras influências ou repercussões de outros tempos ou circunstâncias. Só experimenta uma influência aquele que já está preparado e receptivo para ela. A estrutura é justamente esta receptividade. Seria uma falsa unilateralidade querermos prescindir totalmente da pergunta por essas linhas da influência histórica. Em última instância, experimentar influências depende também de que aquilo que exerce essa influência esteja próximo e tenha atuação. A história não é [32] apenas um nexo de significações, mas um nexo real de forças. Vamos esclarecer isso novamente no exemplo do destino da vida humana. É certo que um destino humano realiza-se segundo a lei que obedece. É certo também que as circunstâncias co-determinam esse destino; Daimon e Kairos, a predeterminação e a ocasião atuam conjuntamente. A história sempre é concomitantemente tanto sentido quanto realidade, tanto significação quanto força. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Não é por acaso que Dilthey trabalha com o exemplo da compreensão estética. O que sustenta toda a sua doutrina do ser histórico e de sua atuação pela força e pelo significado é, pois, a pressuposição de que há uma distância real da compreensão e de que é possível haver soberania da razão histórica. Assim como a compreensão estética se realiza na distância compreensiva, também a compreensão da história fundamenta-se nessa distância. E justamente isto que Dilthey concebe como o movimento da própria vida, que a reflexão surge a partir dela. Dito negativamente, isto significa que a vida precisa libertar-se do conhecimento por conceitos, a fim de formar suas próprias objetivações. Será que existe essa liberdade da compreensão? Essa crença na liberação pelo esclarecimento histórico fundamenta-se de forma decisiva num momento estrutural da autoconsciência histórica: o fato de a autoconsciência ser concebida num processo infinito e irreversível. Já Kant e o idealismo haviam partido desse ponto: todo saber sobre si próprio, passível de se alcançar, pode tornar-se objeto de um novo saber. Se eu sei, posso também sempre saber que sei. Esse movimento da reflexão é infinito. Para a autoconsciência histórica, essa estrutura significa que, na própria busca de sua autoconsciência, o espírito transforma constantemente seu ser. Ao conceber a si mesmo, já se transformou num outro, diferente do que era. Esclareçamos isto num exemplo: Quando alguém se torna consciente da raiva que o assalta, essa autoconsciência já é sempre uma transformação, quando não, uma superação dessa raiva. Hegel descreveu esse movimento da autoconsciência em direção a si mesma, na Fenomenologia do espírito. Enquanto Hegel considerava a autoconsciência filosófica como o fim absoluto desse movimento, Dilthey refutou essa reivindicação metafísica considerando-a dogmática. Com isto, abrem-se-lhe as portas ao horizonte ilimitado da razão histórica. A compreensão histórica significa um constante crescimento da autoconsciência, uma constante ampliação do horizonte da vida. Esse processo não pode ser brecado nem poderá retroceder. A universalidade de Dilthey como historiador do espírito repousa justamente nessa ampliaição infinita da vida na compreensão. Dilthey é o pensador do» Iluminismo histórico. A consciência histórica representa o fim cLa metafísica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Há muitos problemas, pelos quais a fé na ilimitação da razão histórica pode se tornar questionável. Refiro-me à questão das constantes naturais do espírito histórico, suas pressuposições biológicas, e à questão do começo da história. Será que a história só principia realmente onde a humanidade começa transmitir uma consciência de si própria? Será que as decisões que fazem história já de há muito não a precederam? Haverá um feito de maior significado do que a invenção do arado, que precede a qualquer tempo histórico? E o que é o mito, no qual os povos históricos se espelham, bem antes de adentrar seu destino histórico? Desde que a investigação filosófica deu alguns passos decisivos para além de Dilthey, o próprio problema a respeito da compreensão histórica se nos revela, hoje, a partir de uma nova luz. Martin Heidegger, em Ser e tempo, levou a historicidade da pre-sença (Dasein) humana a contextos fundamentais de questionamento. A problemática da história viu-se assim liberada das pressuposições ontológicas, sob as quais era vista também por Dilthey. Demonstrou que o ser não significa sempre e necessariamente objetividade (Gegenständlichkeit), mas que importa sobretudo "elaborar a diferença genérica entre o [34] ôntico e o histórico". O ser da pre-sença humana é um ser histórico. Isso significa, porém, que não está dado como a existência dos objetos da ciência da natureza, mas de modo mais vulnerável e oscilante do que estes. A historicidade, isto é, a temporalidade é ser em sentido mais originário do que o ser simplesmente dado, que a ciência natural busca conhecer. Há uma razão histórica, somente porque a pre-sença humana tem caráter temporal e histórico. Há uma história do mundo somente porque esta pre-sença temporal do homem "tem um mundo". Há uma cronologia somente porque a própria pre-sença histórica do homem é tempo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

A partir desta perspectiva, a teoria de Dilthey descobre um novo aspecto. De imediato pode-se perguntar o que se entende propriamente por liberdade da compreensão. Não será uma mera aparência? Dilthey acredita ser possível liberar a compreensão do conhecimento que se dá por meio de conceitos. Mas será que com isso ele não se referia aos conceitos de uma metafísica desacreditada? Toda nossa compreensão não permanece guiada por conceitos? A compreensão histórica vangloria-se de não ter preconceitos. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Surge aqui um segundo aspecto: A significação não se revela no distanciamento do elemento compreensivo como pensava Dilthey, mas pelo fato de nós mesmos estarmos inseridos no nexo de efeitos da história. A compreensão histórica é ela própria, sempre, a experiência de um efeito e o prolongamento de sua efetividade. [35] Seu envolvimento prévio significa sua força histórica de produzir efeitos. Por isso, o que é historicamente significativo torna-se acessível de modo mais originário na plenitude da ação do que no compreender. A existência (Dasein) histórica guarda sempre uma situação, uma perspectiva e um horizonte. É um caso semelhante ao da pintura: A perspectiva, isto é, a ordenação de "proximidade" ou "distância" das coisas inclui um ponto de vista, que precisa ser levado em conta. Assim, entramos numa relação de ser com as coisas e fazemos parte de sua ordenação, à medida que com elas nos alinhamos. Só assim torna-se representável a singularidade de um acontecimento, a plenitude do instante. A pintura pré-perspectivística, pelo contrário, mostra todas as coisas numa eternidade dilatada e pela ótica de um significado transcendente. A verdade histórica, correspondentemente, não é o transparecer de uma ideia, mas o vínculo de uma decisão irrepetível. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Acrescenta-se agora um terceiro aspecto, uma concepção que se tornou cada vez mais relevante para mim: A liberdade ilimitada da compreensão não é apenas uma ilusão, descoberta pela reflexão filosófica. Nós mesmos experimentamos esse limite da liberdade de compreensão sempre que procuramos compreender. E só pelo fato de a liberdade de compreensão precisar limitar-se que a compreensão consegue apreender o real com sucesso, ou seja, ali onde renuncia a si própria, isto é, diante do incompreensível. Com isso, não me refiro a nenhuma modéstia piedosa frente ao insondável, mas a um elemento de nossa experiência ética da vida, conhecida por todos nós: a compreensão na relação entre eu e tu. A experiência ensina que nada mais impede um verdadeiro entendimento entre um eu e um tu do que a pretensão de uma das partes de compreender o outro em seu ser e em sua opinião. Ser de antemão "compreensivo" diante de todas as réplicas do outro nada mais é que tirar o corpo fora do postulado feito pelo outro. É um modo de não se deixar dizer nada. Onde porém, alguém está disposto a escutar o que o outro tem a dizer, onde se deixa espaço para o postulado do outro, sem compreendê-lo de antemão e com isso limitá-lo, ali se adquire um autoconhecimento autêntico. É justamente neste ponto que se lhe revela algo. Não é portanto num compreender soberano que se dá uma real ampliação desse nosso eu, confinado à estreiteza da vivência, como pensa Dilthey, mas antes no encontro com o incompreensível. Talvez não compreendamos nunca tão bem nosso próprio ser histórico como quando somos atingidos por um halo de mundos históricos totalmente estranhos. O caráter fundamental do ente histórico é o de ser revelador, ser significativo, isso, porém, no sentido ativo da palavra. E ser para a história é deixar que algo tenha significado. Um vínculo autêntico entre eu e tu só pode surgir desta forma; aquilo que vincula o destino histórico entre nós e a história só pode formar-se desta forma. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.

Esta tese é conhecida como o ponto de partida da autoconstrução hegeliana da razão, pela dialética. "A forma da proposição não é adequada para expressar verdades especulativas", pois a verdade é o todo. No entanto, esta crítica do enunciado e da proposição, elaborada por Hegel, está ela mesma referida a um ideal da possibilidade de enunciação total, ou seja, está referida à totalidade do processo dialético que se torna conhecido no saber absoluto. Um ideal que leva radicalmente a efeito mais uma vez o princípio grego. Não é em Hegel, mas primeiramente na perspectiva das ciências da experiência histórica, que se impõem contra Hegel, que se pode determinar realmente o limite imposto à lógica do enunciado, a partir dela mesma. Assim, também os trabalhos de Dilthey, dedicados à experiência do mundo histórico, desempenharam um papel importante no novo enfoque de Heidegger. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

Foi aqui que a questão da essência da verdade, colocada por Heidegger, realmente ultrapassou o âmbito da problemática da subjetividade. Seu pensamento percorreu o caminho desde o "instrumento", passando pela "obra" e chegando à "coisa", um caminho que ultrapassou amplamente a questão da ciência e inclusive a das ciências históricas. É tempo de não esquecermos que a historicidade do ser vige mesmo onde a pre-sença (Dasein) tem consciência de si e onde se comporta historicamente como ciência. A hermenêutica das ciências históricas, desenvolvida desde Schleiermacher até Dilthey no romantismo e na escola histórica, assume uma tarefa totalmente nova, quando na esteira de Heidegger busca se desprender da problemática da subjetividade. O único e pioneiro nessa linha foi Hans Lipps, cuja lógica hermenêutica, mesmo não oferecendo uma verdadeira hermenêutica, libera com êxito a vinculabilidade da linguagem do nivelamento lógico. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

Schleiermacher diferenciou esse círculo hermenêutico da parte e do todo, tanto no seu aspecto objetivo quanto subjetivo. Assim como a palavra singular pertence ao contexto da frase, também o texto singular pertence ao contexto da obra de seu autor, e este ao todo do respectivo gênero literário ou da respectiva literatura. Por outro lado, enquanto manifestação de um momento criador, o mesmo texto pertence ao todo da vida espiritual de seu autor. A compreensão só pode realizar-se a cada vez neste todo objetivo ou subjetivo. Com base nessa teoria, Dilthey vai falar de "estrutura" e de "centralização num ponto médio", a partir de onde se dá a compreensão do todo. Com isso, ele transfere para o mundo histórico o que, de há muito, é um princípio fundamental de toda interpretação [58]: que é preciso compreender um texto a partir de si próprio. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

Na esteira de Schleiermacher e com base na teoria romântica da criação inconsciente do gênio, foi sobretudo a interpretação psicológica que passou a constituir a base teorética, cada vez mais decisiva, do conjunto das ciências do espírito. Isso mostra-se sumamente instrutivo já em Steinthal e em Dilthey culmina numa refundamentação sistemática da ideia das ciências do espírito com base numa "psicologia descritiva e analítica". Schleiermacher ainda não pensa, certamente, na fundamentação filosófica das ciências históricas. Ele se encaixa muito melhor no contexto de pensamento do idealismo transcendental fundado por Kant e Fichte. Em especial a obra de Fichte, Grundlage der gesamten Wissenschaftslehre (Princípios da teoria geral da ciência), alcançou uma significação epocal quase igual à Crítica da razão pura. Como já indica o título, trata-se de deduzir todo saber a partir de um "princípio supremo" unitário, a espontaneidade da razão (Fichte diz "força do ato" [Tathandlung] em lugar de "fato" [Tatsache]). Esta conversão do idealismo "crítico" de Kant para o idealismo "absoluto" torna-se a base para todos os seus sucessores: Schiller e Schleiermacher, Schelling, Friedrich Schlegel e Wilhelm von Humboldt — chegando até Boeckh, Ranke, Droysen e Dilthey. Erich Rothaker, em particular, demonstrou que, apesar de rechaçar a construção apriorística da história do mundo no estilo de Fichte e Hegel, a "escola histórica" comunga com a base teórica da filosofia idealista. As preleções do famoso filólogo August Boeckh sobre a "Enciclopédia das ciências filológicas" foram muito influentes. Ali, Boeckh definiu a tarefa da filologia como o "conhecer do conhecido". Com isso encontrou-se uma boa fórmula para expressar o caráter secundário da filologia. O sentido normativo da literatura clássica, redescoberto pelo humanismo, e que motivou primariamente a imitatio, empalideceu e tornou-se indiferença histórica. Partindo da tarefa fundamental desse "compreender", Boeckh distinguiu os diversos modos de interpretação em gramatical, segundo o gênero literário, histórico-real e psicológico-individual. Esse foi o ponto que Dilthey conectou com sua psicologia compreensiva. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

A orientação "epistemológica" já havia mudado, especialmente sob a influência da "lógica indutiva" de J.St. Mill. Quando Dilthey defendeu a ideia de uma psicologia "compreensiva", contra a psicologia experimental sustentada por Herbart e Fechner, já partilhava do ponto de partida geral da "experiência", sustentado [100] pelo "princípio da consciência" e do conceito de vivência. Também lhe serviram de constante advertência tanto o pano de fundo histórico-filosófico e histórico-teológico que alicerçava a lúcida historiografia do historiador J.G. Droysen, como a crítica acirrada que fazia seu amigo, o luterano especulativo Yorck von Wartenburg, ao historicismo ingênuo de sua época. Ambos contribuíram para que a evolução tardia de Dilthey tomasse um novo rumo. O conceito de vivência, que representou para ele a base psicológica para sua hermenêutica, foi complementado pela distinção entre a expressão e significado. Essa complementação ocorreu em parte pela influência da crítica ao psicologismo desenvolvida por Husserl nos "prolegomena" às suas Investigações lógicas e de sua teoria platonizante do significado, e em parte pelo realinhamento com a teoria hegeliana do espírito objetivo, que Dilthey procede, sobretudo em virtude de seus estudos sobre a época da juventude de Hegel. Tudo isso produziu frutos no século XX. Os trabalhos de Dilthey foram prosseguidos por G. Misch, B. Groethuysen, E. Spranger, Th. Litt, J. Wach, H. Freyer, E. Rothacker, O. Bollnow, entre outros. O historiador jurídico E. Betti fez uma síntese da tradição idealista da hermenêutica desde Schleiermacher, chegando a Dilthey e seguindo mais adiante. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

O próprio Dilthey não levou a cabo a tarefa que o preocupava de conciliar teoricamente a "consciência histórica" com a pretensão de verdade da ciência. A fórmula de Troeltsch "da relatividade à totalidade", que deveria apresentar, na linha de Dilthey, a solução teórica do problema do relativismo permaneceu, como toda a obra de Troeltsch, ancorada no historicismo que se propunha a superar. E interessante notar-se que, mesmo em seus três volumes sobre o historicismo, Troeltsch faz constantes digressões com excursos históricos (brilhantes). Dilthey, ao contrário, na sua busca de encontrar uma constante atrás de toda relatividade, projetou uma teoria tipológica das concepções de mundo altamente influente, que deveria responder aos múltiplos aspectos da vida. Em parte, isso representou uma superação do historicismo, uma vez que a base determinante tanto desta superação como a de cada uma destas teorias tipológicas era a ideia de "concepção de mundo", isto é, de uma "atitude da consciência" que não se deixa reduzir a nada além de si mesma, uma postura só passível de ser descrita e comparada com outras concepções de mundo, e que deve ser assumida como um fenômeno de expressão da vida. O pressuposto dogmático irrefletido de Dilthey consistia em que se deve renunciar a um "querer conhecer por meio de conceitos" e portanto à pretensão de verdade da filosofia, em favor da "consciência histórica". Isto está a [101] um mundo de distância do lema de Fichte, tão mal compreendido, segundo o qual "o tipo de filosofia que se escolhe depende do tipo de homem que se é", um lema que apresenta uma confissão inequívoca do idealismo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Isso tornou-se muito claro nos seguidores de Dilthey: As tipologias pedagógico-antropológicas, psicológicas, sociológicas, de teoria da arte e históricas, que se difundiam na época, demonstraram, ad óculos, que sua fecundidade dependia sempre da dogmática nelas oculta e latente. Todas as tipologias de Max Weber, Spranger, Litt, Pinder, Kretschmer, Jaensch, Lersch, e outros, mostraram ter um valor de verdade limitado, que ainda assim chegaram a perder quando tentaram abarcar a totalidade dos fenômenos, ou seja, quando quiseram ser completas. Essa "ampliação" de uma tipologia em sentido de uma oniabrangência significa, por motivos intrínsecos, sua própria dissolução, isto é, a perda de seu núcleo dogmático de verdade. Mesmo Psychologie der Weltanschauungen (A psicologia das concepções de mundo), de Jasper, ainda não estava tão livre da problematicidade característica de toda tipologia inspirada em Max Weber e Dilthey, como pretendeu (e conseguiu) mais tarde sua Filosofia. O recurso conceitual à tipologia só pode ser legitimado, na verdade, de um ponto de vista extremamente nominalista. Mesmo a radicalidade nominalista do auto-ascetismo de Max Weber tinha seus limites e complementava-se pelo reconhecimento totalmente irracional e voluntarista de que cada um precisa escolher "seu Deus", aquele ao qual quer seguir. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

O novo impulso filosófico de Heidegger não fez sentir seus efeitos positivos apenas na teologia, mas rompeu sobretudo com a rigidez relativista e tipológica reinantes na escola de Dilthey. Deve-se a G. Misch ter liberado novamente os impulsos filosóficos de Dilthey confrontando-o com Husserl e Heidegger. Não obstante a sua construção do princípio filosófico que rege a filosofia da vida de Dilthey estabeleça uma oposição com relação a Heidegger, o retorno de Dilthey à perspectiva da "vida", ultrapassando a "consciência transcendental", representou um importante apoio para a elaboração filosófica de Heidegger. A publicação de diversos tratados dispersos de Dilthey, realizada por G. Misch e outros, nos volumes V-VIII, [103] assim como as instrutivas introduções de Misch, trouxeram a público pela primeira vez, nos anos 20, a obra filosófica de Dilthey, que havia sido encoberta por seus trabalhos históricos. O problema hermenêutico alcançou sua radicalização filosófica quando as ideias de Dilthey (e Kierkegaard) passaram a fundamentar a filosofia existencial. Foi quanto Heidegger formulou o conceito de uma "hermenêutica da facticidade", impondo — em contraposição à ontologia fenomenológica da essência, de Husserl — a tarefa paradoxal de interpretar a dimensão "imemorial" (Schelling) da "existência" e inclusive a própria existência como "compreensão" e "interpretação", ou seja, como um projetar-se para possibilidades de si próprio. Nesse momento, alcançou-se um ponto no qual o caráter instrumentalista do método, presente no fenômeno hermenêutico, teve de reverter-se à dimensão ontológica. "Compreender" não significa mais um comportamento do pensamento humano dentre outros que se pode disciplinar metodologicamente, conformando assim a um procedimento científico, mas perfaz a mobilidade de fundo da existência humana. A caracterização e ênfase que Heidegger atribui à compreensão como a mobilidade de fundo da existência culmina no conceito de interpretação, desenvolvido em sua significação teórica sobretudo por Nietzsche. Esse desenvolvimento está fundamentado na dúvida frente aos enunciados da autoconsciência, dos quais se deve duvidar melhor do que o fez Descartes, como diz expressamente Nietzsche. Em Nietzsche, o resultado dessa dúvida é uma modificação do sentido de verdade em geral. Com isso, o processo de interpretação transforma-se numa forma de vontade de poder, adquirindo assim uma significação ontológica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

E o que dizer do sentido e da interpretação de acontecimentos históricos? A consciência dos contemporâneos é de tal natureza [105] que aqueles que "vivenciam" a história não sabem como esta lhes acontece. Dilthey, pelo contrário, mantém-se até o fim fiel às consequências sistemáticas de seu conceito de vivência, como reza o modelo de biografia e autobiografia para a teoria formulada por Dilthey, acerca do contexto da história dos efeitos. Também a acirrada crítica feita por R.G. Collingwood à consciência metodológica positivista permanece presa à estreiteza subjetivista do problema, à medida que, lançando mão do instrumental dialético do hegelianismo de Croce com sua teoria do reenactment, fundamenta como caso modelar para a compreensão histórica a execução posterior de planos elaborados. Nesse ponto, Hegel foi mais consequente. Sua pretensão de se conhecer a razão na história fundamentava-se num conceito do "espírito", cujo traço essencial é dar-se "no tempo" e a determinação do conteúdo dar-se apenas por sua história. Decerto, também para Hegel, havia os "indivíduos que participam da história do mundo", por ele caracterizados como "encarregados do negócio do espírito universal", e cujas decisões e paixões coincidiam com o que "se dava no tempo". Esses casos excepcionais, porém, não definem para ele o sentido da compreensão histórica, sendo definidos como exceções a partir da concepção do filósofo acerca do que é o historicamente necessário. A saída que pretende atribuir ao historiador uma congenialidade com seu objeto, já tentada por Schleiermacher, certamente não traz resultado algum. Isso transformaria a história universal num espetáculo estético. Seria, por um lado, exigir demais do historiador e, por outro, subestimar sua tarefa de confrontar o próprio horizonte com o do passado. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Em todo trabalho filosófico do conceito encontra-se, portanto, uma dimensão hermenêutica, hoje em dia caracterizada de modo um tanto impreciso, com o termo "história do conceito". Esse não representa um esforço secundário e nem significa que, em vez de falarmos das coisas, falemos dos meios de entendimento que usamos para isso, mas constitui o elemento crítico no uso de nossos próprios conceitos. Tanto o afã do leigo em exigir definições inequívocas, quanto o fascínio pela univocidade de uma epistemologia unilateral e semântica desconhecem não só o que seja linguagem, mas também o fato de que a linguagem do conceito não pode ser inventada, mudada ao bel-prazer, usada e abandonada. A linguagem do conceito brota, muito ao contrario, do elemento no qual nos movemos como seres pensantes. O que encontramos na forma artificial da terminologia são apenas as cascas endurecidas dessa corrente viva do pensamento e da fala. Também essa se introduz e sustenta pelo acontecimento comunicativo que realizamos ao falar e onde se constrói compreensão e entendimento. Esse parece-me ser o ponto de convergência entre o desenvolvimento da filosofía analítica na Inglaterra e a hermenêutica. Essa correspondência é, porém, limitada. Assim como, no século XIX, Dilthey acusou o empirismo inglês de carência de formação histórica, o postulado crítico da hermenêutica que se baseia na reflexão histórica não consiste tanto em dominar a estrutura lógica dos modos de falar, como é [114] o caso por exemplo do ideal da filosofia "analítica", mas em apropriar-se dos conteúdos mediados pela linguagem, com todo o sedimento da experiência histórica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Sem dúvida não é fácil para a autoconsciência metodológica da investigação histórica firmar e manter esse aspecto do tema em questão, pois as ciências humanas já estão marcadas pela ideia moderna de ciência. Não obstante a crítica romântica ao racionalismo inerente ao Iluminismo tenha rompido com o predomínio do direito natural, os caminhos da investigação histórica concebem-se como passos rumo a um esclarecimento histórico total do homem a respeito de si próprio, tendo como consequência a dissolução dos últimos restos dogmáticos da tradição greco-cristã. O objetivismo histórico que corresponde a esse ideal tira sua força de uma ideia de ciência sustentada no subjetivismo filosófico da modernidade. A preocupação de Droysen foi defender-se contra esse subjetivismo. Todavia, foi somente com a crítica radical ao subjetivismo filosófico iniciada com o Ser e tempo, de Heidegger, que se pôde fundamentar filosoficamente a posição histórico-teológica de Droysen e apresentar no lugar de Dilthey, que se acha bem mais dependente do conceito moderno de ciência, o Conde York von Wartenburg como o verdadeiro interlocutor na herança do luteranismo. A partir do momento em que Heidegger deixa de considerar a historicidade da pre-sença como uma limitação de suas possibilidades de conhecimento e como uma ameaça ao ideal da objetividade científica para enquadrá-la de modo positivo na problemática ontológica, o conceito de compreensão, que a escola histórica havia elevado como método, transformou-se em conceito filosófico universal. Segundo Ser e tempo, a compreensão é o modo de realização da historicidade da própria pre-sença. O seu caráter de porvir, o caráter fundamental de projeto, conveniente à temporalidade da pre-sença, delimita-se pela outra determinação do estar-lançado, pela qual [125] não se designam apenas os limites de uma posse soberana de si mesmo mas abrem-se e determinam-se também as possibilidades positivas que são as nossas. O conceito de autocompreensão, legado em certo sentido pelo idealismo transcendental e ampliado em nossa época por Husserl, em Heidegger adquire pela primeira vez sua verdadeira historicidade, contribuindo assim também para os interesses teológicos na formulação da autocompreensão da fé. Pois o que pode liberar a autocompreensão da fé da falsa pretensão de uma certeza gnóstica de si mesma não é o soberano ser mediado por si mesmo da autoconsciência mas sim a experiência de si mesmo que acontece com cada um, e, do ponto de vista teológico, acontece particularmente no anúncio da pregação. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Para lembrar sumariamente qual o conteúdo que a reflexão filosófica sobre a história considerou no passado como essencial e que problemas assumiu como fundamentais, vou considerar a filosofia da história desenvolvida no sudoeste da Alemanha, ou seja, na escola neokantiana de Heidelberg (se é que se pode chamar de filosofia da história à teoria do conhecimento das ciências históricas) e a filosofia da história de Dilthey (se é que se pode chamar de filosofia da história à dissolução da metafísica em história). A reflexão epistemológica que o neokantismo de Heidelberg, em ultrapassando Kant, expandiu até a ciência historiográfica aborda a seguinte questão: O que distingue um objeto da investigação histórica e o modo de doação que constitui o objeto de investigação das ciências naturais. O que transforma um fato em fato histórico? VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.

Examinemos, por outro lado, Wilhelm Dilthey, o principal adversário dessa filosofia epistemológica da história desenvolvida pelo neokantismo, considerando Dilthey desde as consequências de seu próprio enfoque, que assume uma psicologia como ciência do espírito. Percebemos que ele de fato investiga a estrutura básica do curso histórico e tenta formular, mediante conceitos adequados, a continuidade do contexto histórico disperso no tempo. Em Dilthey o ponto de partida desta empresa é, porém, a psicologia, a autocerteza humana que reside em suas próprias vivências. Essa mesma certeza deverá legitimar também a continuidade do processo histórico. Essa autocerteza da continuidade de um processo encontra sua expressão mais característica e mesmo sua realização literária mais sólida na autobiografia. Aqui encontramos realmente a tentativa, numa visão retrospectiva, de extrair do conjunto das vivências, de sua sucessão e das constelações que presidiram a própria vida, uma espécie de estrutura de sentido: a unidade de um todo histórico-vital. E contudo inegável que a autobiografia só reflete isso que chamamos história em aspectos particulares. O que se compreende na autobiografia sempre se encontra na luz íntima da auto-interpretação do observador. O que se encadeia retrospectivamente numa unidade compreensível é o passado vivido e a história autovivenciada. Mesmo deixando de lado todo o difícil problema do autoconhecimento, não fica claro como dessa continuidade psicológica das vivências pode resultar a continuidade tão diversa e sustentada numa escala tão ampla dos nexos históricos. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.

Essa palavra, de há muito usada em sentido comum, foi cunhada [135] como conceito pelo Conde Yorck de Wartenburg, o amigo filósofo de Wilhelm Dilthey. Dilthey, por sua vez, colocou-a em circulação, até alcançar seu sentido mais acurado na filosofia de nosso século, com Heidegger e Jaspers. A novidade desse conceito de historicidade foi a inclusão de um enunciado ontológico. Já Yorck falava da "distinção genérica entre o ôntico e o histórico". O conceito de historicidade não enuncia algo sobre um nexo do acontecer que se deu realmente, mas sobre o modo de ser do homem que está na história e que somente pode ser compreendido a fundo em seu ser pelo conceito de historicidade. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 10.

Pretendo expor alguns pontos básicos que servem para mostrar a universalidade do ponto de vista que chamei de "hermenêutico". Tomei esse ponto de vista de um modo de falar desenvolvido por Heidegger em sua primeira fase, prosseguindo com isso uma perspectiva provinda originariamente da teologia protestante e apresentada no século XX por Dilthey. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

O fato de a hermenêutica filosófica ter como tarefa abrir a dimensão hermenêutica em toda sua amplitude e alcance e de aplicar seu significado fundamental a todo o conjunto de nossa compreensão de mundo, em todas as suas formas, desde a comunicação entre os seres humanos até a manipulação social, desde a experiência do indivíduo na sociedade até a experiência que ele faz nessa sociedade, desde a tradição construída pela religião e o direito, a arte e a filosofia até a energia da reflexão emancipatória da consciência revolucionária, não é o bastante para excluir a limitação das experiências e dos campos de experiência que o pesquisador individual toma como ponto de partida. Meu próprio trabalho não passa de uma contribuição a mais, acrescentada à filosófica da herança do romantismo alemão, levada a efeito por Dilthey. Este adotou o tema da teoria das ciências do espírito, munindo-as de uma base nova e mais ampla: na contraposição entre a experiência da arte e a alienação histórica das ciências do espírito, aquela pretende sair-se vitoriosa em virtude da simultaneidade que lhe é própria. Com isso visava-se a uma verdade que, pelo questionamento, ultrapassa toda ciência e que por outro lado antecipa-a. Isso deveria mostrar-se na estrutura essencial da linguagem característica de toda experiência humana de mundo, cujo modo de realização é o da simultaneidade em constante renovação. Nesse sentido, era inevitável que os fenômenos iniciais, mesmo na análise da estrutura da linguagem universal do comportamento humano no mundo, se colocassem em primeiro plano. Isso correspondia ao surgimento histórico-científico do problema hermenêutico que ganhou alento na tradição escrita, na tradição que se havia tornado estranha pela fixação, pela duração e pela distância no tempo. Assim tornara-se óbvio apresentar o complexo problema da tradução como modelo de linguagem do comportamento humano no mundo e desenvolver nas estruturas da tradução a problemática comum do modo de apropriar-se do estranho. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

A experiência hermenêutica carrega uma tensão não só desde o surgimento da ciência moderna, mas desde que se pleiteou um questionamento hermenêutico: uma tensão que jamais se resolve. Desse modo, ela não se deixa enquadrar sob o esquema de um autoconhecimento na alteridade, no qual o sentido seria sempre apreendido e transmitido plenamente. Esse conceito idealista do sentido do compreender não me parece desorientar apenas Apel, mas a maioria de meus críticos. Eu próprio admito que uma hermenêutica filosófica reduzida a idealismo necessita de complemento crítico. Procurei demonstrar isso na crítica aos seguidores hegelianos do século XIX, Droysen e Dilthey. Mas o impulso da hermenêutica não foi sempre "compreender" pela interpretação o estranho, a vontade inescrutável dos deuses, a mensagem de salvação ou as obras dos clássicos. Tampouco isso significa sempre uma inferioridade constitutiva daquele que compreende frente àquele que fala ou que dá a entender? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

O pano de fundo da "retórica" adquire um interesse temático especial quando se busca compreender o destino epistemológico e científico das Humaniora — até sua constituição metodológica na configuração das ciências do espírito do romantismo. O que interessa realmente nesse ponto não é tanto a função desempenhada pela teoria hermenêutica nesse contexto — que é mais ou menos secundária — , mas a antiga tradição medieval e humanista da retórica. Como parte do trivium, a retórica apresentava-se como uma obviedade quase inadvertida, por impregnar tudo. Mas isso significa que a mudança imperceptível do antigo, aos poucos, foi abrindo caminho para as ciências históricas. A historia da teoria hermenêutica, forjada na defesa contra os ataques dos contra-reformistas e tridentinos ao Luteranismo — desde Lutero até Melanchton e Flacius, passando pelo racionalismo incipiente e seu oponente, o pietismo, até o surgimento da visão histórica na era do romantismo — , não se desenvolveu sob a perspectiva da teoria do conhecimento e da teoria da ciência, mas sob a urgência das controvérsias teológicas iniciadas com a Reforma. Essa historia, na verdade, foi escrita por Wilhelm Dilthey e Joachim Wach, sob a problemática da pré-história das modernas ciências históricas do espirito. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

O primeiro exemplo é o que constitui a base dos estudos de Wilhelm Dilthey sobre a história da hermenêutica, aquela obra premiada da Academia das ciências de Berlim, escrita por Dilthey em sua juventude e da qual só conhecíamos alguns fragmentos e um resumo de 1900, até ser finalmente publicada em 1966 graças à redação de Martin Redekner do segundo volume inacabado da Vida de Schleiermacher, de Dilthey. Ali Dilthey faz uma apresentação magistral de Flacius documentada com inúmeras citações. Examina e valoriza a teoria hermenêutica de Flacius utilizando o critério do sentido histórico que tomou consciência de si próprio e do método científico, histórico-crítico. À luz desse critério mescla-se na obra de Flacius a antecipação genial de certas verdades com incríveis recaídas na estreiteza dogmática e no formalismo vazio. Na realidade, se a interpretação da Sagrada Escritura não tivesse apresentado outro problema a não ser o que ocupou a teologia histórica da época liberal, à qual pertenceu Dilthey, teríamos dito a última palavra com isso. A intenção louvável de se compreender cada texto desde sua circunstância própria, sem submetê-lo a nenhuma pressão dogmática, leva finalmente, na aplicação ao Novo Testamento, à dissolução do cânon, se dermos prioridade, com Schleiermacher, à interpretação "psicológica". Cada escritor do Novo Testamento é um caso à parte nessa perspectiva hermenêutica, e isso leva a solapar a dogmática protestante apoiada no princípio bíblico. É uma consequência que Dilthey aprovou implicitamente. Está implícita em sua crítica a Flacius. Dilthey contesta a exegese de Flacius em sua concepção histórica e abstratamente lógica do princípio da Escritura global ou do cânon. A tensão entre dogmática e exegese aparece também em outras passagens da exposição de Dilthey e sobretudo na crítica a Franz e à sua ênfase na primazia do contexto da Escritura global frente aos textos soltos. Atualmente a crítica à teologia histórica levada a efeito nos últimos cinquenta anos e que culmina na elaboração do conceito de "querigma" nos tornou mais receptivos à legitimidade hermenêutica do cânon e em consequência à legitimidade hermenêutica do interesse dogmático em Flacius. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

Um terceiro tipo de compreensão prévia que ilumina a história da hermenêutica numa dimensão especial é uma contribuição muito erudita da história primitiva da hermenêutica feita recentemente por Hasso Jaeger. Jaeger outorga uma relevância capital a Dannhauer, que emprega pela primeira vez a palavra "hermenêutica" e a ideia de uma ampliação da lógica aristotélica com a lógica da interpretação. Vê nesse autor o último testemunho da res publica literária humanista, antes desta ser congelada pelo racionalismo e antes que o irracionalismo e o subjetivismo moderno, desde Schleiermacher, passando por Dilthey até Husserl e Heidegger (e outros ainda piores) produzissem seus frutos venenosos. Surpreendentemente o autor não toca no tema da relação entre o movimento humanista e o princípio bíblico da Reforma nem no tema do papel determinante que a retórica desempenha para toda a problemática da interpretação. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

Não resta dúvidas de que, mesmo o princípio bíblico da Reforma, junto com sua defesa teórica, correspondia a uma guinada geral humanista que havia repudiado o estilo de ensino escolástico e seu apoio nas autoridades eclesiásticas, exigindo a leitura dos textos originais. O próprio Dilthey já sabia disso. Esse estilo pertence a um contexto humanista mais amplo de redescoberta dos clássicos, referido especialmente ao latim clássico de Cícero. Mas isso não foi apenas uma descoberta teórica. Seguia a lei da imitatio, da renovação da retórica e da estilística clássicas, e desse modo a retórica está sempre presente. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

Com seu artigo Studien zur Frügeschichte der Hermeneutik (Estudos sobre a história primitiva da hermenêutica), H.-E. Hasso Jaeger enriqueceu nosso conhecimento do período inicial da hermenêutica com um capítulo totalmente novo. Sabia-se já que a palavra "hermenêutica" apareceu pela primeira vez num escrito de Joh. Conrad Dannhauer, e sabia-se pelo menos desde Dilthey que a hermenêutica possui uma certa pré-história humanista. Mas, com a avaliação que Jaeger faz de Dannhauer, o quadro se modifica. Jaeger demonstra de início que Dannhauer perseguiu já em sua juventude o programa de uma lógica da interpretação e que introduziu em 1629 a expressão "hermenêutica" com essa finalidade. Frente a Dilthey, Jaeger não parece considerar essa hermenêutica como um antecedente teológico — e nesse sentido muito pobre — da hermenêutica romântica, mas como uma criação própria do movimento humanista, sem relação alguma com a controvérsia sobre o princípio bíblico que se deu entre Lutero e os papistas. Dilthey havia nos mostrado que essa controvérsia levara a uma primeira formulação dos princípios hermenêuticos da exegese protestante da Bíblia, formulação que aparece documentada em Flacius Illyricus. Mas H. Jaeger procura evitar, o quanto possível, o aspecto teológico do problema. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

O estudo histórico-conceitual de Jaeger, baseado numa profunda erudição, começa como é de rigor, com constatações sobre a historia do termo, e por fim essa temática acaba dominando a totalidade de seu trabalho a ponto de deixar de lado as obras de controvérsia teológica sobre a interpretação bíblica estudada por Dilthey. O surgimento da própria Hermenêutica de Dannhauer tem sua pré-história, como demonstra Jaeger. Mas o seu verdadeiro trabalho consiste na fundamentação da nova disciplina — a oikonomia, como disse Dannhauer — no âmbito da teoria da ciencia. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

Tampouco podemos relegar Flacius, citado por Dilthey, à literatura da controvérsia teológica, como faz Jaeger (38). É certo que a clavis de Flacius está a serviço de seus postulados teológicos. Mas seu fundamento é filológico-humanista em sentido geral. Flacius busca mostrar que a Sagrada Escritura pode ser compreendida como qualquer outro texto. Nesse sentido e como grande hebraísta e filólogo, Flacius defende a solução de Lutero (sacra scriptura sui ipsius interpres) contra a polêmica tridentina que afirmava a necessidade da tradição magisterial da Igreja. Não é esse o momento adequado para indagar até que ponto Flacius realizou sua intenção, ou, mais exatamente, se em sua argumentação em favor da compreensibilidade da Bíblia se deixa levar por certos preconceitos dogmáticos injustificados e se isto constitui realmente um defeito, como afirmava ainda Dilthey. Creio que sua doutrina sobre o scopus, subjacente a todo esforço hermenêutico, está estreitamente relacionada com a teologia da justificação de Lutero, de modo que não é possível dissociar a nova reflexão hermenêutica do sentido religioso da leitura da Bíblia. Mas isso não se aplica do mesmo modo à tradição do humanismo e a seu ideal da imitatiol Parece-me que o sentido normativo e canónico dos textos a serem interpretados — como na interpretação das leis — representa o momento decisivo de todo esforço de interpretação. Isso não significa em absoluto [297] nenhuma limitação do postulado hermenêutico de chegar a compreender um texto pouco inteligível. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

O douto autor fala como um defensor convencido da Res publica litteraria universalis, cuja decadência lamenta com Schopenhauer (40, nota 16). Essa decadência, que se inicia segundo ele no século XVIII, também seria a responsável pelo fato de a hermenêutica por ele descrita ter sido logo sufocada por um racionalismo trivial (e, como deveríamos acrescentar, por tendências teológicas pietistas). Assim, seu tratado reveste-se de um tom polêmico. Pretende desautorizar toda a tradição romântica das ciências do espírito desde Dilthey até a hermenêutica atual, mas sobretudo sua última evolução na "linha de Heidegger e de Bultmann" (35). VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

Parece que lhe causa certa satisfação que a hermenêutica careça de tradição. Em todo caso, só pode referir-se em sentido diverso a Dilthey e à problemática de uma hermenêutica filosófica desenvolvida a partir de Heidegger. Dilthey buscou mostrar a tradição da hermenêutica teológica, onde se encontram Schleiermacher e, com ele, o método histórico da era pós-romântica. A pré-história pré-romântica, com efeito, é mais pré-história do que história. A "hermenêutica recente" no sentido de Jaeger só pode nascer pela ampliação da teoria da interpretação teológica e filológica à ideia de uma metodologia histórica geral. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

Temos que reconhecer também que o que Jaeger chama de "hermenêutica recente" é muitas vezes um produto muito ambíguo. Sua tese e suas tendências são mal compreendidas ao ponto de tornar-se caricaturas. Mas o que entende o próprio Jaeger por hermenêutica recente combatida por ele? Poderia se dizer que é para ele uma arma milagrosa do século irracionalista. O que significa para ele "interpretar"? Se se referisse à psicologização da interpretação de Schleiermacher e posteriormente de Dilthey, eu poderia concordar com ele. Mas a partir da grande distância que ele observa como membro da Respublica litteraria universalis, como ele se considera, a síntese da tradição hermenêutico-idealista que fazem Dilthey e E. Betti coincide para ele com Heidegger e com minha própria contribuição (35). Uma metodologia das ciências do espírito e uma reflexão filosófica que descobre os limites de todo método são valem para ele a mesma coisa. Como compreender isso? Que todas são obras do diabo? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

Só vejo uma maneira de esclarecer o que possa expressar essa síntese do divergente e sua possível justificação. Essa síntese se oferece inicialmente na querelle des anciens et des modernes, que já Leo Strauss elegera como orientação em seu livro mais antigo sobre Spinoza. Strauss optou inequivocamente pelos anciens. Mais tarde ficou clara a relevancia desta querelle para a gênesis da consciência histórica, sobretudo na vertente romântica (cf. a reimpressão de Perrault com a introdução de H.R. Jauss). Aqui encontramos um grave problema. Todos os "hermeneutas", incluso a filosofia do idealismo alemão, pertencem naturalmente aos "modernos". A luta perpétua de Dilthey com o fantasma do relativismo histórico pode ilustrar muito bem essa problemática dos "modernos". VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

Seguindo essa temática universal, aberta por Schleiermacher e sobretudo sua contribuição mais própria, a introdução da interpretação "psicológica", destinada a complementar a interpretação "gramatical" tradicional, a hermenêutica evoluiu no século XIX para uma metodologia. Seu novo objeto são os "textos", uma entidade anônima, que o investigador deve enfrentar. Na linha de Schleiermacher, Wilhelm Dilthey levou a cabo a fundamentação hermenêutica das ciências do espírito, estabelecendo as bases para sua equiparação com as ciências naturais e ampliando o acento que Schleiermacher dera à interpretação psicológica. Segundo Dilthey, o verdadeiro triunfo da hermenêutica estaria na interpretação das obras de arte, que traz à consciência uma produção genial inconsciente. Frente à obra-de-arte, todos os métodos psicológicos tradicionais — gramatical, histórico, estético e psicológico — , só representam uma suprema realização do ideal da compreensão na medida em que todos esses recursos e métodos se põem a serviço da compreensão da obra concreta. Aqui, e sobretudo no campo da crítica literária, o aperfeiçoamento da hermenêutica romântica deixa um legado que denuncia sua origem remota, mesmo no uso da linguagem: o de ser crítica. Crítica significa preservar a obra individual em sua validade e conteúdo e diferenciá-la de tudo que não satisfaz seu critério. O esforço de Dilthey serviu para estender o conceito metodológico da ciência moderna também à "crítica" e desdobrar cientificamente a "expressão" poética partindo de uma psicologia compreensiva. Foi tomando o caminho que passa pela "história da literatura" que ele inaugurou o termo "ciência da literatura". Reflete o ocaso de uma consciência da tradição na época 314] do positivismo científico do século XIX, que no espaço da língua alemã elevou a equiparação com o ideal da ciência natural moderna a ponto de modificar o nome. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

Isso não significa que se menospreze ou se limite o rigor metodológico da ciência moderna. As denominadas "ciências hermenêuticas" ou "ciências do espírito" estão sujeitas aos mesmos critérios [318] de racionalidade crítica que caracteriza o método de todas as ciências, embora seus interesses e procedimentos sejam substancialmente diversos dos que animam as ciências naturais. Mas podem apelar com razão sobretudo para o paradigma da filosofia prática, que em Aristóteles poderia ser chamada também de "política". Aristóteles classificou essa ciência como "a ciência mais arquitetônica", uma vez que reunia em si todas as ciências e artes do saber antigo. A própria retórica pertencia a ela. A pretensão universal da hermenêutica consiste assim em ordenar todas as ciências, em captar as chances de êxito cognitivo de todos os métodos científicos, sempre que possam ser aplicados a objetos, e em utilizá-los em todas as suas possibilidades. Mas se a "política", enquanto filosofia prática, é algo mais que uma técnica suprema, o mesmo podemos dizer da hermenêutica. Tudo que as ciências podem conhecer, a hermenêutica deve levá-lo à relação de consenso, onde todos nós estamos. Uma vez que inclui a contribuição das ciências nessa relação de consenso que nos liga com a tradição legada a nós numa unidade vital, a própria a hermenêutica não é um simples método nem uma série de métodos, como ocorreu no século XIX desde Schleiermacher e Boeckh até Dilthey e Emilio Betti. Nesse período, a hermenêutica se converteu em teoria metodológica das ciências filológicas. A hermenêutica é antes filosofia. Não se limita a prestar conta dos procedimentos que a ciência aplica. Trata igualmente das questões prévias à aplicação de qualquer ciência — como a retórica, tematizada por Platão. Trata-se das questões que determinam todo o saber e o fazer humanos, essas questões "máximas" que são decisivas para o ser humano enquanto tal e para sua escolha do "bem". VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

Pois bem, essa filosofia neokantiana dos valores constituía uma base muito frágil. Muito mais influente seria o legado romântico do espírito alemão, o legado de Hegel e de Schleiermacher, administrado especialmente pelo trabalho de Dilthey em torno a uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito. O pensamento de Dilthey teve um horizonte mais amplo do que o da teoria do conhecimento do neokantismo, uma vez que assumiu toda a herança de Hegel: a teoria do espírito objetivo. Segundo essa teoria, o espírito não ganha corpo apenas na subjetividade de sua realização atual, mas também na objetivação de instituições, sistemas de ação e sistemas de vida como a economia, o direito e a sociedade, e assim, enquanto "cultura", convertem-se em objeto de possível compreensão. A tentativa diltheyana de renovar a hermenêutica de Schleiermacher, demonstrando, por assim dizer, como fundamento das humaniora o ponto de identidade entre o que compreende e o compreensível, foi condenada ao fracasso porque a história apresenta um estranhamento e uma heterogeneidade demasiado profundos para que possam ser considerados tão confiadamente a partir da perspectiva de sua compreensibilidade. Um sintoma característico de ausência da "facticidade" do acontecer no pensamento de Dilthey é este ter considerado a autobiografia, portanto, o caso em que alguém expõe uma trajetória de vida, vivenciando-a retrospectivamente, como modelo de compreensão histórica. Na verdade, uma autobiografia é mais uma história das ilusões privadas do que a compreensão do acontecimento histórico real. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.

Para isso é preciso uma visão certeira. A admirável empresa de uma crítica da razão histórica, empreendida por Dilthey, foi marcada e também obstaculizada, pensamos hoje, por sua dependência em relação ao modelo metodológico das ciências experimentais da [328] natureza. De certo, seu repúdio à teoria axiológica do neokantismo (Rickert) tem sua razão de ser; mas era preciso superar a mera oposição à teoria neokantiana dos valores. Foi o que fez Theodor Litt. Quando no ano de 1941, eu escutei, em Leipzig, a conferência de Litt na Academia saxônica de ciências, da qual acabara de ser eleito membro — seu membro mais jovem — esse estudo sobre "o universal na elaboração do conhecimento das ciências do espírito" pareceu-me uma síntese na qual Litt ratificava sua posição intermediária entre Kant e Herder. Ele a havia elaborado no ano de 1930 num belo livro. Como a linguagem constituía nesse caso a ponte entre o universal e o particular ou singular, pareceu-me muito natural aproveitar meu próprio estudo da crítica ontológica que Heidegger fez à metafísica grega e a sua consequência histórica, aplicando-o ao pensamento subjetivo da modernidade para precisar melhor a natureza das ciências do espírito. Ainda hoje sinto-me próximo de Litt, por exemplo, na defesa da linguagem da cotidianidade frente à linguagem técnica e o conceito "puro", o qual tem sua plena justificação nas ciências da natureza. Litt aprendeu a articular seu próprio pensamento na dialética hegeliana do universal e do particular e na fusão do juízo determinante com o juízo reflexivo. Desse modo tocava no nervo hermenêutico. Eu mesmo procurei ultrapassar o horizonte da teoria moderna da ciência e da filosofia das ciências do espírito para examinar o problema hermenêutico, tomando como referência a estrutura fundamental do ser humano baseada na linguagem. A virtude aristotélica da racionalidade, a phronesis, acaba sendo a virtude hermenêutica fundamental. Serviu de modelo para a formação de minha própria linha argumentativa. Desse modo, a hermenêutica, essa teoria da aplicação, quer dizer, da conjugação do universal e do particular, converteu-se para mim numa tarefa filosófica central. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.

[330] Os problemas da hermenêutica tiveram sua origem primeira em certas ciências individuais, especialmente a teologia e a jurisprudência, e por fim ganharam impulso também através das ciências históricas. Mas o próprio romantismo alemão já vira com profundidade que a compreensão e a interpretação não aparecem apenas em manifestações da vida fixadas por escrito, como dissera Dilthey, mas atingem o relacionamento geral dos seres humanos entre si e com o mundo. É o que podemos constatar inclusive em certas palavras derivadas, como a palavra compreensão (Verständnis). Em língua alemã, Compreender (Verstehen) significa também "entender algo". A capacidade de compreensão é a faculdade fundamental da pessoa, que caracteriza sua convivência com os demais, atuando sobretudo pela via da linguagem e do diálogo. Nesse sentido, a pretensão de universalidade da hermenêutica está garantida. Por outro lado, o caráter de linguagem do processo de entendimento que se produz entre as pessoas representa uma barreira intransponível que o romantismo alemão valorizou em princípio positivamente em seu significado metafísico. A barreira aparece formulada na frase individuum est ineffabile. A frase expressa uma limitação da ontologia antiga (e não somente do período medieval). Mas para a consciência romântica isso significa que a linguagem nunca alcança o mistério último e indecifrável da pessoa individual. Essa ideia foi muito bem expressa pelo sentimento vital da época romântica, sugerindo uma autonomia da expressão de linguagem que não constitui somente seu limite, mas também sua relevância para a formação do common sense que une os seres humanos. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Convém lembrar esta pré-história de nossa problemática atual. A consciência metodológica das ciências históricas, que aflora desde o romantismo, e a pressão que exerceu o modelo triunfante das ciências naturais fizeram com que a reflexão filosófica reduzisse a generalidade da experiência hermenêutica a sua forma científica. Nem em Wilhelm Dilthey, que buscou na continuação das ideias de Friedrich Schleiermacher e de seus amigos românticos a fundamentação das ciências do espírito em sua historicidade, nem entre [331] os neokantianos, que perseguiram uma justificação epistemológica das ciências do espírito em forma de filosofia transcendental da cultura e dos valores, estava ainda presente toda a amplitude da experiência hermenêutica fundamental. Talvez esse fato tenha se produzido com maior intensidade no país de Kant e do idealismo transcendental do que em países nos quais les lettres revestem certa importância na vida pública. No entanto, a reflexão filosófica acabou tomando uma direção similar em todas as partes. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Meu ponto de partida foi a crítica ao idealismo e ao metodologismo da era da teoria do conhecimento. Foi de especial importância para mim o aprofundamento do conceito de compreensão, por Heidegger, que o converteu num existencial, quer dizer, numa determinação básica categorial da pre-sença (Dasein) humana. Foi o estímulo que me levou a uma superação crítica do debate metodológico e a uma ampliação da problemática hermenêutica, contemplando não somente todo tipo de ciência, mas também a experiência de arte e a experiência da história. Ora, para sua análise crítica e polêmica da compreensão, Heidegger apoiou-se no antigo discurso sobre o círculo hermenêutico, reivindicou-o como um círculo positivo e em sua analítica da pre-sença elevou-o a conceito. Não devemos esquecer, porém, que não se trata aqui da circularidade como metáfora metafísica, mas de um conceito lógico que encontra seu verdadeiro lugar na teoria da demonstração científica como doutrina do círculo vicioso. O conceito de círculo hermenêutico significa que no âmbito da compreensão não se pretende deduzir uma coisa de outra, de modo que o erro lógico da circularidade na demonstração não é aqui nenhum defeito do procedimento, mas representa a descrição adequada da estrutura do compreender. Dilthey, seguindo a Schleiermacher, introduziu a expressão "círculo hermenêutico" em contraste com o ideal de raciocínio lógico. Se considerarmos o verdadeiro alcance do conceito de compreensão no uso da linguagem, veremos que a expressão "círculo hermenêutico" sugere na realidade a estrutura do ser-no-mundo, quer dizer, a superação da divisão entre sujeito e objeto na analítica transcendental da pre-sença levada a cabo por Heidegger. Quem sabe usar uma ferramenta não a converte em objeto, mas trabalha com ela. Assim também o compreender, que permite à pre-sença conhecer-se em seu ser e em seu mundo, não é uma conduta relacionada com determinados objetos de conhecimento, mas seu próprio ser-no-mundo. Desse modo a metodologia hermenêutica de cunho diltheyano se transforma numa "hermenêutica da facticidade" que guia a pergunta de Heidegger pelo ser, incluindo a indagação fundamental do historicismo e de Dilthey. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Nesse sentido, o encontro com o cenário francês significa um verdadeiro desafio para mim. Derrida assevera que o Heidegger tardio não rompeu realmente com o logocentrismo da metafísica. Ao perguntar pela essência da verdade ou pelo sentido do ser, Heidegger segue falando, segundo Derrida, a linguagem da metafísica, que considera o sentido como algo que está à mão e que é preciso encontrar. Nessa questão, Nietzsche teria sido mais radical. Seu conceito de interpretação não significa a busca de um sentido simplesmente dado, mas a posição de sentido a serviço da "vontade de poder". Somente assim rompe-se com o logocentrismo da metafísica. Essa continuação das ideias de Heidegger por obra sobretudo de Derrida, e que se apresenta como a radicalização dessas ideias, deverá repudiar logicamente a exposição e crítica de Nietzsche feita por Heidegger. Segundo Derrida, Nietzsche não representa o ponto extremo do esquecimento do ser, que culmina nos conceitos de valor e de ação. Ele constitui a verdadeira superação da metafísica, na qual Heidegger fica prisioneiro quando pergunta pelo ser, pelo sentido do ser como um logos a ser buscado. Não resta dúvidas de que, para fugir da linguagem da metafísica, o Heidegger tardio elaborou ele próprio sua linguagem semipoética. De ensaio em ensaio aparece uma nova linguagem, que impõe ao leitor a tarefa [334] de constante tradução dessa linguagem para seu próprio uso. A questão é saber até que ponto alguém consegue encontrar a linguagem para expressar essa tradução. A tarefa, porém, está proposta. É a tarefa de "compreender". Sobretudo ao defrontar-me com os seguidores franceses, tenho plena consciência de que minhas próprias tentativas de "traduzir" Heidegger denunciam meus limites, e mostrando sobretudo até que ponto eu mesmo estou preso à tradição romântica das ciências do espírito e do legado humanista. Mas é exatamente frente a essa tradição do "historicismo" na qual estou imerso que adotei uma postura crítica. Numa carta pessoal já publicada, Leo Strauss já me chamara a atenção de que se Nietzsche constituía o ponto de orientação crítica para Heidegger, Dilthey o era para mim. Talvez a característica determinante da radicalidade de Heidegger tenha sido o fato de que sua própria crítica ao neokantismo fenomenológico de cunho husserliano acabou levando-o a considerar Nietzsche como o ponto extremo do que ele chama história do esquecimento do ser. Mas essa é uma afirmação eminentemente crítica que não se detém aquém de Nietzsche, mas ultrapassa-o. Na corrente nietzschiana francesa, sinto falta de um esclarecimento do que significa a dimensão sedutora do pensamento nietzschiano. Creio que é por causa dessa falta que chegam a pensar que a experiência do ser que Heidegger buscou descobrir por trás da metafísica é superada pela radicalidade do extremismo nietzschiano. Na verdade, a imagem de Nietzsche apresentada por Heidegger mostra melhor a profunda ambiguidade que se apresenta em seu pensamento quando se alcança segui-lo até seu ponto extremo e de ver em ação, justamente ali, o absurdo da metafísica, uma vez que a criação e transmutação de todos os valores acabam convertendo o próprio ser num conceito axiológico a serviço da "vontade de poder". A tentativa de Heidegger de pensar o ser supera essa conversão da metafísica em pensamento axiológico, ou melhor, retrocede para além da própria metafísica, sem conformar-se com o extremismo de sua autodissolução, como acontece em Nietzsche. Esse perguntar retrospectivo não suspende o conceito de logos e suas implicações metafísicas, mas descobre sua unilateralidade e, por fim, sua "superficialidade". Nesse sentido, o fato de o ser não se esgotar em sua automanifestação, mas, com a mesma originariedade com que se mostra, também se retraia e subtraia, isso reveste-se de uma importância decisiva. Essa é uma intuição autêntica defendida primeiramente por Schelling contra o idealismo lógico de Hegel. Heidegger retoma esta questão, reforçando-a com uma riqueza conceitual da qual Schelling carecia. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

De minha parte, procurei não esquecer o limite implícito em toda experiência hermenêutica do sentido. Ao escrever que "o ser que pode ser compreendido é linguagem", essa frase dava a entender que o que é nunca pode ser inteiramente compreendido. Isso porque o que serve de orientação a uma linguagem sempre ultrapassa aquilo que nela se enuncia. O que vem à linguagem permanece como aquilo que deve ser compreendido, mas sem dúvida é sempre tomado e percebido como algo. Essa é a dimensão hermenêutica na qual o ser "se mostra". A "hermenêutica da facticidade" [335] significa uma transformação do sentido da hermenêutica. Na tentativa que empreendi buscando descrever os problemas, deixei-me guiar pela experiência de sentido que podemos fazer com a linguagem para demonstrar o limite que lhe é imposto. O "ser para o texto", que me serviu de orientação, não pode competir em radicalidade de experiência de limite com o "ser para a morte", e a pergunta inesgotável pelo sentido da obra de arte ou pelo sentido da história que nos acontece, tampouco significa um fenômeno tão originário como a questão da finitude imposta à pre-sença humana. Nesse sentido, posso compreender por que o Heidegger tardio (e sobre isso talvez Derrida estivesse de acordo com ele) disse que eu não havia abandonado realmente a esfera da imanência fenomenológica presente em Husserl e em minha primeira formação neokantiana. Também consigo compreender que alguém creia ver esta "imanência" metodológica na insistência no círculo hermenêutico. De fato, querer romper este círculo parece-me uma exigência irrealizável, e até verdadeiramente contraditória. Como ocorre em Schleiermacher e em seu sucessor Dilthey, essa imanência nada mais é que a descrição do que é a compreensão. Desde Herder, entendemos por "compreender" algo mais que um procedimento metodológico para descobrir um sentido determinado. Ante a amplitude da compreensão, a circularidade que medeia entre o sujeito que compreende e aquilo que ele compreende deve reclamar para si uma verdadeira universalidade, e justamente aqui está o ponto no qual eu creio haver seguido a crítica de Heidegger ao conceito fenomenológico de imanência implícito na última fundamentação transcendental de Husserl. O caráter dialogai da linguagem, que eu busquei elaborar, ultrapassa o ponto de partida da subjetividade do sujeito, inclusive o do falante em sua referência ao sentido. O que se manifesta na linguagem não é a mera fixação de um sentido pretendido, mas um intento em constante mudança ou, mais precisamente, uma tentativa reiterada de deixar-se tomar por algo e com alguém. Mas isto significa expor-se. A linguagem está longe de ser uma mera explicitação e credenciamento de nossos preconceitos. Ela os coloca, antes, em jogo, os expõe à própria dúvida e à contraposição do outro. Quem já não fez a experiência — sobretudo frente ao outro, a quem queremos convencer — da facilidade com que alguém expressa suas razões, sobretudo as razões contrárias ao outro? A mera presença do outro, mesmo que ele nada diga, ajuda a revelar e desfazer a própria clausura e estreitamento. A [336] experiência dialogai produzida aqui não se limita à esfera das razões de uma e outra parte, cujo intercâmbio e coincidência podem definir o sentido de todo debate. Há algo mais, como mostram as experiências descritas; um potencial de alteridade, por assim dizer, que está além de todo consenso comum. Esse é o limite que Hegel não ultrapassou. É verdade que ele se deu conta do princípio especulativo que rege o logos, demonstrando-o até com certa figura de dramaticidade. Hegel desenvolveu a estrutura da autoconsciência e do "conhecimento de si mesmo na alteridade" como a dialética do reconhecimento, elevando essa dialética ao extremo da luta pela sobrevivência. Também Nietzsche, com sua aguda visão psicológica, revelou o substrato de "vontade de poder" presente até na submissão e no sacrifício: "também no escravo há vontade de poder". Mas o fato de esta tensão entre a auto-renúncia e a auto-relação invadir a esfera das razões de uma e outra parte, a esfera portanto do debate temático, e de certo modo instalar-se nela, constitui o ponto onde Heidegger permanece para mim decisivo, justamente porque detecta aí o "logocentrismo" da ontologia grega. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Foi Dilthey quem, continuando o idealismo romântico, deu aqui as primeiras orientações. Recusando o então vigente monopólio do pensamento causal, deixou de lado a relação causa-efeito, propondo a relação de efeitos, uma relação portanto que se dá entre os próprios efeitos (sem prejuízo de que todos eles tenham suas causas). Introduziu para isso o termo "estrutura", tão prestigiado posteriormente, e mostrou como a compreensão de estruturas apresenta necessariamente uma forma circular. Dilthey tomou como ponto de partida a audição musical, segundo a qual a música absoluta, com sua extrema a-conceptualidade, representa um exemplo paradigmático por excluir toda a teoria da imitação. A partir daí, falou de concentração num ponto central, tematizando a estrutura temporal da compreensão. Na estética, num sentido muito parecido, fala-se de "configuração" (Gebild), tanto em referência ao texto literário como a um quadro. O significado indeterminado de "configuração" implica que algo não deve ser compreendido em sua realidade pré-planejada e já pronta, mas que se formou de certo modo a partir de dentro, até alcançar sua própria figura (Gestalf), e talvez seguindo uma formação evolutiva. É evidente que buscar compreender fenômenos dessa natureza representa uma tarefa muito especial. A tarefa manda que isso que representa uma configuração deve ser construído [359] em si mesmo; construir algo que não está "construído", o que implica retomar todos os intentos de construção. Enquanto a unidade de compreender e de ler se realiza na leitura compreensiva, deixando de lado o fenômeno da linguagem, o texto literário sempre oferece algo que atualiza relações recíprocas de sentido e som. É a estrutura temporal da mobilidade, que chamamos permanência, o que realiza essa presença, e é isso mesmo que o discurso mediador da interpretação deve abordar. Sem a disposição do receptor a ser "todo ouvidos", o texto poético não nos diz nada. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Em Heidegger repetiu-se uma irrupção parecida, e até mais vigorosa, do impulso originário da linguagem na esfera do pensamento. O que contribuiu muito para isso foi seu recurso consciente à originalidade da linguagem filosófica grega. Assim, em virtude da força intuitiva de suas raízes plantadas no mundo da vida, a "linguagem" retomou toda sua virulência e penetrou decisivamente no sutil artifício descritivo da fenomenologia husserliana. Era [362] inevitável que a própria linguagem se convertesse em objeto de sua auto-compreensão filosófica. Quando já em 1920, como eu mesmo posso testemunhar, partindo de uma cátedra alemã, um jovem pensador — Heidegger — começou a meditar sobre o significado de "mundear" (es weltet), isso representou uma brecha aberta na linguagem escolar da metafísica, que se pautava por uma linguagem sólida, mas inteiramente distanciada de suas origens. Esse fato representou ao mesmo tempo um acontecimento no âmbito da linguagem e a conquista de uma compreensão mais profunda da própria linguagem. A atenção que a tradição do idealismo alemão dedicou ao fenômeno da linguagem, desde Humboldt, os irmãos Grimm, Schleiermacher, Schlegel e por último Dilthey, e que deu um claro impulso à nova ciência da linguagem, sobretudo à linguagem comparada, permaneceu no âmbito da filosofia da identidade. A identidade do subjetivo e o objetivo, de pensamento e ser, de natureza e espírito se manteve até a filosofia das formas simbólicas inclusive, entre as quais destaca-se a linguagem. Como o ponto extremo desse fenômeno, encontramos a obra sintética da dialética hegeliana, que através de todas as contradições e diferenciações imagináveis, buscava restabelecer a identidade e elevar a originária ideia aristotélica do noesis noeseos a sua perfeição mais apurada. Foi assim que o parágrafo final da Enciclopédia de ciências filosóficas de Hegel o formulou, de um modo um tanto insolente. Como se a longa história do espírito tivesse dirigido todo seu esforço a uma única meta: tantae molis erat se ipsam cognoscere mentem, conclui Hegel evocando um verso de Virgílio. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Antigamente, quando na filosofia se refletia sobre os fundamentos das ciências do espírito, mal se falava de hermenêutica. A hermenêutica era uma simples disciplina auxiliar, um cânon de regras que tinha como objeto o trato com textos. Em todo caso, ainda se diferenciava por levar em conta e contemplar o modo específico de determinados textos, por exemplo, como hermenêutica bíblica. Havia ainda uma disciplina auxiliar um pouco diferente, também chamada hermenêutica, na figura da hermenêutica jurídica. Continha regras para a complementação de lacunas no direito codificado, tendo, portanto, caráter normativo. A problemática filosófica central que se encontrava inserida no factum das ciências do espírito — em analogia para com as ciências da natureza e sua fundamentação através da filosofia kantiana — era abordada, ao contrário, na teoria do conhecimento. A crítica da razão pura de Kant justificou os elementos apriorísticos do conhecimento experimental das ciências da natureza. Assim, convinha que se implementasse uma justificação teórica correspondente para o modo de conhecimento das ciências históricas. Em sua Historik, J.G. Droysen projetou uma metodologia das ciências históricas, exercendo grande influência. Essa metodologia visava uma plena correspondência com a tarefa kantiana. Wilhelm Dilthey, que iria desenvolver a verdadeira filosofia da escola histórica, perseguiu desde o princípio e conscientemente a tarefa de uma crítica da razão histórica. Nesse sentido, também sua autoconcepção possuía um cunho epistemológico. Sabe-se que para ele o fundamento epistemológico das chamadas ciências do espírito repousava em uma psicologia "descritiva e analítica", purificada da alienação das ciências da natureza. Na execução dessa tarefa, Dilthey acabou superando seu originário ponto de partida epistemológico, tendo sido ele a fazer surgir o momento filosófico da hermenêutica. É verdade que nunca renunciou ao fundamento epistemológico buscado na psicologia. A base sobre a qual procurou erigir o edifício do universo histórico das ciências do espírito continuou sendo o fato de as vivências serem caracterizadas pelo tomar consciência de si mesmas, de modo que ali não surge nenhum problema a respeito do conhecimento do outro, do não-eu, como acontece na base do questionamento kantiano. O universo histórico, porém, não é um nexo de vivências nos [388] moldes da autobiografia, onde a historia se apresenta em função da interioridade da subjetividade. Por fim, o nexo histórico deve ser compreendido como um nexo de sentido que supera fundamentalmente o horizonte vivencial do indivíduo. E como um texto grande e estranho, para cuja decifração precisa da ajuda de uma hermenêutica. É assim que Dilthey procura a passagem da psicologia para a hermenêutica, a partir da constringência da própria coisa em questão. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Em seu esforço para construir uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito, Dilthey encontrou uma forte oposição da escola epistemológica, que naquele momento também buscava fundamentar as mesmas ciências, partindo do ponto de vista neokantiano, ou seja, da filosofia dos valores desenvolvida por Windelband und Rickert O sujeito epistemológico pareceu-lhe ser uma abstração anêmica. Por mais que ele próprio estivesse entusiasmado pela busca de objetividade nas ciências do espírito, não poderia abstrair do fato de o sujeito conhecente, o historiador que compreende, não estar simplesmente postado frente ao seu objeto, a vida histórica, mas ser sustentado, ele próprio, pelo mesmo movimento da vida histórica. Sobretudo em seus últimos anos, Dilthey buscou cada vez mais fazer justiça à filosofia idealista da identidade, uma vez que no conceito idealístico do espírito estava pensada a mesma generalidade substancial entre sujeito e objeto, entre eu e tu, como ocorria em seu próprio conceito de vida. Aquilo que Georg Misch defendeu de modo tão agudo como ponto de vista da filosofia da vida contra Husserl e Heidegger partilhou com a fenomenologia tanto a crítica a um objetivismo histórico ingênuo quanto a sua justificação epistemológica através da filosofia dos valores vinda do sudoeste da Alemanha. Por mais evidente que tenha sido, a constituição do fato histórico, através da referência aos valores, não fez justiça às implicações do conhecimento histórico no acontecer histórico. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

O desenvolvimento posterior da reflexão hermenêutica está dominado justamente pelo questionamento sobre o problema do historicismo, e tem seu ponto de partida em Dilthey, cujas obras completas, nos anos de 1920, acabam anulando também a influência de Ernst Troeltsch. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

A ligação e o apoio que Dilthey encontra na hermenêutica romântica, que nesse século XX se apoia no renascimento da filosofia especulativa de Hegel, suscitou uma ampla crítica ao objetivismo histórico (Conde Yorck, Heidegger, Rothacker, Betti etc). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

É evidente que não consegui convencer a Betti sobre o fato de que uma teoria filosófica da hermenêutica não é uma doutrina do método — correta ou falsa ("perigosa"). Quando Bollnow chama a compreensão de uma "produção essencialmente criadora", isso pode ser um equívoco. Apesar de que o próprio Betti não vacila em qualificar dessa forma a atividade complementar ao direito na interpretação da lei. O certo, porém, é que não basta fundamentar-se na estética do gênio, como faz o próprio Betti. Uma teoria da inversão não permite superar a redução psicológica, que no mais ele mesmo reconhece como correta em si (na linha de Droysen). Desse modo, não supera de todo a ambiguidade que manteve a Dilthey entre psicologia e hermenêutica. Quando para explicitar a possibilidade da compreensão das ciências do espírito se vê obrigado a pressupor que somente um espírito de mesmo nível é capaz de compreender um outro, fica claro que uma tal ambiguidade psicológico-hermenêutica é insatisfatória. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Sobre a autobiografia, fiz algumas observações na introdução da edição alemã, o que não quero reportar aqui. A obra póstuma contém uma história da historiografia desde a Antiguidade até o presente, finalizando curiosamente com Croce, e que na V parte contém uma discussão teórica própria. Vou me restringir a esta última parte, uma vez que as partes históricas, também aqui, como se dá em muitas outras passagens, estão dominadas por tradições de pensamento nacionalistas, chegando à incompreensibilidade. Assim, por exemplo, o capítulo sobre Wilhelm Dilthey é sumamente decepcionante para um leitor alemão: VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

"Dilthey viu-se confrontado com uma questão que [396] Windelband e os outros não perceberam, uma vez que não aprofundaram suficientemente o problema: A questão de como é possível um conhecimento do particular, paralelamente e em diferenciação para com a experiência imediata. Ele responde a esta questão com a constatação de que um tal conhecimento não é possível e recai na convicção positivista, segundo a qual o universal (o verdadeiro objeto do conhecimento) somente seria passível de conhecimento com a ajuda das ciências da natureza ou de alguma outra ciência fundamentada em princípios naturalistas. Assim, tanto ele quanto toda sua geração não conseguem se evadir da influência do pensamento positivista" (184). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Nesse contexto de uma crítica ao objetivismo histórico podemos incluir sobretudo os trabalhos de Erich Rothacker. É sobretudo nos últimos trabalhos, Die dogmatische Denkform in den Geisteswissenschaften und das Problem des Historismus, que Rothacker desenvolve seus pensamentos iniciais, onde sustenta o interesse hermenêutico de Dilthey (semelhante a Hans Freyer na Theorie des objektiven Geistes) contra todo psicologismo. O conceito da forma dogmática de pensamento é concebido inteiramente como um conceito hermenêutico. A dogmática deve ser defendida como um método produtivo do conhecimento das ciências do espírito, na medida em que elabora o contexto imanente de um tema, contexto que determina unitariamente uma região de sentido. Rothacker pode muito bem apelar para o fato de o conceito de "dogmática" não ter um sentido exclusivamente crítico-pejorativo, tanto na teologia quanto na jurisprudência. Mas aqui, diferente do que ocorre nessas disciplinas sistemáticas, o conceito de dogmática não deve ser um mero sinônimo de conhecimento sistemático e, portanto, de filosofia. Deve ser, antes, uma "postura distinta" que se deve justificar frente ao questionamento histórico que procura conhecer desenvolvimentos. Assim, para ele, o conceito de "dogmática" tem seu lugar no conjunto da atitude histórica, a partir donde recebe o seu direito relativo. No fundo, trata-se da mesma formulação geral formulada por Dilthey sobre o conceito de contexto estrutural, só que aplicada de modo especial à doutrina histórica do método. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Rothacker mostra-se um defensor temperamental do mesmo. Dilthey tentara eliminar o perigo do historicismo, reconduzindo as diversas concepções de mundo às múltiplas facetas da vida. Rothacker segue seus passos quando fala das dogmáticas como explicações de imagens de mundo vividas ou quando fala de correntes de estilo, reconduzindo-as ao fato de que o homem que atua está vinculado a suas concepções de mundo e a seu perspectivismo. Com isso, todas elas tornam-se irrefutáveis por serem perspectivistas (35). Isso significa que o relativismo não reina ilimitadamente na aplicação da ciência, resguardando seus limites precisos. Não põe em perigo a "objetividade" imanente da investigação. Seu ponto de partida está na diversidade e liberdade do questionamento científico, onde desembocam os direcionamentos variáveis da significabilidade das imagens de mundo que se viveu. A partir desse ponto de vista, até mesmo a ciência moderna da natureza caracteriza-se como a dogmática de uma perspectiva quantificadora (53). Para isso, basta admitir a ideia de que possa haver outro modo de conhecimento na natureza. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Todas as atuais críticas ao objetivismo e positivismo histórico têm um ponto em comum, a saber, a ideia de que o chamado sujeito do conhecimento tem o mesmo modo de ser do objeto, de modo que objeto e sujeito pertencem à mesma mobilidade histórica. A oposição entre sujeito e objeto talvez seja adequada onde o objeto, frente à res cogitans, é o absolutamente outro, a res extensa. O conhecimento histórico, porém, não pode ser descrito adequadamente por meio desse conceito de objeto e objetividade. Segundo as palavras do Conde York, trata-se de compreender a diferença "genérica" entre "ôntico" e "histórico", ou seja, trata-se de reconhecer o chamado sujeito no modo de ser da historicidade que lhe é conveniente. Vimos anteriormente como Dilthey não se aprofundou o bastante para poder tirar todas as consequências dessa ideia, mesmo que posteriormente tenham sido tiradas. Faltavam os pressupostos conceituais necessários para superar o problema do historicismo, como explicitou, por exemplo, Ernst Troeltsch. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Parece que a imagem do historicista, caracterizada e combatida por Strauss aqui, corresponde àquele ideal do Iluminismo perfeito que em minhas próprias investigações sobre a hermenêutica filosófica caracterizei como a ideia norteadora do irracionalismo histórico de Dilthey e do século XIX. Não se trata de um ideal utópico do presente, em cuja luz por assim dizer o passado desve-lar-se-ia por completo? Creio que aplicar a perspectiva do presente sobre todo o passado, considerando-a como superior a este, não representa a verdadeira essência do pensamento histórico, mas caracteriza a positividade obstinada de um historicismo "ingênuo". O pensamento histórico tem sua dignidade e seu valor de verdade no reconhecimento de que "o presente" não existe, o que existe é um horizonte de futuro e passado, em constante mudança. Ainda não se concretizou (e creio que jamais poderá se concretizar) que alguma perspectiva, na qual se mostram ideias herdadas da tradição, possa ser a correta. A compreensão "histórica" não goza de nenhum privilégio sobre essa questão, nem a de hoje e nem a de amanhã. Ela mesma será abarcada pelos horizontes cambiantes e terá de mover-se com eles. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Antes disso, na época do romantismo alemão, a hermenêutica se orientara pelas questões centrais da filosofia por obra de Schleiermacher. Seu pensamento, baseado na filosofia do diálogo, como a concebia sobretudo Friedrich Schlegel, parte do significado metafísico da individualidade e de sua subordinação e tendência ao infinito. Em seguida, com Wilhelm Dilthey a hermenêutica adquiriu seu caráter propriamente filosófico. Em 1966, publicou-se pela primeira vez, entre os materiais diltheyanos sobre a vida de Schleiermacher reunidos em um segundo volume, o grande estudo do jovem Dilthey sobre hermenêutica. Desse estudo só conhecíamos alguns fragmentos, graças ao tratado acadêmico de 1900. Entre outras coisas ele mostra como as bases da problemática filosófica da hermenêutica radicam-se no idealismo alemão, mas não somente na descrição dialética de Schleiermacher sobre a compreensão como ação recíproca de subjetividade e objetividade, de [426] individualidade e identidade, mas sobretudo na crítica de Fichte ao conceito dogmático de substância e nas possibilidades que ele abriu para se pensar o conceito de força histórica. Baseia-se também em Hegel, na medida em que eleva o espírito "subjetivo" ao caráter de espírito "objetivo". Dilthey soube ver justamente a relevância pioneira da Historik (Historiografia) de Droysen para a metodologia das ciências do espírito, na medida em que Droysen aproveitou o legado idealista para uma autocompreensão adequada do método histórico. A herança dessa hermenêutica idealista continua viva até os nossos dias. Uma excelente apresentação sistemática e um desenvolvimento atual devemos ao historiador de direito Emilio Betti, cujo "manifesto" hermenêutico em língua alemã recolhe o resumo dessa tradição (cf. Betti). Ele fez sua exposição sistemática em uma obra muito abrangente. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Nesse sentido, a dimensão da teoria da ciência foi radicalmente ultrapassada. Nessa teoria, desde Dilthey até Betti o pensamento idealista foi utilizado em função da hermenêutica. Schleiermacher já havia destacado a conexão interna existente entre falar, compreender e interpretar, dissolvendo a vinculação tradicional do tema hermenêutico a "manifestações vitais fixadas por escrito" (Dilthey). Com isso, restituiu o caráter hermenêutico ao diálogo vivo. Mas também no estreitamento epistemológico que hermenêutica voltou a sofrer no século XIX não se puderam esconder as dificuldades que se opunham a uma teoria geral da interpretação inspirada no idealismo. O fato de a hermenêutica jurídica, que reivindica uma função legislativa, dever conectar-se à área da metodologia hermenêutica das ciências do espírito tornava-se tão obscuro como o sentido reprodutivo da interpretação que desempenha papel tão importante no teatro e na música. Ambos indicam para além da problemática inerente à teoria da ciência. Isso vale também para a teologia. Pois, mesmo que a hermenêutica teológica não lance mão de nenhuma outra fonte de inspiração ou de revelação para o ato de compreensão da Sagrada Escritura, o acontecimento querigmático da interpretação da Bíblia, como se dá na pregação ou no cuidado pastoral individual, enquanto fenômeno hermenêutico, não pode ser simplesmente desqualificado nem reduzido à problemática científica da teologia. Desse modo, foi preciso interrogar qual a necessidade de se abordar a unidade do problema hermenêutico num âmbito que ultrapassa a teoria da ciência e apreender o fenômeno da compreensão e da interpretação em um sentido mais originário. Mas então deveríamos ultrapassar também a ampliação universal da hermenêutica feita por Schleiermacher e sua fundamentação na unidade do pensamento e da fala. Isso porque deveríamos englobar também a hermenêutica jurídica, que antes estava estreitamente ligada à hermenêutica teológica, porque ambas incluíam "interpretação" e aplicação, isto é, o emprego de algo normativo ao caso particular. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Isto, e não um puro irracionalismo, é a contribuição feita pela filosofia da existência, a saber, reconhecer a decisão, a escolha ou como se queira chamar esse momento de todo juízo, como uma modalidade de razão. Jaspers formulou o caráter racional desse saber com a ideia de uma elucidação da existência enxertada nas [428] situações-limite, nas quais a ciência como saber apodíctico deixa o homem sozinho. Para descrever esse fenômeno seguiu-se utilizando o conceito de saber próprio da ciência, e nesse sentido Heidegger foi mais radical quando tomou o conceito de situação-limite como ponto de partida de uma guinada ontológica. Heidegger contrapôs-se ao conceito ontológico do ente simplesmente dado (Vorhanden), que forma a base da ciência. Partindo do conceito do "estar à mão" (zuhanden) e do ser-compreendido-em-função-de (Sich-auf-etwas-Verstehens), próprios do domínio prático-técnico do mundo, ele definiu a estrutura ontológica da "pre-sença" humana como "compreensão do ser", quer dizer, recorrendo à verdadeira ação clarificadora da razão. Desse modo, o conceito de hermenêutica adotado por Dilthey, ou seja, a arte de compreender estruturas de sentido, se converteu no paradoxo de uma "hermenêutica da facticidade". Essa hermenêutica continha uma crítica ontológica aos conceitos tradicionais de norma, especialmente ao conceito de valor (Rickert, Scheler) e ao conceito "platônico" de significado unívoco e ideal (Husserl). O ser em si, liberto da interpretação psicológica para poder ser atribuído à esfera do normativo na lógica e na ética, do ponto de vista puramente ontológico não passava de "ser simplesmente dado", carente de todo fundamento. Esse ser em si só não se encontrava carente de fundamento na medida em que o jovem Scheler pressupunha uma fundamentação baseada na teologia da criação que poderia servir de base ao conceito de valor, de bem e para o conceito de uma ordem de valores e de bens. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Mas a interpretação não se limita aos textos e à compreensão histórica que neles se deve alcançar. Todas as estruturas de sentido concebidas como textos, desde a natureza (interpretatio naturae, [435] Bacon), passando pela arte (cuja carência de conceitos [Kant] converte-se em exemplo preferencial de interpretação [Dilthey]), até as motivações conscientes ou inconscientes da ação humana, são suscetíveis de interpretação. Essa pretende mostrar não o que é óbvio mas as verdadeiras e latentes concreções de sentido da ação humana, mesmo que o faça revelando o ser real de cada um como o ser de sua própria história (P. Ricoeur), mostrando assim que os condicionamentos sociais e históricos determinam imperceptivelmente nosso pensamento. A psicanálise e a crítica da ideologia, como inimigos a se enfrentar ou aliados em uma síntese cética ou utópica (Adorno, Marcuse), devem submeter-se ainda a uma reflexão hermenêutica. Isso porque o que eles assim descobrem e compreendem não é independente da situação do intérprete. Nenhum campo interpretativo se dá aleatoriamente e muito menos "objetivamente". A reflexão hermenêutica mostra ao objetivismo do historicismo e da teoria positivista das ciências que eles agem a partir de pressupostos ocultos determinantes. Sobretudo a sociologia do saber e a crítica marxista da ideologia demonstraram aqui sua fecundidade hermenêutica. O valor cognitivo dessas interpretações só pode ser garantido mediante uma consciência crítica e uma reflexão da história dos efeitos. O fato de não possuírem a objetividade da science não desmerece seu valor cognitivo. Mas é só uma reflexão hermenêutica crítica, atuante nelas consciente ou inconscientemente, que faz aflorar sua verdade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Seja como for, dispomos atualmente de novos materiais de Dilthey que apresentam a filosofia de Schleiermacher desenhando de modo especial e com muita maestria seu pano de fundo contemporâneo, Fichte Novalis e Schlegel. É mérito de M. Redeker ter composto uma edição crítica minuciosa do segundo volume do Leben Schleiermachers (Vida de Schleiermacher) de Dilthey, a partir dos manuscritos legados. Assim, publica-se pela primeira vez a famosa e até agora desconhecida exposição de Dilthey da pré-história da hermenêutica nos séculos XVII e XVIII, da qual temos apenas um resumo no tratado acadêmico de 1900. Pela profundidade de seu estudo das fontes, pela universalidade de seu horizonte histórico e pela sua detalhada apresentação, supera em muito tudo que se fez até agora, não apenas as modestas contribuições que eu mesmo elaborei com muito esforço, mas também a obra estandártica de Joachim Wach. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Nesse entremeio temos também outros meios de informar-nos amplamente sobre a história mais antiga da hermenêutica, depois que Lutz Geldsetzer deu novo alento a uma série de novas edições hermenêuticas. Paralelo a Meier editou-se também uma importante perícope teórica de Flacius e do elegante Thibaut, os quais tornaram-se agora mais acessíveis. Mas há ainda outros trabalhos, como, por exemplo, Chlaudenius, do qual tratei com muita atenção. Geldsetzer proveu essas novas edições com introduções minuciosas, elaboradas com uma erudição surpreendente. É claro que o [464] acento principal tanto em Dilthey como nas introduções de Geldsetzer é bem diferente daquele que eu próprio coloquei em primeiro plano, apoiado em importantes exemplos, sobretudo de Spinoza e Chlaudenius. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Pude constatar isso de modo inequívoco no exemplo de Hermann Steinthal e no seguimento que Dilthey devota a Schleiermacher. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

A intenção teórica de meu próprio questionamento determinou o importante lugar que ocupa Wilhelm Dilthey no nexo dos problemas de minha investigação, junto com a energia com que acentuei sua atitude ambivalente frente à lógica indutiva de seu século e à herança romântico-idealista, o que no Dilthey tardio inclui não só Schleiermacher mas também o jovem Hegel. Nesse sentido, temos que destacar alguns novos aspectos. Com uma intenção oposta à minha, Peter Krausser rastreou o amplo interesse científico de Dilthey, ilustrando-o, em parte, com material das obras póstumas. A ênfase com que apresenta esse interesse de Dilthey é característica de uma geração que conheceu a Dilthey em sua atualidade tardia dos anos 20 do século XX. Para aqueles que tematizaram, primeiramente e com intenção teórica pessoal, o interesse de Dilthey pela historicidade e pela fundamentação das ciências do espírito, por exemplo, para Misch, Groethuysen e Spranger, mas também para Jaspers e Heidegger, sempre foi evidente que Dilthey teve grande participação nas ciências da natureza de seu tempo, sobretudo no seu ramo antropológico e psicológico. Krausser desenvolve a teoria estrutural de Dilthey com os meios de uma análise quase cibernética, de modo que a fundamentação das ciências do espírito segue exatamente o modelo das ciências da natureza. Mas isso sobre a base de dados tão vagos que qualquer cibernético persignar-se-ia diante disso. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

M. Riedel, igualmente, permanece mais interessado na crítica diltheiana da razão histórica, como ela é documentável especialmente a partir da época breslauiana, do que no Dilthey tardio, apesar de que, em sua nova impressão do Aufbau der geschichtiichen Welt in den Geisteswissenschaften (Estrutura do universo histórico nas ciências sociais), ele expõe a obra tardia de Dilthey. Ele põe um interessante acento crítico-social no interesse de Dilthey pelas ciências do espírito, considerando que a verdadeira relevância que Dilthey possui por causa de seu questionamento teórico-científico é tão intensa que o irracionalismo de que é acusado, enquanto defensor da filosofia da vida, não passaria de um simples mal-entendido. Aqui, portanto, a ambivalência que destaquei no posicionamento de Dilthey — sua indecisão entre teoria da ciência e filosofia da vida — articula-se exatamente no sentido oposto. Aos olhos desses autores, o iluminismo emancipatório em Dilthey representa não apenas o impulso mais profundo e mais forte, mas também e estranhamente o mais produtivo. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Desde então, continuei trabalhando nessa direção. E certamente não sou o único. A distinção que faz Wellek-Warren entre "denotativo e conotativo" exige uma análise mais precisa nessa direção. Na análise dos diversos modos de linguagem, busquei determinar sobretudo o significado que possui o escrito para a idealidade do elemento de linguagem. Recentemente Paul Ricoeur, em reflexões semelhantes, chegou aos mesmos resultados, a saber, o escrito confirma a identidade do sentido e testemunha a dissociação do lado psicológico do falar. Paralelamente isso esclarece de modo objetivo por que a hermenêutica que segue Schleiermacher, sobretudo Dilthey, apesar de toda sua preocupação psicológica, não assumiu a fundamentação romântica da hermenêutica no diálogo vital, mas retornou às "manifestações vitais fixadas por escrito" da antiga hermenêutica. Corresponde a isso o fato de Dilthey ver o triunfo da hermenêutica na interpretação literária. Frente a isso, designei a "conversação" como a estrutura do acordo na linguagem, caracterizando-a como dialética de pergunta e resposta. Isso confirma-se plenamente também no nosso "ser para o texto". As perguntas que um texto nos impõe para sua interpretação só podem ser compreendidas se o texto for compreendido, por seu turno, como resposta a uma pergunta. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Ali enfrentei logo novas experiências de estudo. Diferentemente das universidades das cidades grandes, as "pequenas" levavam [481] ainda uma verdadeira vida acadêmica, uma "vida de ideias" no sentido de Humboldt, e a faculdade de filosofia contava em cada matéria, em cada professor, com um "círculo" de estudos, de modo que nos sentíamos atraídos para múltiplos interesses. Foi quando, em Marburgo, começou a crítica à teologia histórica, empreendida pela chamada teologia dialética, seguindo o exemplo de Barth em seu comentário à Carta aos Romanos. Os jovens extremaram sua crítica ao metodologismo das escolas neokantianas, enquanto elogiavam a descrição fenomenológica de Husserl. Mas foi sobretudo a filosofia da vida, por trás da qual estava Friedrich Nietzsche, o "acontecimento" europeu que impregnou todo nosso sentimento cósmico, e em conexão com ele, ocupou os jovens espíritos com o problema do relativismo histórico debatido à luz de Wilhelm Dilthey e de Ernst Troeltsch. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

No outono de 1947, após dois anos de atividade na reitoria, aceitei um convite que me fez partir para Frankfurt/Main e me colocou de volta ao ensino acadêmico pleno e ao trabalho de investigação, na medida em que o permitiam as circunstâncias de trabalho. Nos dois anos que trabalhei em Frankfurt procurei adaptar-me [492] à situação precária dos estudantes, não só através do ensino intensivo mas também com algumas publicações, como a metafísica XII de Aristóteles (em grego e em alemão) e o Grundriss einer Geschichte der Philosophie (Esboço de uma história da filosofia) de Dilthey, ambas publicadas imediatamente pela Editora Klostermann. Foi importante também o grande congresso celebrado em Mendoza (Argentina) em fevereiro de 1949, onde entramos em um primeiro contato com antigos amigos judeus e com filósofos de outros países (Itália, França, Espanha e países da América do Sul). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

O que era essa hermenêutica filosófica? Em que difere da hermenêutica romântica, que nasceu quando Schleiermacher aprofundou uma antiga disciplina teológica, culminou na hermenêutica das ciências do espírito de Dilthey e acabou sendo considerada como uma metodologia das ciências do espírito? Com que direito meu próprio ensaio podia chamar-se de hermenêutica filosófica? VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

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