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Léxico Filosofia

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compreensão

Definition:
Verstehen, verstehen, Verständnis

Uma tentativa de passar da representação do ente [Vorstellen des Seienden] enquanto tal para o pensamento [Denken] da verdade do ser [Wahrheit des Seins] deve, partindo daquela representação [Vorstellen], também representar ainda, de certa maneira, a verdade do ser, para que esta, finalmente, se mostre como representação inadequada para aquilo que deve ser pensado. Esta relação que vem da metafísica e que procura penetrar na referência da verdade do ser ao ser humano é concebida como compreensão [Verstehen]. Mas a compreensão é pensada aqui, ao mesmo tempo, a partir do desvelamento do ser [Unverborgenheit des Seins]. A compreensão é o projeto ekstático jogado, quer dizer, o projeto in-sistente no âmbito do aberto. O âmbito que no projeto se oferece como o aberto, para que nele algo (aqui o ser) se mostre enquanto algo (aqui o ser enquanto tal em seu desvelamento) se chama sentido (cf. Ser e Tempo, p. 151). "Sentido do ser" [Sinn von Sein] e "verdade do ser" [Wahrheit des Seins] dizem a mesma coisa. [MHeidegger O RETORNO AO FUNDAMENTO DA METAFÍSICA]


O questionado da questão a ser elaborada é o ser, o que determina o ente como ente, o em vista de que o ente já está sempre sendo compreendido, em qualquer discussão. O ser dos entes não “é” em si mesmo um outro ente. O primeiro passo filosófico na COMPREENSÃO do problema do ser consiste em não mython tina diegeisthai. “Não contar estórias” significa: não determinar a proveniência do ente como ente, reconduzindo-o a um outro ente, como se ser tivesse o caráter de um ente possível. Enquanto questionado, ser exige, portanto, um modo próprio de demonstração que se distingue essencialmente da descoberta de um ente. Em consonância, o perguntado, o sentido de ser, requer também uma conceituação própria que, por sua vez, também se diferencia dos conceitos em que o ente alcança a determinação de seu significado. STMSC: §2

Mas será que uma tal empresa não cai num manifesto círculo vicioso? Ter que determinar primeiro o ente em seu ser e, nessa base, querer colocar a questão do ser, não será andar em círculo? Para se elaborar a questão, não se está já “pressupondo” aquilo que somente a resposta à questão poderá proporcionar? Ao se refletir sobre os caminhos concretos de uma investigação, é sempre estéril recorrer a objeções formais como a acusação de um “círculo vicioso”, facilmente aduzível, no âmbito de uma reflexão sobre os princípios. Essas objeções formais não contribuem em nada para a COMPREENSÃO do problema, constituindo mesmo um obstáculo para se adentrar o campo da investigação. STMSC: §2

De fato, não há nenhum círculo vicioso no questionamento da questão. O ente pode vir a ser determinado em seu ser sem que, para isso, seja necessário já dispor de um conceito explícito sobre o sentido de ser. Não fosse assim, não poderia ter havido até hoje nenhum conhecimento ontológico, cujo teor fático não pode ser negado. Sem dúvida, até hoje, em toda ontologia, “ser” é pressuposto, embora não como um conceito à disposição, não como o que se busca. “Pressupor” ser possui o caráter de uma visualização preliminar de ser, de tal maneira que, partindo dessa visualização, o ente previamente dado se articule antecipadamente em seu ser. Essa visualização de ser, orientadora do questionamento, nasce da COMPREENSÃO mediana de ser em que nos movemos desde sempre e que, em última instância {CH: isto é, desde o princípio}, pertence à própria constituição essencial da presença [Dasein]. Tal “pressupor” nada tem a ver com o estabelecimento de um princípio indemonstrado do qual se deduziria uma conclusão. Não pode haver “círculo vicioso” na colocação da questão sobre o sentido de ser porque, na resposta, não está em jogo uma fundamentação dedutiva, mas uma liberação demonstrativa das fundações. STMSC: §2

Contudo esse questionar – a ontologia no sentido mais amplo, independente de correntes e tendências ontológicas – necessita de um fio condutor. Sem dúvida, o questionar ontológico é mais originário do que as pesquisas ônticas das ciências positivas. No entanto, permanecerá ingênuo e opaco, se as suas pesquisas sobre o ser dos entes deixarem indiscutido o sentido de ser em geral. A tarefa ontológica de uma genealogia dos diversos modos possíveis de ser, que não se deve construir de maneira dedutiva, exige uma COMPREENSÃO prévia do “que entendemos propriamente pela expressão ser. STMSC: §3

A presença [Dasein] sempre se compreende a si mesma a partir de sua existência, de uma possibilidade própria de ser ou não ser ela mesma. Essas possibilidades a própria presença [Dasein] as escolheu, mergulhou nelas ou ali simplesmente cresceu. No modo de assumir-se ou perder-se, a existência só se decide a partir de cada presença [Dasein] em si mesma. A questão da existência só poderá ser esclarecida sempre pelo próprio existir. A COMPREENSÃO de si mesma que assim se perfaz, nós a chamamos de COMPREENSÃO existenciária. A questão da existência é um “assunto” ôntico da presença [Dasein]. Para isso não é necessária a transparência teórica da estrutura ontológica da existência. A questão acerca dessa estrutura pretende desdobrar e discutir o que constitui {CH: em todo caso, de modo algum uma filosofia existencial} a existência. Chamamos de existencialidade o conjunto dessas estruturas. A análise da existencialidade não possui o caráter de uma COMPREENSÃO existenciária e sim de uma COMPREENSÃO existencial. Em sua possibilidade e necessidade, a tarefa de uma analítica existencial da presença [Dasein] já se acha prelineada na constituição ôntica da presença [Dasein]. STMSC: §4

Quando a interpretação do sentido de ser torna-se uma tarefa, a presença [Dasein] não é apenas o ente a ser interrogado primeiro. É, sobretudo, o ente que, desde sempre, se relaciona e comporta com o que se questiona nessa questão. A questão do ser não é senão a radicalização de uma tendência ontológica essencial, própria da presença [Dasein], a saber, da COMPREENSÃO pré-ontológica de ser. STMSC: §4

Ao caracterizar as tarefas incluídas na “colocação” da questão do ser, mostrou-se que não somente é necessário fixar o ente que deve funcionar como o primeiro a ser interrogado, mas que também se deve apropriar e assegurar explicitamente o modo adequado de se aproximar desse ente. Já se discutiu que ente deve assumir o papel principal na questão do ser. Mas como é que esse ente, a presença [Dasein], haverá de se tornar acessível e deverá ser encarado numa COMPREENSÃO interpretativa? STMSC: §5

De há muito que o “tempo” funciona como critério ontológico, ou melhor, ôntico, para uma distinção ingênua das diversas regiões dos entes. Distingue-se um ente “temporal” (os processos naturais e os acontecimentos da história) de um ente “não temporal” (as relações numéricas e espaciais). Costuma-se opor o sentido “atemporal” das proposições ao curso “temporal” de sua articulação e expressão. Descobre-se ainda um “abismo” entre o ente “temporal” e o eterno “supratemporal” e se busca, sempre de novo, estender uma ponte entre ambos. “Temporal” diz aqui o que está sendo a cada vez “no tempo”, uma determinação que sem dúvida é ainda bastante obscura. Persiste o fato de, na acepção de ser e estar no tempo, o tempo servir como critério para distinguir as regiões de ser. E, não obstante, até hoje não se questionou ou investigou como o tempo chegou a desempenhar essa função ontológica fundamental e com que direito funciona como um critério dessa espécie e, por fim e sobretudo, como se exprime uma possível importância ontológica verdadeira do tempo nessa utilização ontologicamente ingênua. Dentro do horizonte da COMPREENSÃO “vulgar”, o “tempo” acabou tendo, por assim dizer, “por si mesmo”, essa função ontológica “evidente” e nela se manteve até hoje. STMSC: §5

A interpretação preparatória das estruturas fundamentais da presença [Dasein] em seu modo de ser mais próximo e mediano, no qual ela é antes de tudo histórica, há de revelar o seguinte: a presença [Dasein] não somente tende a decair no mundo em que é e está, e de interpretar a si mesma pela luz que dele emana. Justamente com isso, a presença [Dasein] também decai em sua tradição, apreendida de modo mais ou menos explícito. A tradição lhe retira a capacidade de se guiar por si mesma, de questionar e escolher a si mesma. O mesmo se pode dizer, em última instância, sobre a COMPREENSÃO e sua possibilidade de construção, que lança suas raízes no ser mais próprio da presença [Dasein], isto é, no ser ontológico. STMSC: §6

Descartes, no entanto, não pára nessa omissão e, consequentemente, na completa indeterminação ontológica da res cogitans sive mens sive animus. Nas Meditationes, Descartes desenvolve suas investigações fundamentais no sentido de aplicar a ontologia medieval ao ente que ele estabelece como o fundamentum inconcussum. A res cogitans é determinada, ontologicamente, como ens e o sentido do ser deste ens é estabelecido pela ontologia medieval na COMPREENSÃO do ens como ens creatum. Como ens infinitum, Deus é o ens increatum. Ser criado, no sentido amplo de ser produzido, constitui um momento essencial na estrutura do antigo conceito de ser. O que, portanto, aparece como um novo início da filosofia revela-se como o enraizamento de um preconceito fatal. Com base neste preconceito, a posteridade moderna omitiu uma análise ontológica explícita do “ânimo”, que deveria ser conduzida pela questão do ser e, ao mesmo tempo, como uma discussão crítica da antiga ontologia legada pela tradição. STMSC: §6

A problemática da ontologia grega, bem como de toda ontologia, deve ser orientada pela própria presença [Dasein]. Tanto em sua definição vulgar como em sua “definição” filosófica, a presença [Dasein], isto é, o ser do homem, caracteriza-se como zoon logon echon, o ser vivo cujo modo de ser é, essencialmente, determinado pela possibilidade de falar. O legein (cf. §7 B) fornece a orientação para que se obtenham as estruturas ontológicas dos entes que nos vêm ao encontro nos dizeres e discussões. É por isso que a ontologia antiga, elaborada por Platão, torna-se uma “dialética”. Com o progresso da elaboração dessa orientação ontológica, isto é, da “hermenêutica” do logos, aumenta a possibilidade de uma apreensão mais radical do problema do ser. A “dialética”, que constituía uma verdadeira perplexidade filosófica, torna-se então supérflua. É também por isso que Aristóteles já não possui “nenhuma COMPREENSÃO” para ela. É que Aristóteles a elevou para um plano muito mais radical e, assim, a superou. O próprio legein ou noein, a simples percepção de algo simplesmente dado, que já Parmênides havia tomado como guia na interpretação de ser, possui a estrutura temporânea da pura “atualização” (Gegenwärtigens) de uma coisa. O ente que se manifesta nessa atualização e que é entendido como o ente próprio é, portanto, interpretado com referência ao atualmente presente, ou seja, concebido como vigência (ousia). STMSC: §6

A expressão grega phainomenon, a que remonta o termo “fenômeno”, deriva do verbo phainesthai. phainesthai significa: mostrar-se e, por isso, phainomenon diz o que se mostra, o que se revela. Já em si mesmo, porém, phainesthai é a forma média de phaino – trazer para a luz do dia, pôr no claro. phaino pertence à raiz pha, como phos, a luz, a claridade, isto é, o elemento, o meio, em que alguma coisa pode vir a se revelar e a se tornar visível em si mesma. Deve-se manter, portanto, como significado da expressão “fenômeno” o que se revela, o que se mostra em si mesmo. Ta phainomena, “os fenômenos”, constituem, pois, a totalidade do que está à luz do dia ou se pode pôr à luz, o que os gregos identificavam, algumas vezes, simplesmente com ta onta (os entes), a totalidade de tudo que é. Ora, o ente pode-se mostrar por si mesmo de várias maneiras, segundo sua via e modo de acesso. Há até a possibilidade de o ente mostrar-se como aquilo que, em si mesmo, ele não é. Neste modo de mostrar-se, o ente “se faz ver assim como...” Chamamos de aparecer, parecer e aparência (Scheinen) a esse modo de mostrar-se. Em grego, a expressão phainomenon, “fenômeno”, possui também o significado do que “se faz ver assim como”, da “aparência”, do que “parece e aparece”; phainomenon agathon designa um bem, que se deixa e faz ver como se fosse um bem, mas que “na realidade” não é assim como se dá e apresenta. A COMPREENSÃO posterior de fenômeno depende de uma visão de como ambos os significados de fenômeno (fenômeno como o que se mostra, e fenômeno como aparecer, parecer e aparência) se interrelacionam em sua estrutura. Somente na medida em que algo pretende mostrar-se em seu sentido, isto é, ser fenômeno, é que pode mostrar-se como algo que ele mesmo não é, pode “apenas se fazer ver assim como...” No significado de aparecer, parecer e aparência, também está incluído o significado originário de fenômeno como o que se revela, significado que fundamenta e sustenta o anterior. Terminologicamente reservamos a palavra fenômeno para designar o significado positivo e originário, distinguimos fenômeno de aparecer, parecer e aparência, entendidos como uma modificação privativa de fenômeno. O que ambos exprimem, porém, nada tem a ver, em princípio, com o que se chama de “manifestação” (Erscheinung) e muito menos com “mera manifestação” (blosse Erscheinung). STMSC: §7

Quer no sentido de velamento ou obstrução, quer ainda como distorção, o próprio encobrimento dispõe, por sua vez, de dupla possibilidade. Há encobrimento casual e necessário, isto é, que se funda e baseia no próprio modo de ser do descoberto. Enquanto enunciado comunicado, todo e qualquer conceito e proposição fenomenológicos, hauridos originariamente, estão expostos à possibilidade de desvirtuamento. Perdem sua solidez, transformam-se em tese solta no ar e se transmitem numa COMPREENSÃO vazia. A possibilidade de uma petrificação, enrijecimento e inapreensão do que se apreendeu originariamente acha-se no próprio trabalho concreto da fenomenologia. Toda a dificuldade destas investigações reside justamente em torná-las críticas a respeito de si mesmas, num sentido positivo. STMSC: §7

As investigações que se seguem tornaram-se possíveis apenas sobre o solo estabelecido por Edmund Husserl, cujas Investigações lógicas fizeram nascer a fenomenologia. As explicitações do conceito preliminar de fenomenologia demonstraram que o que ela possui de essencial não é ser {CH: isto é, não uma corrente filosófico-trans-cendental do idealismo crítico de Kant} uma “corrente” filosófica real. Mais elevada do que a realidade está a possibilidade. A COMPREENSÃO da fenomenologia depende unicamente de se apreendê-la como possibilidade. STMSC: §7

A questão sobre o sentido de ser é a mais universal e a mais vazia; entretanto, ela abriga igualmente a possibilidade de sua mais aguda singularização em cada presença [Dasein] {CH: propriamente: realização da insistência no pre [das Da]}. É necessário um fio condutor concreto a fim de se obter o conceito fundamental de “ser” e de se delinear a conceituação ontológica por ele exigida, bem como suas derivações necessárias. A universalidade do conceito de ser não contradiz a “especialidade” da investigação, qual seja, a de encaminhar-se, seguindo a interpretação especial de um ente determinado, a presença [Dasein]. É na presença [Dasein] que se há de encontrar o horizonte para a COMPREENSÃO e possível interpretação do ser. Em si mesma, porém, a presença [Dasein] é “histórica”, de maneira que o esclarecimento ontológico próprio deste ente torna-se sempre e necessariamente uma interpretação “referida a fatos históricos”. STMSC: §8

Por mais fácil que seja a delimitação formal da problemática ontológica face às pesquisas ônticas, a execução e, sobretudo, o ponto de partida de uma analítica existencial da presença [Dasein] não está desprovida de dificuldades. Em sua tarefa, inclui-se uma exigência, que de há muito inquieta a {CH: absolutamente! Pois o conceito de mundo não foi de modo algum concebido} filosofia, embora as tentativas de satisfazê-la sempre tenham fracassado: a saber, elaborar a ideia de um “conceito natural de mundo”. A abundância de conhecimentos disponíveis das culturas e formas de presença [Dasein] mais diversas e mais distantes parece favorecer o desenvolvimento frutífero dessa tarefa. No entanto, isto é apenas uma aparência. No fundo, tal acúmulo de conhecimento leva apenas a se desconhecer o problema propriamente dito. A comparação sincrética de tudo com tudo e a redução de tudo a tipos ainda não garante de per si um conhecimento autêntico da essência. A possibilidade de se dominar a multiplicidade variada dos fenômenos num quadro de conjunto não assegura uma COMPREENSÃO real do que é assim ordenado. O princípio autêntico de ordenamento tem seu próprio conteúdo que nunca poderá ser encontrado pelo ordenamento, já que este já o pressupõe. Assim, para o ordenamento das concepções de mundo, faz-se necessária uma ideia explícita de mundo em geral. E, no caso de “mundo” já ser em si mesmo um constitutivo da presença [Dasein], a elaboração conceitual do fenômeno do mundo requer uma visão penetrante das estruturas básicas da presença [Dasein]. STMSC: §11

As caracterizações positivas e as considerações negativas deste capítulo tinham por finalidade encaminhar, de modo adequado, a COMPREENSÃO da tendência e da atitude interrogativa da interpretação que vai se seguir. A ontologia só pode contribuir indiretamente para fomentar as disciplinas positivas existentes. Ela possui por si mesma uma finalidade autônoma, caso a questão do ser constitua o estímulo de toda busca científica, além e acima de uma simples tomada de conhecimento dos entes. STMSC: §11

Nas discussões preparatórias (§9), já destacamos caracteres de ser que iluminarão, de modo seguro, as investigações posteriores. Sua concretude estrutural, no entanto, só poderá ser alcança da ao longo da investigação. A presença [Dasein] é um sendo, que em seu ser relaciona-se com esse ser numa COMPREENSÃO. Com isso, indica-se o conceito formal de existência. A presença [Dasein] existe. A presença [Dasein] é ademais um sendo, que sempre eu mesmo sou. Ser sempre minha pertence à existência da presença [Dasein] como condição de possibilidade de propriedade e impropriedade. A presença [Dasein] existe sempre num desses modos, mesmo quando existe numa indiferença modal para com esses modos. STMSC: §12

Como existencial, o “ser-junto” ao mundo nunca indica um simplesmente dar-se em conjunto de coisas que ocorrem. Não há nenhuma espécie de “justaposição” de um ente chamado “presença [Dasein]” a um outro ente chamado “mundo”. Por vezes, sem dúvida, costumamos exprimir com os recursos da língua o conjunto de dois entes simplesmente dados, dizendo: “a mesa está junto à porta”, “a cadeira ‘toca’ a parede”. Rigorosamente, nunca se poderá falar aqui de um “tocar”, não porque sempre se pode constatar, num exame preciso, um espaço entre a cadeira e a parede, mas porque, em princípio, a cadeira não pode tocar a parede mesmo que o espaço entre ambas fosse igual a zero. Para tanto, seria necessário pressupor que a parede viesse ao encontro “da” cadeira. Um ente só poderá tocar um outro ente simplesmente dado dentro do mundo se, por natureza, tiver o modo do ser-em, se, com sua presença [Dasein], já se lhe houver sido descoberto um mundo. Pois a partir do mundo o ente poderá, então, revelar-se no toque e, assim, tornar-se acessível em seu ser simplesmente dado. Dois entes que se dão simplesmente dentro do mundo e que, além disso, são em si mesmos destituídos de mundo, nunca podem “tocar”-se, nunca um deles pode “ser e estar junto ao” outro. Não pode faltar o acréscimo: “e, além disso, são em si mesmos destituídos de mundo”, porque também o ente que não é destituído de mundo, por exemplo, a própria presença [Dasein], se dá simplesmente “no” mundo ou, mais precisamente, também pode ser apreendido, com certa razão e dentro de certos limites, como algo simplesmente dado. Para isso, no entanto, é preciso que se desconsidere inteiramente, isto é, que não se veja a constituição existencial do ser-em. Mas não se deve confundir essa possibilidade de apreender a “presença [Dasein]” como um dado e somente como simples dado com um modo de “ser simplesmente dado”, próprio da presença [Dasein]. Pois este ser simplesmente dado não é acessível quando se desconsideram as estruturas específicas da presença [Dasein]. Ele só se torna acessível em sua COMPREENSÃO prévia. A presença [Dasein] compreende o seu ser mais próprio no sentido de um certo “ser simplesmente dado fatual”. Na verdade, a “fatualidade” do fato da própria presença [Dasein] é, em seu ser, fundamentalmente diferente da ocorrência fatual de uma espécie qualquer de pedras. Chamamos de facticidade o caráter de fatualidade do fato da presença [Dasein] em que, como tal, cada presença [Dasein] sempre é. À luz da elaboração das constituições existenciais básicas da presença [Dasein], a estrutura complexa desta determinação ontológica só poderá ser apreendida em si mesma como problema. O conceito de facticidade abriga em si o ser-no-mundo de um ente “intramundano”, de maneira que este ente possa ser compreendido como algo que, em seu “destino”, está ligado ao dos entes que lhe vêm ao encontro dentro de seu próprio mundo. STMSC: §12

Não apenas na epistemologia, mas na maior parte das vezes, toma-se o conhecimento do mundo exclusivamente como exemplo do fenômeno de ser-em, pois se entende a atitude prática como “não teórica” e “ateórica”. Porque este primado do conhecimento desorienta a COMPREENSÃO do modo de ser mais próprio do conhecimento, deve-se ressaltar, de maneira ainda mais precisa, o ser-no-mundo, no tocante ao conhecimento do mundo, e torná-lo visível como uma “modalidade” existencial do ser-em. STMSC: §12

O modo de lidar, talhado segundo o instrumento, e único lugar em que ele se pode mostrar genuinamente em seu ser como, por exemplo, o martelar com o martelo, não apreende tematicamente esse ente como uma coisa que apenas ocorre, da mesma maneira que o uso não sabe da estrutura do instrumento como tal. O martelar não somente tido sabe do caráter instrumental do martelo como se apropriou de tal maneira desse instrumento que uma adequação mais perfeita não seria possível. Ao se lidar com o instrumento no uso, a ocupação se subordina ao ser para (Um-zu) constitutivo do respectivo instrumento; quanto menos se fixar na coisa martelo, mais se sabe usá-lo, mais originário se torna o relacionamento com ele e mais desvelado é o modo em que se dá ao encontro naquilo que ele é, ou seja, como instrumento. O próprio martelar é que descobre o “manuseio” especifico do martelo. Denominamos de manualidade o modo de ser do instrumento em que ele se revela por si mesmo. O instrumento está disponível para o manuseio, em sentido amplo, unicamente porque todo instrumento possui esse “ser-em-si”, não sendo o que simplesmente ocorre. Por maior que seja o grau em que se visualize precisamente a “configuração” das coisas na qual elas aparecem desta ou daquela maneira, nunca se conseguirá descobrir o que é o manual. A visualização puramente “teórica” das coisas carece de uma COMPREENSÃO da manualidade. O modo de lidar com os instrumentos no uso e no manuseio não é porém cego. Possui seu modo próprio de ver que dirige o manuseio e lhe confere uma segurança especifica. O modo de lidar com instrumentos subordina-se a multiplicidade de referências do “ser para” (Um-zu). A visão desse subordinar-se é a circunvisão. STMSC: §15

No modo de lidar cotidiano, a manualidade do sinal e a sua surpresa, que pode ser produzida segundo várias intenções e modos, documentam não apenas a não-surpresa constitutiva do que mais imediatamente está à mão. Também indicam que é o próprio sinal que retira a sua surpresa da não-surpresa do todo instrumental, à mão na cotidianidade de modo “evidente” como, por exemplo, o costume de se dar um “nó no lenço” como marca de lembrança. O que ele mostra é que há sempre algo com que se ocupar na circunvisão da cotidianidade. Esse sinal pode mostrar muitas coisas e das mais diversas espécies. A envergadura do que se pode mostrar nesse sinal corresponde à limitação do uso e da COMPREENSÃO. Na maior parte das vezes, enquanto sinal, ele não apenas está à mão somente para o seu “inventor” como, mesmo para ele, pode tornar-se inacessível, de tal maneira que um segundo sinal se faz necessário para o emprego possível do primeiro pela circunvisão. Embora não podendo ser usado como sinal, o nó não perde o seu caráter de sinal, adquirindo uma importunidade inquietante. STMSC: §17

O compreender, que a seguir será analisado mais profundamente (cf. §31), contém, numa abertura prévia, as remissões mencionadas. Detendo-se nessa familiaridade, o compreender atém-se a estas remissões como o contexto em que se movem as suas referências. O próprio compreender se deixa referenciar nessas e para essas remissões. Apreendemos o caráter de remissão dessas remissões de referência como ação de signi-ficar. Na familiaridade com essas remissões, a presença [Dasein] “significa” para si mesma, ela oferece o seu ser e seu poder-ser a si mesma para uma COMPREENSÃO originária, no tocante ao ser-no-mundo. O em virtude de significa um ser para, este um ser para isso, esse um estar junto em que se deixa e faz em conjunto, esse um estar com da conjuntura. Essas remissões estão acopladas entre si como totalidade originária. Elas são o que são enquanto ação de signi-ficar (Be-deuten), onde a própria presença [Dasein] se dá a compreender previamente a si mesma no seu ser-no-mundo. Chamamos de significância o todo das remissões] dessa ação de significar (Bedeuten). A significância é o que constitui a estrutura de mundo em que a presença [Dasein] {CH: a presença [Dasein] em que o homem vigora} já é sempre como é. Em sua familiaridade com a significância, a presença [Dasein] é a condição ôntica de possibilidade para se poder descobrir os entes que num mundo vêm ao encontro no modo de ser da conjuntura (manualidade) e que se podem anunciar em seu em-si. A presença [Dasein] como tal é sempre esta presença [Dasein] com a qual já se descobre essencialmente um contexto de manuais. Sendo, a presença [Dasein] já se {CH: mas não como uma ação e feito, dotados de eu, de um sujeito. Mas, presença [Dasein] e ser.} referiu a um “mundo” que lhe vem ao encontro, pois pertence essencialmente a seu ser uma referencialidade. STMSC: §18

Somente respondendo a essas questões poder-se-á alcançar uma COMPREENSÃO positiva da problemática do mundo, demostrar a origem de seus desvios e comprovar o fundamento de direito para se recusar a ontologia tradicional do mundo. STMSC: §21

Quando, porém, lembramos que a espacialidade manifestamente também constitui o ente intramundano, torna-se, enfim, possível “salvar” a análise cartesiana do “mundo”. Com a explicitação radical da extensio como praesuppositum de toda determinação da res corpórea, Descartes preparou a COMPREENSÃO de um a priori, cujo conteúdo foi fixado posteriormente por Kant de maneira mais penetrante. Dentro de certos limites, a análise da extensio independe da falta de uma interpretação explícita do ser deste ente dotado de extensão. O ponto de partida da extensão como determinação fundamental do “mundo” possui a sua razão fenomenal, embora nem a espacialidade do mundo, nem a espacialidade primeiramente descoberta dos entes que vêm ao encontro no mundo circundante e, sobretudo, a espacialidade da própria presença [Dasein] possam por ela ser compreendidas ontologicamente. STMSC: §21

Enquanto ser-no-mundo, a presença [Dasein] já descobriu a cada passo um “mundo”. Caracterizou-se esse descobrir, fundado na mundanidade do mundo, como liberação dos entes numa totalidade conjuntural. A ação liberadora de deixar e fazer em conjunto se perfaz no modo da referência, guiada pela circunvisão e fundada numa COMPREENSÃO prévia da significância. Mostra-se assim que, dentro de uma circunvisão, o ser-no-mundo é espacial. E somente porque a presença [Dasein] é espacial, tanto no modo de dis-tanciamento quanto no modo de direcionamento, o que se acha à mão no mundo circundante pode vir ao encontro em sua espacialidade. A liberação de uma totalidade conjuntural é, de maneira igualmente originária, um deixar e fazer em conjunto que, numa região, dis-tancia e direciona, ou seja, libera a pertinência espacial do que está à mão. Na significância, familiar à presença [Dasein] nas ocupações de seu ser-em, reside também a abertura essencial do espaço. STMSC: §24

A aporia ainda hoje presente nas interpretações do ser do espaço funda-se não tanto num conhecimento insuficiente dos conteúdos do próprio espaço, mas na falta de uma clareza de princípio a respeito das possibilidades de ser e de sua interpretação ontológica. O decisivo para uma COMPREENSÃO do problema ontológico do espaço consiste em libertar a questão sobre o ser do espaço da estreiteza dos conceitos ontológicos disponíveis e em sua maioria não elaborados. E, além disso, em esclarecer pelas possibilidades do ser em geral a problemática do ser do espaço, no tocante ao próprio fenômeno e às diversas espacialidades fenomenais. STMSC: §24

O mundo libera não apenas o manual enquanto ente que vem ao encontro dentro do mundo, mas também presença [Dasein], os outros em sua co-presença [Dasein]. Contudo, esse ente liberado no mundo circundante, de acordo com seu sentido mais próprio de ser, é um ser-em um mesmo mundo, em que é co-presente, encontrando-se com outros. A mundanidade foi interpretada (§18) como totalidade referencial da significância. Na familiaridade com ela, dotada de COMPREENSÃO prévia, a presença [Dasein] deixa e faz vir ao encontro o manual enquanto algo que se descobre em sua conjuntura. O contexto referencial da significância ancora-se no ser da presença [Dasein] para o seu ser mais próprio, a ponto de, essencialmente, não poder ter nenhuma conjuntura, sendo o ser em virtude do qual a própria presença [Dasein] é como é. STMSC: §26

Que “empatia” não constitua um fenômeno existencial originário e nem um conhecer, isso não significa, porém, que ela não coloque problemas a seu respeito. Sua hermenêutica específica terá de mostrar como as diversas possibilidades ontológicas da própria presença [Dasein] desviam e impedem a convivência e seu respectivo conhecimento, de tal modo que um seu “compreender” autêntico se vê sufocado, e a presença [Dasein] passa a recorrer a seus sucedâneos; ademais, terá também de mostrar a possibilidade que supõe a condição existencial positiva de uma COMPREENSÃO adequada do outro. A análise mostrou: o ser-com é um constitutivo existencial do ser-no-mundo. A co-presença [Dasein] se comprova como modo de ser próprio dos entes que vêm ao encontro dentro do mundo. Porque a presença [Dasein] é, ela possui o modo de ser da convivência. Esta não pode ser concebida como o resultado da soma de vários “sujeitos”. O deparar-se com o contingente numérico de “sujeitos” só é possível quando os outros que vêm ao encontro na co-presença [Dasein] são tratados meramente como “números”. Tal contingente só se descobre por meio de um determinado ser-com e para os outros. Esse ser-com “desconsiderado” “conta” os outros sem “levá-los em conta” seriamente, sem querer “ter algo a ver” com eles. STMSC: §26

Com a interpretação do ser-com e do ser-si-mesmo no impessoal, respondeu-se a pergunta quem da convivência cotidiana. Estas reflexões propiciam, ao mesmo tempo, uma COMPREENSÃO concreta da constituição fundamental da presença [Dasein]. O ser-no-mundo tornou-se visível em sua cotidianidade e em sua medianidade. STMSC: §27

Em B (o ser cotidiano do pre [das Da] e a decadência da presença [Dasein]), de acordo com o fenômeno constitutivo da fala, da visão inserida na COMPREENSÃO e, de acordo com a interpretação pertinente (significado), serão analisados, enquanto modos existenciais do ser cotidiano do pre [das Da]: a falação (§35), a curiosidade (§36), a ambiguidade (§37). Nesses fenômenos, torna-se visível um modo fundamental de ser do pre [das Da] que interpretamos como decadência. Trata-se de uma “cadência”, que mostra um modo existencial próprio de movimentação (§38). STMSC: §28

Isto é o que mostra o mau-humor. Nele, a presença [Dasein] se faz cega para si mesma, o mundo circundante da ocupação se vela, a circunvisão da ocupação se desencaminha. A disposição é tão pouco trabalhada pela reflexão que faz com que a presença [Dasein] se precipite para o “mundo” das ocupações numa dedicação e abandono irrefletidos. O humor se precipita. Ele não vem de “fora” nem de “dentro”. Cresce a partir de si mesmo como modo de ser-no-mundo. Com isso, porém, passamos de uma delimitação negativa da disposição frente à apreensão reflexiva do “interior” para uma COMPREENSÃO positiva de seu caráter de abertura. O humor já abriu o ser-no-mundo em sua totalidade e só assim torna possível um direcionar-se para... O estado de humor não remete, de início, a algo psíquico e não é, em si mesmo, um estado interior que, então, se exteriorizasse de forma enigmática, dando cor as coisas e pessoas. Nisto mostra-se o segundo caráter essencial da disposição: ela é um modo existencial básico da abertura igualmente originária de mundo, de co-presença [Dasein] e existência, pois também este modo é em si mesmo ser-no-mundo. STMSC: §29

Além dessas duas determinações essenciais da disposição aqui explicitadas: a abertura do estar-lançado e a abertura do ser-no-mundo em sua totalidade, deve-se considerar ainda uma terceira, que contribui sobremaneira para uma COMPREENSÃO mais profunda da mundanidade do mundo. Como dissemos anteriormente, o mundo que já se abriu deixa e faz com que o ente intramundano venha ao encontro. Essa abertura prévia do mundo, que pertence ao ser-em, também se constitui de disposição. Deixar e fazer vir ao encontro é, primariamente, uma circunvisão e não simplesmente sensação ou observação. Numa ocupação dotada de circunvisão, deixar e fazer vir ao encontro tem o caráter de ser atingido, como agora se pode ver mais agudamente a partir da disposição. Do ponto de vista ontológico, inutilidade, resistência, ameaça, são apenas possíveis, porque o ser-em como tal se acha determinado previamente em sua existência, de modo a poder ser tocado dessa maneira pelo que vem ao encontro dentro do mundo. Esse ser tocado funda-se na disposição, descobrindo o mundo como tal, no sentido, por exemplo, de ameaça. Apenas o que é na disposição do medo, o sem medo, pode descobrir o que está à mão no mundo circundante como algo ameaçador. O estado de humor da disposição constitui, existencialmente, a abertura mundana da presença [Dasein]. STMSC: §29

Dentro da problemática dessa investigação não será possível interpretar os diferentes modos da disposição e seus nexos de fundamentação. Esses fenômenos são de há muito conhecidos e onticamente sempre considerados pela filosofia, sob o nome de afetos e sentimentos. Não é por acaso que a primeira interpretação dos afetos, legada e conduzida sistematicamente, não tenha sido tratada no âmbito da “psicologia”. Aristóteles investiga a pathe, no segundo livro de sua Retórica. Ao contrário da orientação tradicional do conceito de retórica como uma espécie de “disciplina”, ela deve ser apreendida como a primeira hermenêutica sistemática da convivência cotidiana com os outros. O público, enquanto modo de ser do impessoal (cf. §27), não só possui seu estado de humor como precisa da afinação do humor e a “constrói” para si. É a partir dele e em seu sentido que fala o orador. Ele necessita da COMPREENSÃO das possibilidades do humor para despertá-las e dirigi-las da maneira mais adequada. STMSC: §29

A disposição é uma das estruturas existenciais em que o ser do “pre [das Da]” da presença [Dasein] se sustenta. De maneira igualmente originária, também o compreender constitui esse ser. Toda disposição sempre possui a sua COMPREENSÃO, mesmo quando a reprime. O compreender está sempre afinado pelo humor. Interpretando o compreender como um existencial {CH: de modo ontológico-fundamental, isto é, a partir da remissão da verdade de ser} fundamental, mostra-se que esse fenômeno é concebido como modo fundamental de ser da presença [Dasein]. No sentido, porém, de um modo possível de conhecimento entre outros, que se distingue, por exemplo, do “esclarecer”, o “compreender” deve ser interpretado juntamente com aquele, como um derivado existencial do compreender primordial, que também constitui o ser do pre [das Da] da presença [Dasein]. STMSC: §31

O projeto sempre diz respeito a toda a abertura de ser-no-mundo; como poder-ser, o próprio compreender possui possibilidades prelineadas pelo âmbito do que nele é passível de se abrir essencialmente. O compreender pode colocar-se primariamente na abertura de mundo, ou seja, a presença [Dasein] pode, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, compreender-se a partir de seu mundo. Ou ainda, o compreender lança-se primariamente para o em virtude de, isto é, a presença [Dasein] existe como ela mesma {CH: mas não como sujeito, indivíduo ou pessoa}. Brotando de seu si mesmo em sentido próprio, o compreender é próprio ou impróprio. “Im”-próprio não significa que a presença [Dasein] rompa consigo mesma e “só” compreenda o mundo. Mundo pertence ao seu ser-si-mesmo como ser-no-mundo. Por isso, o compreender propriamente é o compreender impropriamente podem ser autênticos ou inautênticos. Enquanto um poder-ser, o compreender está inteiramente impregnado de possibilidade. O translado para uma dessas possibilidades fundamentais da COMPREENSÃO não deixa de lado as demais. A transferência inerente ao compreender é uma modificação existencial do projeto como um todo porque o compreender sempre diz respeito a toda a abertura da presença [Dasein] como ser-no-mundo. No compreender de mundo, o ser-em também é sempre compreendido. Compreender de existência como tal é sempre compreender mundo. STMSC: §31

Ao se mostrar que toda visão funda-se primariamente no compreender – a circunvisão da ocupação é o compreender enquanto compreensibilidade – retira-se da intuição pura a sua primazia que, noeticamente, corresponde à primazia ontológica tradicional do ser simplesmente dado. “Intuição” e “pensamento” {CH: como “COMPREENSÃOdianoia, mas não entender a COMPREENSÃO a partir do entendimento} já são ambos derivados distantes do compreender. Também a “intuição ou visão da essência” (Wesensschau) fenomenológica está fundada no compreender existencial. Contudo, só se deve decidir alguma coisa sobre esse modo de ver depois de obtidos os conceitos explícitos de ser e da estrutura de ser, único modo em que os fenômenos podem vir a ser fenômenos em sentido fenomenológico. STMSC: §31

Tudo o que está à mão sempre já se compreende a partir da totalidade conjuntural. Esta, no entanto, não precisa ser apreendida explicitamente numa interpretação temática. Mesmo quando percorrida por uma interpretação, ela se recolhe novamente numa COMPREENSÃO implícita. E é justamente nesse modo que ela se torna fundamento essencial da interpretação cotidiana da circunvisão. Essa sempre se funda numa posição prévia. Ao apropriar-se da COMPREENSÃO, a interpretação se move em sendo compreensivamente para uma totalidade conjuntural já compreendida. A apropriação do compreendido, embora ainda velado, sempre cumpre o desvelamento guiada por uma visão que fixa o parâmetro na perspectiva do qual o compreendido há de ser interpretado. A interpretação funda-se sempre numa visão prévia , que “recorta” o que foi assumido na posição prévia, segundo uma possibilidade determinada de interpretação. O compreendido, estabelecido numa posição prévia e encarado numa “visão previdente” (vorsichtig) torna-se conceito através da interpretação. A interpretação pode haurir conceitos pertencentes ao ente a ser interpretado a partir dele mesmo, ou então forçar conceitos contra os quais o ente pode resistir em seu modo de ser. Como quer que seja, a interpretação sempre já se decidiu, definitiva ou provisoriamente, por uma determinada conceituação, pois está fundada numa concepção prévia. STMSC: §32

No projetar-se do compreender, o ente se abre em sua possibilidade. O caráter de possibilidade sempre corresponde ao modo de ser de um ente compreendido. O ente intramundano em geral é projetado para o mundo, ou seja, para um todo de significância em cujas remissões referenciais a ocupação se consolida previamente como ser-no-mundo. Se junto com o ser da presença [Dasein] o ente intramundano também se descobre, isto é, chega a uma COMPREENSÃO, dizemos que ele tem sentido. Rigorosamente, porém, o que é compreendido não é o sentido, mas o ente e o ser. Sentido é aquilo em que se sustenta a compreensibilidade de alguma coisa. Chamamos de sentido aquilo que pode articular-se na abertura compreensiva. STMSC: §32

O conceito de sentido abrange o aparelhamento formal daquilo que pertence necessariamente ao que é articulado pela interpretação que compreende. Sentido é a perspectiva na qual se estrutura o projeto pela posição prévia, visão prévia e concepção prévia. É a partir dela que algo se torna compreensível como algo. Como compreender e interpretação constituem existencialmente o ser do pre [das Da], o sentido deve ser concebido como o aparelhamento existencial-formal da abertura pertencente ao compreender. Sentido é um existencial da presença [Dasein] e não uma propriedade colada sobre o ente, que se acha por “detrás” dele ou que paira não se sabe onde, numa espécie de “reino intermediário”. A presença [Dasein] só “tem” sentido na medida em que a abertura do ser-no-mundo pode ser “preenchida” por um ente que nela se pode descobrir. Somente a presença [Dasein] pode ser com sentido ou sem sentido. Isso significa: o seu próprio ser e o ente que se lhe abre podem ser apropriados na COMPREENSÃO ou recusados na incompreensão. STMSC: §32

Enquanto abertura do pre [das Da], o compreender sempre diz respeito a todo o ser-no-mundo. Em todo compreender de mundo, a existência também esta compreendida e vice-versa. Toda interpretação, ademais, move-se na estrutura prévia já caracterizada. Toda interpretação que se coloca no movimento de compreender já deve ter compreendido o que se quer interpretar. Esse fato foi sempre observado na interpretação filológica, embora apenas nos setores dos modos derivados de COMPREENSÃO e interpretação. A interpretação filológica pertence ao âmbito do conhecimento científico. Esse conhecimento exige o rigor de uma demonstração fundamentada. A prova científica não deve pressupor aquilo que ela há de fundamentar. Se, porém, a interpretação já sempre se movimenta no já compreendido e dele se deve alimentar, como poderá produzir resultados científicos sem se mover num círculo, sobretudo se a COMPREENSÃO pressuposta se articula no conhecimento comum de homem e mundo? Segundo as regras mais elementares da lógica, no entanto, o círculo e um circulus vitiosus. Com isso, porém, o ofício da interpretação histórica se acha a priori banido do campo de todo conhecimento rigoroso. Enquanto não se abolir do compreender esse círculo, a historiografia deve satisfazer-se com possibilidades menos rigorosas de conhecimentos. Permite-se-lhe que preencha, de certo modo, essa falta mediante o “significado espiritual” de seus “objetos”. Segundo a opinião dos próprios historiadores, o ideal seria que se pudesse evitar o círculo na esperança de se criar, pela primeira vez, uma historiografia tão independente do ponto de vista do observador como se presume que seja o conhecimento da natureza. STMSC: §32

Ligar e separar podem também ser formalizados como “relação”. É por isso que, logisticamente, o juízo se dissolveu num sistema de “ordenamentos”, tornando-se mero objeto de “cálculo” e nunca tema de uma interpretação ontológica. Tanto a possibilidade quanto a impossibilidade de uma COMPREENSÃO analítica da synthesis e diairesis da “relação” em todo e qualquer juízo se acham estreitamente ligadas ao estado em que se acha a problemática ontológica de princípio. STMSC: §33

Disposição e compreender são os existenciais fundamentais que constituem o ser do pre [das Da], ou seja, a abertura do ser-no-mundo. O compreender guarda em si a possibilidade de interpretação, isto é, de uma apropriação do que se compreende. Sendo disposição e compreender igualmente originários, a disposição se mantém numa certa COMPREENSÃO. Corresponde-lhe também uma certa possibilidade de interpretação. O enunciado tornou visível um derivado extremo da interpretação. O esclarecimento do terceiro significado de enunciado como comunicação (declaração) levou ao conceito de dizer e pronunciar, até aqui propositadamente desconsiderado. Que somente agora se tematize a linguagem, isso deve indicar que este fenômeno se radica na constituição existencial da abertura da presença [Dasein]. O fundamento ontológico-existencial da linguagem é a fala. Embora tenhamos excluído esse fenômeno de uma análise temática, dele nos servimos constantemente nas interpretações feitas até aqui da disposição, do compreender, da interpretação e do enunciado. STMSC: §34

No escutar “natural” daquilo sobre o que se fala, podemos, sem dúvida, escutar também o modo de dizer, a “dicção”. Mesmo isso só é possível dentro de uma COMPREENSÃO prévia daquilo sobre que se fala, pois somente assim subsiste a possibilidade de avaliar o modo de dizer no tocante à sua adequação ao tema sobre o qual se fala. STMSC: §34

Da mesma forma, a fala contestatória tomada como resposta é uma sequência direta da COMPREENSÃO daquilo sobre o que se fala, já “partilhado” no ser-com. STMSC: §34

Somente onde se dá a possibilidade existencial de fala e escuta é que alguém pode ouvir. Quem “não pode escutar” e “deve sentir” talvez possa muito bem e, justamente por isso, ouvir. O escutar por aí é uma privação da COMPREENSÃO que escuta. Fala e escuta fundam-se no compreender. O compreender não surge de muitas falas nem de muito escutar por aí. Somente quem já compreendeu é que poderá escutar. STMSC: §34

Uma outra possibilidade constitutiva da fala, o silêncio, possui o mesmo fundamento existencial. Quem silencia na fala da convivência pode “dar a entender” com maior propriedade, isto significa, pode elaborar a COMPREENSÃO por oposição àquele que não perde a palavra. Falar muito sobre alguma coisa não assegura em nada uma COMPREENSÃO maior. Ao contrário, as falas prolixas encobrem e emprestam ao que se compreendeu uma clareza aparente, ou seja, a incompreensão da trivialidade. Silenciar, no entanto, não significa ficar mudo. Ao contrário, o mudo é a tendência “para dizer”. O mudo não apenas não provou que pode silenciar, como lhe falta até a possibilidade de prová-lo. E, como o mudo, aquele que, por natureza, fala pouco, também ainda não mostra que silencia e pode silenciar. Quem nunca diz nada também não pode silenciar num dado momento. Silenciar em sentido próprio só é possível numa fala autêntica. Para poder silenciar, a presença [Dasein] deve ter algo a dizer {CH: e o a ser dito? (O ser)}, isto é, deve dispor de uma abertura própria e rica de si mesma. Pois só então o estar em silêncio se revela e, assim, abafa a “falação”. Como modo de fala, o estar em silêncio articula tão originariamente a compreensibilidade da presença [Dasein] que dele provém o verdadeiro poder escutar e a convivência transparente. STMSC: §34

Porque a fala é constitutiva do ser do pre [das Da], isto é, da disposição e do compreender, a presença [Dasein] significa então: como ser-no-mundo, a presença [Dasein] se pronunciou como ser-em uma fala. A presença [Dasein] possui linguagem. Terá sido mero acaso que os gregos depositaram a sua existência cotidiana predominantemente no espaço aberto pela fala convivial, guardando ao mesmo tempo olhos para ver, tanto na interpretação filosófica como na pré-filosófica da presença [Dasein], a essência do homem determinada como zoon logon echon {CH: o homem como o que “colhe”, recolhendo-se no ser-vigente na abertura dos entes (mas estes em segundo plano)}? A interpretação posterior dessa caracterização do homem, no sentido de animal rationale, “animal racional”, não é, com efeito, “falsa”, mas encobre o solo fenomenal que deu origem a essa definição da presença [Dasein]. O homem mostra-se como um ente que é na fala. Isso não significa que a possibilidade de articulação verbal seja apenas própria do homem, e sim que o homem se realiza no modo de descoberta de mundo e da própria presença [Dasein]. Os gregos não dispunham de uma palavra própria para linguagem porque entendiam esse fenômeno “sobretudo” como fala. Por outro lado, porque na reflexão filosófica o logos foi visualizado, sobretudo como enunciado, a elaboração das estruturas básicas das formas e dos integrantes da fala se deu de acordo com este logos. A gramática buscou seus fundamentos na “lógica” deste logos. Esta, por sua vez, se funda na ontologia do simplesmente dado. O acervo das “categorias semânticas”, herdado pela linguística posterior e ainda hoje decisivo em seus princípios, orienta-se pela fala entendida como enunciado. Tomando, porém, esse fenômeno em toda a originariedade fundamental e em todo o alcance de um existencial, será necessário transpor a linguística para fundamentos mais originários do ponto de vista ontológico. A tarefa de libertar a gramática da lógica necessita de uma COMPREENSÃO preliminar e positiva da estrutura a priori da fala como existencial. Essa tarefa não pode ser cumprida subsidiariamente através de correções e complementações do que foi legado pela tradição. Nesse propósito, devem-se questionar as formas fundamentais em que se funda a possibilidade semântica de articulação do que é susceptível de COMPREENSÃO e não apenas dos entes intramundanos conhecidos teoricamente e expressos em proposições. A semântica não se constitui por si mesma de uma comparação ampla do maior número possível de línguas e das línguas mais distantes entre si. Também não basta assumir o horizonte filosófico em que W.v. Humboldt problematizou a linguagem. A semântica tem suas raízes na ontologia da presença [Dasein]. O seu florescimento ou fenecimento está atrelado ao destino da presença [Dasein]. STMSC: §34

Remontando às estruturas existenciais que compõem a abertura do ser-no-mundo, a interpretação, de certo modo, perdeu de vista a cotidianidade da presença [Dasein]. A análise deve reconquistar mais uma vez o horizonte fenomenal, estabelecido para seu tema. Levanta-se então a pergunta: Quais são os caracteres existenciais da abertura do ser-no-mundo quando o ser-no-mundo cotidiano se detém no modo de ser do impessoal? Será que esse modo de ser possui uma disposição própria e específica, uma COMPREENSÃO, uma fala e uma interpretação especiais? A resposta a essas perguntas torna-se tanto mais urgente quanto mais se recorda que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] sucumbe ao impessoal e por ele se deixa dominar. Como ser-lançado-no-mundo, não será que a presença [Dasein] foi jogada de saída no caráter público do impessoal? E que mais significa esse ser público do que a abertura específica do impessoal? STMSC: §34

Tanto a escuta quanto o compreender já aderiram previamente ao que foi falado como tal. A comunicação não “partilha” a referência ontológica primordial com o referencial da fala, mas a convivência se move dentro de uma fala comum e numa ocupação com o falado. O seu empenho é para que se fale. O que se diz, o dito e a dicção empenham-se agora pela autenticidade e objetividade da fala e de sua COMPREENSÃO. Por outro lado, dado que a fala perdeu ou jamais alcançou a referência ontológica primária ao referencial da fala, ela nunca se comunica no modo de uma apropriação originária deste sobre o que se fala, contentando-se com repetir e passar adiante a fala. O falado na falação arrasta consigo círculos cada vez mais amplos, assumindo um caráter autoritário. As coisas são assim como são porque é assim que delas (impessoalmente) se fala. Repetindo e passando adiante a fala, potencia-se a falta de solidez. Nisso se constitui a falação. A falação não se restringe apenas à repetição oral da fala, mas expande-se no que escreve enquanto “escrivinhação”. Aqui, a repetição da fala não se funda tanto no ouvir dizer. Ela se alimenta do que se lê. A COMPREENSÃO mediana do leitor nunca poderá distinguir o que foi haurido e conquistado originariamente do que não passa de mera repetição. E mais ainda, a própria COMPREENSÃO mediana não tolera tal distinção, pois não necessita dela, já que tudo compreende. STMSC: §35

A fala que pertence à constituição de ser essencial da presença [Dasein] também perfaz a sua abertura. Ela traz a possibilidade de se tornar falação e, com isso, de manter o ser-no-mundo não tanto numa COMPREENSÃO estruturada, mas de trancar e encobrir os entes intramundanos. Para isso, porém, não necessita da intenção de enganar. A falação não tem o modo de ser em que apresenta conscientemente algo como algo. O que é sem solo ou fundamento já lhe basta para transformar a abertura em fechamento. Pois o que foi dito já foi sempre compreendido como algo “que diz”, ou seja, que descobre. A falação é, pois, por si mesma, um fechamento, devido à sua própria abstenção de retornar à base e ao fundamento do referencial. STMSC: §35

Este tipo de interpretação própria da falação já se consolidou na presença [Dasein]. É dessa maneira que aprendemos e conhecemos muitas coisas. É dessa maneira ainda que não poucas coisas jamais conseguem ultrapassar uma tal COMPREENSÃO mediana. A presença [Dasein] nunca consegue subtrair-se a essa interpretação cotidiana em que ela cresce. Todo compreender, interpretar e comunicar autênticos, toda redescoberta e nova apropriação cumprem-se nela, a partir dela e contra ela. Não é possível uma presença [Dasein], que não sendo tocada nem desviada pela interpretação mediana, pudesse colocar-se diante da paisagem livre de um “mundo” em si, para apenas contemplar o que lhe vem ao encontro. O predomínio da interpretação pública já decidiu até mesmo sobre as possibilidades de sintonização com o humor, isto é, sobre o modo fundamental em que a presença [Dasein] é tocada pelo mundo. O impessoal prescreve a disposição e determina o quê e como se “vê”. STMSC: §35

Obstruindo da maneira descrita, a falação constitui o modo de ser da COMPREENSÃO desenraizada de presença [Dasein]. Ela não se apresenta como estado simplesmente dado de algo simplesmente dado, mas, existencialmente sem raízes, ela mesma é no modo de um contínuo desenraizamento. Do ponto de vista ontológico, isso significa: como ser-no-mundo, a presença [Dasein] que se mantém na falação cortou suas remissões ontológicas primordiais, originárias e legítimas com o mundo, com a co-presença [Dasein] e com o próprio ser-em. Ela se mantém oscilante e, desse modo, sempre é e está junto ao “mundo”, com os outros e consigo mesma. Somente um ente cuja abertura é constituída pela fala compreensiva e sintonizada numa disposição, ou seja, que tenha o seu pre [das Da], que é e está “no-mundo”, nessa constituição ontológica, é que também traz a possibilidade ontológica de um tal desenraizamento. Mais do que um não-ser, esse desenraizamento perfaz sua “realidade” mais cotidiana e mais persistente. STMSC: §35

Durante a análise da COMPREENSÃO e da abertura do pre [das Da], fez-se referência ao lumen naturale. Denominou-se também a abertura do ser-em de clareira da presença [Dasein]. É somente nessa clareira que se torna possível qualquer visão. A visão foi concebida na perspectiva do modo fundamental de abertura própria à presença [Dasein], ou seja, do compreender no sentido de uma apropriação genuína dos entes com os quais a presença [Dasein] pode relacionar-se e assumir uma atitude segundo suas possibilidades de ser essenciais. STMSC: §36

A constituição fundamental da visão mostra-se numa tendência ontológica para “ver”, própria da cotidianidade. Nós a designamos com o termo curiosidade. Em suas características, a curiosidade não se limita a ver, exprimindo a tendência para um tipo especial de encontro perceptivo com o mundo. Interpretaremos esse fenômeno com um propósito fundamentalmente ontológico-existencial. Não limitaremos a sua orientação pelo conhecimento que, já cedo e na filosofia grega, foi concebido, não por acaso, segundo o “prazer de ver”. O tratado que figura em primeiro lugar na coletânea dos escritos ontológicos de Aristóteles começa com a seguinte frase: pantes anthropoi tou eidenai oregontai physei (Metafísica, A 1, 980 a), “no ser do homem reside, de modo essencial, o acurar do ver”. Assim começa uma investigação que procura descobrir a origem da pesquisa científica acerca dos entes e de seu ser a partir deste modo de ser da presença [Dasein]. A interpretação grega da gênese existencial da ciência não é casual. Aquilo que se pressignou na sentença de Parmênides – to gar auto noein estin te kai einai – chega, nessa interpretação, a uma COMPREENSÃO temática e explícita. O ser é tudo que se mostra numa percepção puramente intuitiva, e somente esse tipo de ver descobre o ser. A verdade originária e autêntica reside na intuição pura. Desde então, essa tese tem sido o fundamento da filosofia ocidental. Dela a dialética de Hegel retirou o seu moto e somente à sua base é que se tornou possível. STMSC: §36

Se, na convivência cotidiana, tanto o que é acessível a todo mundo quanto aquilo de que todo mundo pode dizer qualquer coisa vêm igualmente ao encontro, então já não mais se poderá distinguir, na COMPREENSÃO autêntica, o que se abre do que não se abre. Essa ambiguidade não se estende apenas ao mundo mas, também, à convivência como tal e até mesmo ao ser da presença [Dasein] para consigo mesma. STMSC: §37

A falação abre para a presença [Dasein] o ser, em compreendendo, para o seu mundo, para os outros e para consigo mesma, mas de maneira a que esse ser para... conserve o modo de uma oscilação sem solidez. A curiosidade abre toda e qualquer coisa, de maneira que o ser-em esteja em toda parte e em parte nenhuma. A ambiguidade não esconde nada à COMPREENSÃO de presença [Dasein], mas só o faz para rebaixar o ser-no-mundo ao desenraizamento do em toda parte e em parte nenhuma. STMSC: §38

Tornando-se desse modo tentação, a interpretação pública mantém a presença [Dasein] presa em sua decadência. A falação e a ambiguidade, o já ter visto tudo e já ter compreendido tudo, perfazem a pretensão de que a abertura da presença [Dasein], assim disponível e dominante, seria capaz de lhe assegurar a certeza, a autenticidade e a plenitude de todas as possibilidades de seu ser. A certeza de si mesmo e a decisão do impessoal espalham uma suficiência crescente no tocante à COMPREENSÃO própria e disposta. A pretensão do impessoal, de nutrir e dirigir toda “vida” autêntica, tranquiliza a presença [Dasein], assegurando que tudo “está em ordem” e que todas as portas estão abertas. O ser-no-mundo da decadência é, em si mesmo, tanto tentador como tranquilizante. STMSC: §38

Essa tranquilidade no ser impróprio não conduz, todavia, à inércia e à inatividade. Ao contrário, move para “promoções” desenfreadas. O decair no “mundo” já não tem mais repouso. A tranquilidade tentadora aumenta a decadência. No tocante à interpretação da presença [Dasein], pode surgir a convicção de que compreender as culturas mais estranhas e a sua “síntese” com a própria cultura levaria a um esclarecimento verdadeiro e total da presença [Dasein] a seu próprio respeito. A curiosidade multidirecionada e a inquietação de tudo saber dá a ilusão de uma COMPREENSÃO universal de presença [Dasein]. Mas o que propriamente se deve compreender permanece, no fundo, indeterminado e inquestionado; não se compreende que compreender é um poder-ser que só pode ser liberado na presença [Dasein] mais própria. Essa comparação de si mesma com tudo, tranquila e que tudo “compreende”, move a presença [Dasein] para uma alienação na qual se lhe encobre o seu poder-ser mais próprio. O ser-no-mundo decadente, tentador e tranquilizante é também alienante. STMSC: §38

A interpretação ontológico-existencial não se refere, portanto, a uma fala ôntica sobre a “corrupção da natureza humana”, não apenas porque lhe faltam os recursos necessários, mas também porque a sua problemática antecede qualquer enunciado sobre corrupção ou incorruptibilidade. A decadência é um conceito ontológico de movimento. Do ponto de vista ôntico, não fica decidido se o homem foi ou não “sorvido no pecado”, se está ou não no status corruptionis, se transmigrou para o status integritatis ou se encontra num estado intermediário, isto é, no status gratiae. Fé e “visão de mundo” é que deverão recorrer às estruturas existenciais explicitadas, a fim de poderem emitir tais e tais enunciados e enunciar a presença [Dasein] como ser-no-mundo, supondo-se evidentemente que seus enunciados também pretendam uma COMPREENSÃO conceitual. STMSC: §38

A interpretação ontológica da presença [Dasein] como cura está muito distante daquilo que é acessível para a COMPREENSÃO pré-ontológica de ser ou mesmo para o conhecimento ôntico dos entes, da mesma forma que toda análise ontológica se distancia daquilo que conquista. Não é de admirar que o entendimento comum estranhe o que se conhece ontologicamente, já que considera apenas o que conhece onticamente. Apesar disso, o ponto de partida ôntico da interpretação ontológica da presença [Dasein] como cura, aqui pretendida, pode parecer artificial e meramente teórico; para não se falar da violência visível ao afastar a definição tradicional e consagrada do homem. Faz-se, pois, necessária uma confirmação pré-ontológica da interpretação existencial da presença [Dasein] como cura. Essa, por sua vez, consiste em que a presença [Dasein] desde cedo, quando se pronunciou sobre si mesma, fosse interpretada como cura (cura, em latim), embora apenas pré-ontológicamente. STMSC: §39

A interpretação ontológica da presença [Dasein] trouxe para o conceito existencial de cura a interpretação pré-ontológica que esse ente se deu como “cura”. A analítica da presença [Dasein], porém, não visa a uma fundamentação ontológica da antropologia. Ela tem por fim uma ontologia fundamental. Esta é que determinou, embora implicitamente, o curso das observações feitas até aqui, a escolha dos fenômenos e os limites de penetração da análise. No tocante à questão guia sobre o sentido de ser e sua elaboração, a investigação deve agora assegurar expressamente o que foi conquistado. Isso, contudo, não pode ser alcançado através de um resumo exterior do que se, discutiu. Ao contrário, com a ajuda do que se obteve, deve-se acirrar ao máximo a COMPREENSÃO mais profunda do problema que, no início da analítica existencial, foi apenas indicado em linhas gerais. STMSC: §42

O “problema da realidade”, no sentido da questão se um mundo exterior é simplesmente dado e se é passível de comprovação, apresenta-se como um problema impossível. Não porque tenha por consequência aporias intransponíveis, mas porque o próprio ente, que nesse problema é tematizado, recusa por assim dizer esse modo de colocar a questão. O que se deve não é provar que e como um “mundo exterior” é simplesmente dado, e sim demonstrar por que a presença [Dasein], enquanto ser-no-mundo, possui a tendência de primeiro sepultar epistemologicamente o “mundo exterior” em um nada negativo para então permitir que ele ressuscite mediante provas. A razão disso reside na decadência da presença [Dasein] e no deslocamento aí motivado da COMPREENSÃO primordial do ser para um ser como algo simplesmente dado. Se, nessa orientação ontológica, o modo de colocar a questão for “crítico”, encontra então um mero “interior” enquanto o único ser simplesmente dado certo e seguro. Após a desagregação do fenômeno originário do ser-no-mundo, desdobra-se, com base no que resta, ou seja, no sujeito isolado, a correlação com um “mundo”. STMSC: §43

Realidade como título ontológico remete ao ente intramundano. Se esse título servir para designar esse modo de ser, a manualidade e o ser simplesmente dado mostram-se como modos da realidade. Se, porém, essa palavra mantiver-se no significado legado a pela tradição {CH: hodierno}, ela significa o ser no sentido de coisas simplesmente dadas. Contudo, nem todo ser simplesmente dado é coisa simplesmente dada. A “natureza” que nos “envolve” é, na verdade, um ente intramundano que, no entanto, não apresenta o modo de ser do que está à mão e nem de algo simplesmente dado no modo de “coisidade da natureza”. Qualquer que seja a maneira de interpretar esse ser da “natureza”, todos os modos de ser dos entes intramundanos fundam-se, ontologicamente, na mundanidade do mundo e, assim, no fenômeno do ser-no-mundo. Disso resulta a seguinte COMPREENSÃO: realidade não possui primazia no âmbito dos modos de ser dos entes intramundanos, assim como esse modo de ser não pode ser caracterizado adequadamente, do ponto de vista ontológico, como mundo ou presença [Dasein]. STMSC: §43

Ser-verdadeiro (verdade) diz ser-descobridor. Mas não será esta uma definição extremamente arbitrária da verdade? Com determinações conceituais tão violentas talvez se consiga desvincular a ideia de concordância do conceito de verdade. Esse sucesso duvidoso não estaria pagando o preço de condenar a antiga e “boa” tradição a um nada negativo? A definição aparentemente arbitrária, contudo, apenas traz uma interpretação necessária daquilo que a tradição mais antiga da filosofia pressentiu de maneira originária e chegou a compreender pré-fenomenologicamente. O ser-verdadeiro do logos enquanto apophansis é aletheuein, no modo de apophainesthai: deixar e fazer ver (descoberta) o ente em seu desencobrimento, retirando-o do encobrimento. A aletheia, identificada por Aristóteles nas passagens supracitadas com pragma, phainomena, indica as “coisas elas mesmas”, o que se mostra, o ente na modalidade de sua descoberta. Será por acaso que num dos fragmentos de Heráclito, que constituem os ensinamentos mais antigos da filosofia em que o logos é tratado expressamente, o fenômeno da verdade acima apresentado transpareça no sentido de descoberta (desencobrimento)? Contrapõem-se ao logos e a quem o diz e compreende aqueles que não compreendem. O logos é phrazon okos echei, ele diz como o ente se comporta. Para aqueles que não compreendem, porém, lanthanei, o que eles fazem permanece encoberto; epilanthanontai, eles esquecem, isto é, o ente se lhes encobre novamente. Pertence, pois, ao logos o desencobrimento, aletheia. A tradução pela palavra verdade e, sobretudo, as determinações teóricas de seu conceito encobrem o sentido daquilo que os gregos, numa COMPREENSÃO pré-filosófica, estabeleceram como fundamento “evidente” do uso terminológico de aletheia. STMSC: §44

O que diz “pressupor”? Compreender alguma coisa como a base e o fundamento do ser de um outro ente. Essa COMPREENSÃO dos entes em seus nexos ontológicos só é possível com base na abertura, ou seja, no ser-descobridor da presença [Dasein]. Pressupor “verdade” significa, pois, compreendê-la como algo em virtude da qual a presença [Dasein] é. Presença, no entanto – e isso reside na constituição de ser como cura – já sempre antecedeu a si mesma. Ela é um ente em que, em seu ser, está em jogo o poder-ser mais próprio. A abertura e o descobrimento pertencem, de modo essencial, ao ser e ao poder-ser da presença [Dasein] como ser-no-mundo. Na presença [Dasein] está em jogo o seu poder-ser-no-mundo e, com isso, a ocupação que descobre na circunvisão o ente intramundano. Na constituição de ser da presença [Dasein] como cura, no anteceder-a-si mesma, reside o “pressupor” mais originário. Porque esse pressupor a si mesmo pertence ao ser da presença [Dasein], “nós” devemos pressupor também a “nós” como algo que se determina pela abertura. Esse “pressupor” radicado no ser da presença [Dasein] não se comporta com os entes não dotados do caráter de presença [Dasein], mas unicamente consigo mesmo. A verdade pressuposta, o “se dá”, pelo qual se deve determinar o seu ser, possui o modo e o sentido de ser da própria presença [Dasein]. Devemos “fazer” a pressuposição de verdade porque ela já se “fez” com o ser do “nós”. STMSC: §44

Investigação ontológica é um modo possível de interpretação. Esta foi caracterizada como elaboração e apropriação de uma COMPREENSÃO. Toda interpretação possui sua posição prévia, visão prévia e concepção prévia. No momento em que, enquanto interpretação, se torna tarefa explícita de uma pesquisa, então o conjunto dessas “pressuposições”, que denominamos de situação hermenêutica, necessita de um esclarecimento prévio que, numa experiência fundamental, assegure para si o “objeto” a ser explicitado. Uma interpretação ontológica deve liberar o ente na constituição de seu próprio ser. Para isso, vê-se obrigada, numa primeira caracterização fenomenal, a conduzir o ente tematizado a uma posição prévia pela qual se deverão ajustar todos os demais passos da análise. Estes, porém, devem ser orientados por uma possível visão prévia do modo de ser dos entes considerados. Posição prévia e visão prévia, portanto, já delineiam, simultaneamente, a conceituação (concepção prévia) para a qual se devem dirigir todas as estruturas ontológicas. STMSC: §45

Desse modo, é urgente a tarefa de se colocar a presença [Dasein] como um todo em sua posição prévia. Isto significa, porém: desenvolver, ao menos uma vez, a questão do poder-ser desse ente como um todo. Na presença [Dasein], enquanto ela é, sempre se acha algo pendente, que ela pode ser e será. A esse pendente pertence o próprio “fim”. O “fim” do ser-no-mundo é a morte. Esse fim, que pertence ao poder-ser, isto é, à existência, limita e determina a totalidade cada vez possível da a presença [Dasein]. Mas o estar-no-fim {CH: “ser”-para-o-fim} da presença [Dasein] na morte e, com isso, o ser desse ente como um todo, só poderá ser introduzido, de modo fenomenalmente adequado, na discussão da possibilidade de seu possível ser todo, caso se tenha conquistado um conceito ontológico suficiente, ou seja, existencial da morte. De acordo com o modo {CH: pensado de acordo com o modo de ser da presença [Dasein]} de ser da presença [Dasein], a morte {CH: ser do não ser} só é num ser-para-a-morte existenciário. A estrutura existencial desse ser evidencia-se na constituição ontológica de seu poder-ser todo. Toda a presença [Dasein] existente deixa-se, assim, trazer para a posição prévia existencial. Mas será que a presença [Dasein] também pode existir toda ela de modo próprio? Como se deve, então, determinar a propriedade da existência senão na perspectiva do existir de modo próprio? E de onde retirar o seu critério? Manifestamente, a própria presença [Dasein] deve propiciar antecipadamente em seu ser a possibilidade e a maneira de sua existência própria, uma vez que estas não lhe podem ser impostas, onticamente, e nem encontradas, ontologicamente, por acaso. O testemunho de um poder-ser próprio é fornecido pela consciência. Assim como a morte, esse fenômeno da presença [Dasein] exige uma interpretação existencial genuína. Esta leva à COMPREENSÃO de que um poder-ser próprio da presença [Dasein] reside no querer-ter-consciência. Segundo seu sentido ontológico, porém, essa possibilidade existenciária tende para uma determinação existenciária no ser-para-a-morte. STMSC: §45

Se a temporalidade constitui o sentido ontológico originário da presença [Dasein], onde está em jogo o seu próprio ser, então a cura deve precisar de “tempo” e, assim, contar com “o tempo”. A temporalidade da presença [Dasein] constrói a “contagem do tempo”. O “tempo” nela experimentado é o aspecto fenomenal mais imediato da temporalidade. Dela brota a COMPREENSÃO cotidiana e vulgar do tempo. E essa se desdobra, formando o conceito tradicional de tempo. STMSC: §45

Interpretar o movimento de passagem da presença [Dasein] para o ser simplesmente dado perde a base fenomenal na medida em que o ente remanescente não é uma mera coisa corpórea. Do ponto de vista teórico, mesmo o cadáver dado é ainda objeto possível da anatomia patológica, cuja tendência de COMPREENSÃO se orienta, não obstante, pela ideia de vida. O ser ainda simplesmente dado é “mais” do que uma coisa material, destituída de vida. Nele encontra- se algo não vivo, que perdeu a vida. STMSC: §47

No quadro da presente investigação, só é possível caracterizar ontologicamente fim e totalidade de forma provisória. A fim de alcançar um resultado suficiente, faz-se necessário elaborar não apenas a estrutura formal do fim e da totalidade em geral. Pois é preciso, ao mesmo tempo, desenvolver as suas possíveis variações estruturais e regionais, isto é, não formalizadas, referidas, cada vez, a um determinado “conteúdo” e determinadas segundo seu ser específico. Essa tarefa pressupõe uma interpretação suficientemente positiva e precisa dos modos de ser, os quais exigem, por sua vez, uma separação regional da totalidade dos entes. A COMPREENSÃO desses modos de ser, no entanto, reclama uma ideia clara de ser em geral. Um êxito adequado da análise ontológica de fim e totalidade não só fracassa devido à extensão do tema mas, sobretudo, pela dificuldade fundamental, qual seja, de que para o cumprimento dessa tarefa já se deve, de antemão, pressupor como conhecido e alcançado justamente aquilo que se busca na investigação (o sentido de ser em geral). STMSC: §48

O interesse predominante das considerações seguintes voltase para as “variações” de fim e totalidade, as quais, em sendo determinações ontológicas da presença [Dasein], devem orientar uma interpretação originária desse ente. Sem perder de vista a constituição existencial já exposta da presença [Dasein], devemos tentar decidir em que medida os conceitos de fim e totalidade que, de início, se impõem, quer como categorias quer de modo indeterminado, são ontologicamente inadequados à presença [Dasein]. A recusa de tais conceitos deve, por fim, indicar positivamente as suas regiões específicas. Com isso, consolida-se a COMPREENSÃO de fim e totalidade nas variações como existenciais, o que haverá de garantir a possibilidade de uma interpretação ontológica da morte. STMSC: §48

A tentativa de se alcançar uma COMPREENSÃO da totalidade, dotada do caráter de presença [Dasein], tomando-se como ponto de partida um esclarecimento do ainda-não e passando-se pela caracterização do fim, não conduz para a sua meta. Ela só mostrou negativamente que o ainda-não, que cada presença [Dasein] é, recusa sua interpretação como o pendente. O estar-no-fim se apresenta como uma determinação inadequada do fim para o qual a presença [Dasein] é, em existindo. No entanto, a consideração desenvolvida deveria ter explicitado também a necessidade de reverter seus passos. A caracterização positiva do fenômeno em questão (ainda-não ser, findar, totalidade) só terá êxito em se orientando, de forma precisa, no sentido da constituição ontológica da presença [Dasein]. Essa precisão deverá ser assegurada negativamente contra desvios, mediante a COMPREENSÃO da pertinência regional das estruturas de fim e totalidade que, ontologicamente, sempre resistem à presença [Dasein]. STMSC: §48

A interpretação existencial da morte precede toda biologia ou ontologia da vida. É ela que fundamenta qualquer investigação histórico-biográfica e psico-etnológica da morte. Uma “tipologia” do “morrer”, entendida como caracterização dos estados e dos modos em que se “vivência” esse deixar de viver, já pressupõe o conceito de morte. Ademais, uma psicologia do “morrer” acaba fornecendo mais soluções sobre a “vida” “dos que morrem” do que propriamente sobre o morrer. Isso apenas reflete que a presença [Dasein] não morre simplesmente ou até propriamente numa vivência do fato de deixar de viver. De igual modo, as apreensões acerca da morte junto aos primitivos e de seus comportamentos diante dela na magia e no culto esclarecem, primeiramente, a COMPREENSÃO da presença [Dasein], cuja interpretação já reclama uma analítica existencial e um conceito correspondente da morte. STMSC: §49

Tudo o que se possa discutir sob o título de “metafísica da morte” extrapola o âmbito de uma análise existencial da morte. As questões de como e quando a morte “entrou no mundo”, que “sentido” de mal e sofrimento a morte pode e deve ter na totalidade dos entes não apenas pressupõem, necessariamente, uma COMPREENSÃO do caráter ontológico da morte como também a ontologia da totalidade dos entes em seu todo e, em particular, o esclarecimento ontológico do mal e da negatividade. STMSC: §49

A exposição do ser-para-a-morte mediano na vida cotidiana orienta-se pelas estruturas da cotidianidade já explicitadas. No ser-para-a-morte, a presença [Dasein] relaciona-se com ela mesma enquanto um poder-ser privilegiado. Entretanto, o próprio da cotidianidade é o impessoal, constituído na interpretação pública expressa na falação. Este deve, portanto, revelar de que modo a presença [Dasein] cotidiana interpreta para si o seu ser-para-a-morte. O fundamento da interpretação sempre molda uma COMPREENSÃO que, por sua vez, também é sempre disposta, ou seja, afinada e sintonizada no humor. Impõe-se, assim, a pergunta: Como a COMPREENSÃO, que se acha disposta na falação do impessoal, abriu o ser-para-a-morte? Como o impessoal se relaciona na COMPREENSÃO com essa possibilidade mais própria, irremissível e insuperável da presença [Dasein]? Que disposição o estar entregue à responsabilidade da morte abre para o impessoal e de que modo? STMSC: §51

A presença [Dasein] cotidiana encobre, na maior parte das vezes, a possibilidade mais própria, irremissível e insuperável de seu ser. Essa tendência fática de encobrimento confirma a seguinte tese: como fática, a presença [Dasein] está na não-verdade. Em consequência, a certeza inerente ao encobrimento do ser-para-a-morte só pode ser um ter-por-verdadeiro inadequado, e não uma espécie de incerteza, no sentido de dúvida. A certeza inadequada mantém encoberto aquilo de que está certa. Se a COMPREENSÃO “impessoal” da morte é a de um acontecimento que vem ao encontro dentro do mundo, então a certeza a ela relacionada não diz respeito ao ser-para-o-fim. STMSC: §52

A presença [Dasein] constitui-se pela abertura, isto é, por uma COMPREENSÃO determinada por disposições. Ser-para-a-morte em sentido próprio não pode escapar da possibilidade mais própria e irremissível e, nessa fuga, encobri-la e alterar o seu sentido em favor da COMPREENSÃO do impessoal. O projeto existencial de um ser-para-a-morte em sentido próprio deve, portanto, elaborar os momentos desse ser que o constituem como COMPREENSÃO da morte, no sentido de um ser para a possibilidade caracterizada, que nem foge e nem encobre. STMSC: §53

O ser para a possibilidade enquanto ser-para-a-morte, no entanto, deve relacionar- se para com a morte de tal modo que ela se desvele nesse ser e para ele como possibilidade. Apreendemos, terminologicamente, esse ser para a possibilidade como antecipar da possibilidade. Será que essa atitude não abriga em si uma aproximação do possível e, com essa aproximação, não emergiria a sua realização? Essa aproximação, porém, não tende a tornar disponível o real numa ocupação. É no aproximar-se da COMPREENSÃO que “aumenta” a possibilidade do possível. Como possibilidade a proximidade mais próxima do ser-para-a-morte se acha, face ao real, tão distante quanto possível. Quanto mais se compreender e desvelar essa possibilidade, tanto mais puramente a COMPREENSÃO penetra na possibilidade como a possibilidade da impossibilidade da existência. Como possibilidade, a morte não propicia à presença [Dasein] nada para “ser realizado” e nada que, em si mesmo, possa ser real. É a possibilidade da impossibilidade de toda relação com..., de todo existir. No antecipar, a possibilidade “será sempre maior”, ou seja, desvela-se como aquela que desconhece toda medida, todo mais ou menos, significando a possibilidade da impossibilidade, sem medida, da existência. Em sua essência, essa possibilidade não oferece nenhum apoio para alguma expectativa e para se “configurar” um real possível e, assim, esquecer a possibilidade. Enquanto antecipação da possibilidade, o ser-para-a-morte é que possibilita essa possibilidade e que a libera como tal. STMSC: §53

A morte é a possibilidade mais própria da presença [Dasein]. O ser para essa possibilidade abre à presença [Dasein] o seu poder-ser mais próprio, em que sempre está em jogo o próprio ser da presença [Dasein]. Pode-se então revelar para a presença [Dasein] que, na possibilidade privilegiada de si mesma, ela permanece desgarrada do impessoal, ou seja, antecipando, ela sempre pode dele desgarrar-se. Contudo, somente a COMPREENSÃO desse “poder” é que desvela que ela está de fato perdida na cotidianidade do impessoalmente-si-mesmo. STMSC: §53

A possibilidade mais própria e irremissível é insuperável. O ser para essa possibilidade permite à presença [Dasein] compreender que a renúncia de si mesma lhe é impendente como a sua possibilidade mais extrema. O antecipar não lhe permite, contudo, escapar da insuperabilidade enquanto ser-para-a-morte impróprio, liberando-a, ao contrário, para a insuperabilidade. A liberação antecipadora para a própria morte liberta do perder-se nas possibilidades ocasionais, permitindo assim compreender e escolher em sentido próprio as possibilidades fáticas que se antepõem às insuperáveis. O antecipar abre para a existência como possibilidade mais extrema a tarefa de sua propriedade, rompendo assim todo e qualquer enrijecimento da existência já alcançada. Antecipando, a presença [Dasein] evita recuar para trás de si mesma e da COMPREENSÃO de seu poder-ser, evitando “tornar-se velha demais para as suas vitórias” (Nietzsche). Livre para as possibilidades mais próprias, determinadas a partir do fim, ou seja, compreendidas como possibilidades finitas, a presença [Dasein] bane o perigo de, assentada em sua COMPREENSÃO finita da existência, não reconhecer ou mal-interpretar as possibilidades superáveis da existência dos outros, reconduzindo-as para as suas próprias a fim de endossar sua existência fática mais própria. Todavia, enquanto possibilidade irremissível, a morte singulariza somente a fim de tornar a presença [Dasein], enquanto possibilidade insuperável, compreensiva para o poder-ser dos outros, na condição de ser-com. Porque o antecipar da possibilidade insuperável inclui em si todas as possibilidades situadas à sua frente, nela reside a possibilidade de se tomar previamente de modo existenciário toda a presença [Dasein], ou seja, a possibilidade de existir como todo o poder-ser. STMSC: §53

A possibilidade mais própria, irremissível, insuperável e certa é, no tocante à certeza, indeterminada. Como o antecipar abre esse caráter da possibilidade privilegiada da presença [Dasein]? Como a COMPREENSÃO antecipadora projeta-se para um certo poder-ser constantemente possível, de maneira que sempre fique indeterminado quando a absoluta impossibilidade da existência tornar-se-á enfim possível? No antecipar para a morte certa mas indeterminada, a presença [Dasein] abre-se para uma ameaça que sempre emerge de seu próprio pre [das Da]. O ser para o fim deve manter-se nessa ameaça e não pode apagá-la, mas, ao contrário, ela é que deve construir a indeterminação da certeza. Como é possível, do ponto de vista existencial, a abertura genuína dessa ameaça permanente? Todo compreender se dá numa disposição. O humor lança a presença [Dasein] para o estar-lançado de seu “que ela é pre [das Da]-sença”. A angústia, porém, é a disposição que permite que se mantenha aberta a ameaça absoluta e insistente de si mesmo, que emerge do ser mais próprio e singular da presença [Dasein]. Na angústia, a presença [Dasein] dispõe-se frente ao nada da possível impossibilidade de sua existência. A angústia se angustia pelo poder-ser daquele ente assim determinado, abrindo-lhe a possibilidade mais extrema. Porque o antecipar simplesmente singulariza a presença [Dasein] e, nessa singularização, torna certa a totalidade de seu poder-ser, a disposição fundamental da angústia pertence ao compreender de si mesma, própria da presença [Dasein]. O ser-para-a-morte é, essencialmente, angústia {CH: mas não apenas angústia e muito menos angústia como mera emoção}. Isso é testemunhado, de modo indubitável, embora “apenas” indireto, pelo ser-para-a-morte já caracterizado, quando a angústia se faz medo covarde e, superando, denuncia a covardia à angústia. STMSC: §53

A consciência dá “algo” a compreender, ela abre. Dessa caracterização formal surge a indicação de se reconduzir o fenômeno para a abertura da presença [Dasein]. Essa constituição fundamental daquele ente que nós mesmos somos constitui-se de disposição, COMPREENSÃO, decadência e fala. A análise mais profunda da consciência a desvela como apelo. O apelo é um modo de fala. O apelo da consciência possui o caráter de interpelação da presença [Dasein] para o seu poder-ser-si-mesmo mais próprio e isso no modo de fazer apelo para o seu ser e estar em dívida mais próprio. STMSC: §54

Essa interpretação existencial dista, necessariamente, da COMPREENSÃO ôntico-cotidiana, embora elabore os fundamentos ontológicos do que a interpretação vulgar da consciência sempre compreendeu em determinados limitese conceituou numa “teoria” da consciência. Nesse sentido, a interpretação existencial precisa submeter-se ao crivo de uma crítica da interpretação vulgar da consciência. E a partir da elaboração do fenômeno pode-se alcançar em que medida ele testemunha um poder-ser próprio da presença [Dasein]. Ao apelo da consciência corresponde a possibilidade de uma escuta. O compreender do interpelar desvela-se como um querer-ter-consciência. Nesse fenômeno, porém, dá-se a escolha existenciária que escolhe um ser-si-mesmo denominado, em correspondência à sua estrutura existencial, de decisão. Com isso temos a articulação das análises desse capítulo: os fundamentos ontológico-existenciais da consciência (§55); o caráter de apelo da consciência (§56); a consciência como apelo da cura (§57); a COMPREENSÃO do interpelar e a dívida (§58); a interpretação existencial da consciência e sua interpretação vulgar (§59); a estrutura existencial do poder-ser próprio, testemunhado na consciência (§60). STMSC: §54

O apelo dispensa qualquer verbalização. Ele não vem primeiro à palavra e, não obstante, nada permanece obscuro e indeterminado. A fala da consciência sempre e apenas se dá em silêncio. Não somente nada perde em termos de percepção, mas até leva a presença [Dasein] interpelada e apelada à silenciosidade de si mesma. A falta de verbalização do que, no apelo, se apela não remete o fenômeno à indeterminação de uma voz misteriosa, mas mostra apenas que a COMPREENSÃO não deve se apoiar na expectativa de uma comunicação ou de algo parecido. STMSC: §56

O que o apelo abre é, não obstante, unívoco e preciso, mesmo que possa sofrer interpretações diversas, segundo as possibilidades de COMPREENSÃO de cada presença [Dasein] singular. Apesar da aparente indeterminação do conteúdo do apelo não se pode deixar de considerar a direção segura com que o apelo intervém. O apelo não necessita primeiro buscar, tateando, o interpelado. Não necessita de nenhum sinal que designe ser ele o visado. Na consciência, os “enganos” não surgem de uma falha do apelo, mas somente do modo em que se escuta o apelo – de que, ao invés de ser propriamente compreendido, o apelo é arrastado pelo impessoalmente si mesmo para uma conversa negociadora consigo mesmo, desviando-se, assim, de sua tendência de abertura. STMSC: §56

A consciência faz apelo ao si-mesmo da presença [Dasein] para sair da perdição no impessoal. O si-mesmo interpelado permanece indeterminado e vazio em seu conteúdo. O apelo ultrapassa o que a presença [Dasein], numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, compreende a seu respeito, a partir da interpretação das ocupações. Não obstante, o si-mesmo é alcançado de modo unívoco e inconfundível. Não apenas o apelo considera o interpelado “sem levar em conta a sua pessoa” como quem apela se mantém numa surpreendente indeterminação. Ele não somente recusa uma resposta às perguntas sobre o nome, a posição, a origem e consideração. Embora jamais se descaracterize, quem apela também não oferece a menor possibilidade de tornar o apelo familiar para uma COMPREENSÃO da presença [Dasein] orientada “mundanamente”. Quem apela o apelo – isso pertence à sua caracterização fenomenal – mantém afastada de si toda possibilidade de tornar-se conhecido. É contra o seu modo de ser deixar-se atrair pela observação e discussão. A indeterminação e impossibilidade de determinação próprias de quem apela não é um nada negativo, mas um traço positivo. Ele anuncia que quem apela só se empenha em fazer apelo..., que ele só escuta assim e, por fim, que ele não aceita tagarelices a seu respeito. Mas então o fenômeno não exigiría que se abandonasse a questão de quem é que apela? Sim, assim seria quando se escuta existenciariamente o fato do apelo da consciência. Não, porém, para a análise existencial da facticidade do apelo e da existencialidade da escuta. STMSC: §57

Faz-se ainda necessário recolocar explicitamente a pergunta de quem apela? Não será então que para a presença [Dasein] essa pergunta se responde com a mesma precisão que a questão do que é interpelado no apelo? Na consciência, a presença [Dasein] apela para si. Essa COMPREENSÃO de quem apela deve estar mais ou menos desperta na escuta fática do apelo. Do ponto de vista ontológico, não é de forma alguma suficiente a resposta de que a presença [Dasein] é, ao mesmo tempo, quem apela e quem é interpelado. Na condição de interpelada, a presença [Dasein] não se a-pre [das Da]-senta diferentemente do que como apelante? Não será o seu poder-ser si-mesmo mais próprio que faz apelo? STMSC: §57

O apelo não relata nenhum dado ou conteúdo. Apela sem nenhuma verbalização. O apelo fala estranhamente em silêncio. E isso somente porque o apelo não interpela para a falação pública do impessoal mas sim para dele sair e passar para a silenciosidade do poder-ser existente. Em que contexto funda-se a certeza fria e estranha, embora não evidente, com a qual aquele que apela atinge o interpelado, senão em que, na estranheza de sua singularidade, a presença [Dasein] é para si absolutamente insubstituível? O que mais retira tão radicalmente da presença [Dasein] a possibilidade de deturpar a COMPREENSÃO e o conhecimento de si do que a entrega e o abandono a si mesma? STMSC: §57

Não se pode contestar a legitimidade de tais ponderações. Pode-se exigir de uma interpretação da consciência que nela “se” reconheça o fenômeno questionado no modo em que ele é cotidianamente experimentado. Satisfazer essa exigência também não significa reconhecer a COMPREENSÃO ôntica e vulgar da consciência como instância primordial de uma interpretação ontológica. Por outro lado, porém, as ponderações referidas são ainda prematuras posto que a análise da consciência que lhes conviria ainda não se concluiu. Buscou-se até agora reconduzir a consciência, enquanto fenômeno da presença [Dasein], à constituição ontológica desse ente. Isso serve como preparação para a tarefa de tornar a consciência compreensível enquanto testemunho de seu poder-ser mais próprio, constitutivo da própria presença [Dasein]. STMSC: §57

O que a consciência testemunha só poderá adquirir plena determinação caso se delimite, com clareza e suficiência, o caráter que deve ter o ouvir que genuinamente corresponde ao apelo. A COMPREENSÃO própria, aquela que “segue” o apelo, não é um mero acréscimo do fenômeno da consciência, um processo que poderia ou não advir. Só se pode apreender a vivência plena da consciência, partindo da e junto com a COMPREENSÃO do interpelar. Se a própria presença [Dasein] é em si mesma sempre ao mesmo tempo quem apela e o interpelado, então quando não se dá ouvidos ao apelo, quando não se dá ouvidos a si, está em jogo um modo determinado de ser da presença [Dasein]. Do ponto de vista existencial, um apelo solto no ar, ao qual “nada se segue”, é uma ficção impossível. No modo de ser da presença [Dasein], o “que nada segue” significa algo positivo. STMSC: §57

Do mesmo modo, só a partir da análise da COMPREENSÃO do interpelar é que se pode retornar explicitamente à discussão daquilo que o apelo dá a compreender. Foi, no entanto, apenas com esta caracterização ontológica geral da consciência que se tornou possível conceber, existencialmente, o que na consciência é apelado no sentido de “dívida”. Todas as experiências e interpretações da consciência convêm, de alguma maneira, que a “voz” da consciência fala de “dívida”. STMSC: §57

§58. A COMPREENSÃO do interpelar e a dívida STMSC: §58

A fim de se apreender fenomenalmente o que se ouviu na COMPREENSÃO do interpelar é preciso retornar, de forma renovada, à interpelação. A interpelação do impessoalmente-si-mesmo significa fazer apelo ao si-mesmo mais próprio para assumir o seu poder-ser e isso enquanto presença [Dasein], ou seja, enquanto ser-no-mundo das ocupações e ser-com os outros. A interpretação existencial daquilo para que o apelo faz apelo não pode pretender delimitar nenhuma possibilidade concreta e singular de existência, desde que suas possibilidades e tarefas metodológicas sejam devidamente compreendidas. Não se pode e nem se quer fixar no apelado o que sempre se dá, existenciariamente, em cada presença [Dasein], mas sim aquilo que pertence à condição existencial de possibilidade do poder-ser fático e existenciário. STMSC: §58

A COMPREENSÃO existenciária que escuta o apelo é tanto mais própria quanto mais a presença [Dasein] escutar e compreender, sem estabelecer remissões, o seu ser-interpelado e quanto menos aquilo que se diz, o que convém e possui validade, deturpa o sentido do apelo. O que reside essencialmente na propriedade da COMPREENSÃO do interpelar? O que no apelo se dá a compreender de modo essencial, embora nem sempre seja, faticamente, compreendido? STMSC: §58

Já indicamos a resposta para essas questões com a seguinte tese: o apelo não “diz” nada que se pudesse discutir. Não oferece nenhum conhecimento a respeito de dados. O apelo coloca a presença [Dasein] diante de seu poder-ser e isso enquanto apelo proveniente da estranheza. É indeterminado quem apela – mas o lugar de onde ele apela não é indiferente para o apelo. No apelo, esse lugar de onde – a estranheza da singularidade lançada – é convocado, ou seja, abre-se conjuntamente. Na apelação para..., o lugar de onde provém o apelo é o lugar para onde se destina a reclamação. O apelo não dá a compreender um poder-ser ideal e universal; ele abre o poder-ser como a singularidade de cada presença [Dasein]. O caráter de abertura do apelo só se determina plenamente na sua COMPREENSÃO de reclamação que apela. Somente orientando-se por essa apreensão do apelo é que se deve perguntar o que ele dá a compreender. STMSC: §58

Não seria, contudo, mais fácil e seguro responder à questão do que diz o apelo, indicando-se “simplesmente” o que comumente se ouve ou se deixa de ouvir em todas as experiências da consciência, ou seja, que o apelo endereça-se à presença [Dasein] como “o que está em dívida” ou, como no caso da consciência que adverte, remete a uma “dívida” possível ou ainda, enquanto “boa” consciência, confirma não “ter ciência de nenhuma dívida”? Se ao menos essa “dívida”, experimentada unanimemente, não recebesse tantas e variadas determinações nas experiências e interpretações da consciência! Mas mesmo que o sentido dessa “dívida” pudesse ser apreendido univocamente, o conceito existencial desse ser e estar em dívida permaneceria obscuro. Se, no entanto, a própria presença [Dasein] se endereça a si como “estando em dívida”, de onde provém a ideia de dívida senão da interpretação do ser da presença [Dasein]? Mas, novamente, apresenta-se a questão: Quem diz que somos e estamos em dívida e o que significa dívida? A ideia de dívida não pode surgir arbitrariamente e ser imposta à presença [Dasein]. Caso seja possível uma COMPREENSÃO da essência da dívida, então essa possibilidade já deve estar esboçada na presença [Dasein]. Como podemos encontrar a pista capaz de nos levar ao desvelamento do fenômeno? Todas as investigações ontológicas de fenômenos como dívida, consciência, morte devem apoiar-se naquilo que a interpretação cotidiana da presença [Dasein] “diz” a seu respeito. No modo de ser decadente da presença [Dasein] acontece igualmente que, na maior parte das vezes, sua interpretação se “orienta” impropriamente, não indo ao encontro da “essência”, porque lhe é estranho o questionamento ontológico originário. Mas em toda falsa visão se dá igualmente uma indicação da “ideia” originária do fenômeno. De onde, porém, tomamos o critério para o sentido existencial originário da “dívida”? De que essa “dívida” surge como predicado do “eu sou”. Será que no ser da presença [Dasein] como tal subsiste algo que, na interpretação imprópria, é compreendido como “dívida”, de tal modo que, existindo faticamente, também já se é e está em dívida? STMSC: §58

O recurso à “dívida” ouvido unanimemente ainda não é a resposta para a pergunta do sentido existencial do que no apelo se apela. Esse ainda deve ser conceituado de modo a possibilitar a COMPREENSÃO do que significa a “dívida” apelada, de por que e como o seu significado é deturpado na interpretação cotidiana. STMSC: §58

Numa primeira aproximação, a COMPREENSÃO cotidiana toma o “ser e estar em dívida” no sentido de um “débito”, de “ter o rabo preso com alguém”. Deve-se restituir a outrem algo a que ele tem direito. Esse “estar em dívida” no sentido de “ter débitos” é um modo de ser-com os outros no âmbito da ocupação de providências e encomendas. Outros modos desta ocupação são também o retirar, o tomar emprestado, reter, roubar, ou seja, de algum modo, não satisfazer o direito de posse dos outros. O ser e estar em dívida dessa natureza refere-se ao que é passível de ocupação. STMSC: §58

O apelo é apelo da cura. O ser e estar em dívida constitui o ser que chamamos de cura. Na estranheza, a presença [Dasein] se encontra originariamente reunida consigo mesma. A estranheza coloca esse ente diante de seu nada inconfundível, o qual pertence à possibilidade de seu poder-ser mais próprio. Na medida em que, para a presença [Dasein] enquanto cura, o que está em jogo é o seu ser, a partir da estranheza, ela faz apelo a si mesma, enquanto faticamente decadente no impessoal, para assumir o seu poder-ser. A interpelação é uma reclamação apeladora: a-pelar a possibilidade de, em existindo, assumir, em si mesmo, o ente-lançado que é; re-clamar para o estar-lançado de modo a se compreender como fundamento do nada a ser assumido na existência. A reclamação apeladora da consciência oferece para a presença [Dasein] a COMPREENSÃO de que ela, na possibilidade de seu ser, é o fundamento nulo de seu projeto nulo, devendo recuperar-se para si mesma da perdição no impessoal, ou seja, de que ela é e está em dívida. STMSC: §58

O sentido de apelo esclarece-se caso a COMPREENSÃO se atenha ao sentido existencial de ser e estar em dívida, em lugar de supor o conceito derivado de culpa , no sentido de uma dívida “nascida” de um ato ou omissão. Essa exigência não é arbitrária desde que o apelo da consciência, que provém ele mesmo da presença [Dasein], se dirija unicamente para esse ente. O fazer apelo ao ser e estar em dívida significa uma apelação do poder-ser que, enquanto presença [Dasein], eu sempre sou. Esse ente não precisa primeiramente carregar-se de “culpa” por falta ou omissão. Ele deve apenas ser e estar propriamente em dívida – tal como ele é e está. STMSC: §58

A escuta legítima da interpelação equivale a um compreender de si em seu poder-ser mais próprio, ou seja, em se projetando para o seu poder-ser e estar em dívida mais próprio. Permitir a apelação desta possibilidade numa COMPREENSÃO implica o tornar-se livre da presença [Dasein] para o apelo: a prontidão para poder ser interpelada. Compreendendo o apelo, a presença [Dasein] se faz escuta para a sua possibilidade de existência mais própria. Ela escolheu a si mesma. STMSC: §58

Com essa escolha, a presença [Dasein] possibilita para si o seu ser e estar em dívida mais próprio, fechado para o impessoalmente-si-mesmo. A COMPREENSÃO do impessoal apenas conhece satisfação e insatisfação no que concerne às regras manejáveis e às normas públicas. Violações destas são debitadas e exigidas quitações. O impessoal foge sorrateiramente do ser e estar em dívida mais próprio para tanto mais alto falar de erros e faltas. Na interpelação, porém, o impessoalmente-si-mesmo é interpelado no ser e estar em dívida mais próprio de si-mesmo. A COMPREENSÃO do apelo é a escolha não da consciência que, como tal, não pode ser escolhida. Escolhido é o ter consciência enquanto ser-livre para o ser e estar em dívida mais próprio. Compreender a interpelação significa: querer-ter-consciência. STMSC: §58

Desse modo, no que respeita ao modo vulgar de ser da presença [Dasein], nada garante que se tenha conquistado um horizonte ontológico adequado para a interpretação e para a teoria da consciência que dela surgem. Entretanto, de algum modo, a experiência vulgar da consciência deve alcançar pré-ontologicamente o fenômeno. Daí decorre que, por um lado, a interpretação cotidiana da consciência não pode servir como critério último de “objetividade” para uma análise ontológica. Esta, por sua vez, não possui nenhum direito para desconsiderar a COMPREENSÃO cotidiana da consciência e passar por cima das teorias antropológicas, psicológicas e teológicas nela assentadas. Caso a análise existencial do fenômeno da consciência tenha liberado o seu enraizamento ontológico, então as interpretações vulgares devem tornar-se compreensíveis a partir deste enraizamento e não no seu equívoco e encobrimento do fenômeno. Todavia, como no contexto problemático desse tratado a análise da consciência encontra-se unicamente a serviço da questão ontológica fundamental, deve ser suficiente apenas uma indicação para os problemas essenciais da caracterização do nexo entre a interpretação existencial e a vulgar. STMSC: §59

Mas será que o “fato” de a voz vir depois exclui que, no fundo, é uma apelação? Que se apreenda a voz como aquilo que segue ao estímulo da consciência ainda não demonstra uma COMPREENSÃO originária do fenômeno. E se a culpabilização fática e originária fosse apenas ocasião para o apelo fático da consciência? E se a interpretação caracterizada da “má” consciência só estivesse a meio caminho? A posição ontológica prévia a que o fenômeno é levado nesta interpretação esclarece que é assim. A voz é algo que emerge, que tem seu lugar na sequência de vivências simplesmente dadas e que sucede à vivência do ato. Mas nem o apelo, nem o ato e nem a culpa são ocorrências dotadas do caráter de um ser simplesmente dado que ocorre. O apelo possui o modo de ser da cura. Nele, a presença [Dasein] “é e está” antecedendo-a-si-mesma, de tal modo que ela retorna, ao mesmo tempo, para o seu estar-lançado. Somente partindo-se imediatamente da suposição de que a presença [Dasein] é uma sequência de nexos de vivências é que se pode considerar a voz como algo que vem depois, como alguma coisa posterior e, assim, necessariamente o que remonta para trás. A voz, sem dúvida, re-clama mas, ultrapassando o ato, reclama o ser e estar em dívida que, lançado, é “anterior” a toda e qualquer culpabilização. A reclamação, ao mesmo tempo, faz apelo ao ser e estar em dívida como algo a ser assumido na própria existência de tal modo que o ser-culpado propriamente existenciário “segue” o apelo e não o contrário. No fundo, a má consciência é tão pouco uma mera censura retroativa que ela reclama, sobretudo, numa referência antecipadora ao estar-lançado. A sucessão de vivências que decorrem uma após a outra não apresenta a estrutura fenomenal de existência. STMSC: §59

Com isso, perde em força a objeção de que a interpretação existencial desconsideraria que o apelo da consciência se referia cada vez a um determinado ato “realizado” ou que se dá na vontade. Não se pode negar que, com frequência, o apelo é experimentado nessa tendência. Permanece, no entanto, a questão se essa experiência do apelo permite que ele se faça “apelamento” em toda a sua plenitude. A interpretação comum pode pretender sustentar-se nos “fatos”, limitando, nessa sua COMPREENSÃO, a abrangência de abertura do apelo. A “boa” consciência se presta tão pouco a um “farisaísmo” quanto se pode reduzir a função da “má” consciência a uma indicação de culpabilizações possíveis, simplesmente dadas ou reprimidas. Pois é como se a presença [Dasein] fosse um “orçamento doméstico” cujas dívidas só precisariam ser quitadas para o si-mesmo poder ficar, como espectador passivo, “ao lado” dessas sequências de vivências. STMSC: §59

É a partir da expectativa de uma indicação útil das possibilidades de “ação”seguras, disponíveis e calculáveis que se sente a falta de um conteúdo “positivo” no que se apela. Essa expectativa funda-se no horizonte da ocupação que compreende e força a existência da presença [Dasein] à ideia de um todo negociável segundo regras. Tais expectativas que, em parte, constituem também o solo implícito da exigência de uma ética material dos valores frente a uma ética “meramente” formal acabam se decepcionando com a consciência. O apelo da consciência não propicia tais indicações “práticas” unicamente porque ele faz apelo à presença [Dasein] para a existência, para o poder-ser mais próprio de si mesma. Com as máximas esperadas e precisamente calculadas, a consciência negaria à existência nada menos do que a possibilidade de agir. Porque, manifestamente, a consciência não pode ser “positiva” nesse modo, ela também não funciona nesse mesmo modo “apenas negativamente”. O apelo não entreabre nada que, enquanto algo passível de ocupação, pudesse ser positivo ou negativo, porque ele diz respeito a um ser ontologicamente diverso, qual seja, à existência. Em contrapartida, no sentido existencial, o apelo, compreendido corretamente no sentido existencial, propicia o que há “de mais positivo”, ou seja, a possibilidade mais própria que se pode dar à presença [Dasein] enquanto reclamação apeladora do poder-ser faticamente a cada vez si-mesma. Ouvir com propriedade o apelo significa colocar-se na ação fática. Só podemos conquistar uma interpretação plena e suficiente do que se apela no apelo quando se elaborar e apresentar a estrutura existencial à base da COMPREENSÃO que propriamente escuta o interpelar como tal. STMSC: §59

A interpretação existencial da consciência deve expor um testemunho de seu poder-ser mais próprio que está sendo na própria presença [Dasein]. O testemunho da consciência não é um anúncio indiferente mas uma apelação apeladora do ser e estar em dívida. O que se testemunha é, pois, “apreendido” no ouvir que compreende o apelo sem deturpações, no sentido por ele mesmo intencionado. Apenas a COMPREENSÃO do interpelar, enquanto modo de ser da presença [Dasein], propicia o teor fenomenal do que é testemunhado no apelo da consciência. Caracterizamos a COMPREENSÃO própria do apelo como querer-ter-consciência. Esse deixar o si-mesmo mais próprio agir em si por si mesmo, em seu ser e estar em dívida, representa, do ponto de vista fenomenal, o poder-ser próprio, testemunhado na presença [Dasein]. A sua estrutura existencial deve ser agora liberada numa exposição. Somente assim penetraremos na constituição fundamental da propriedade da existência que se abre na própria presença [Dasein]. STMSC: §60

O terceiro momento essencial da abertura é a fala. Entendido como fala originária da presença [Dasein], o apelo exclui toda e qualquer fala contrária, algo no sentido de uma discussão negociadora do que diz a consciência. A escuta compreensiva do apelo recusa a fala contrária não porque essa escuta fosse atropelada por um “poder obscuro” e repressor mas por se apropriar, sem encobrimentos, do conteúdo do apelo. O apelo apresenta o insistente ser e estar em dívida, retirando, assim, o si-mesmo da algazarra da COMPREENSÃO impessoal. Por isso a silenciosidade é o modo de articulação da fala que pertence ao querer-ter-consciência. Caracterizou-se o silêncio como possibilidade essencial da fala. Aquele que, silenciando, quer dar a compreender, deve “ter algo a dizer”. Na interpelação, a presença [Dasein] dá a compreender o seu poder-ser mais próprio. Por isso, o apelo é um silêncio. A fala da consciência nunca chega a articular-se. A consciência só apela em silêncio, ou seja, o apelo provém da mudez da estranheza e reclama a presença [Dasein] apelada para aquietar-se na quietude de si mesma. É só na silenciosidade, portanto, que o querer-ter-consciência compreende, adequadamente, essa fala silenciosa. A silenciosidade retira a palavra da falação e da COMPREENSÃO impessoal. STMSC: §60

A abertura da presença [Dasein] subsistente no querer-ter-consciência é constituída, portanto, pela disposição da angústia, pela COMPREENSÃO enquanto projetar-se para o ser e estar em dívida mais próprio e pela fala enquanto silenciosidade. Chamamos de decisão essa abertura privilegiada e própria, testemunhada pela consciência na própria presença [Dasein], ou seja, o projetar-se silencioso e pronto a angustiar-se para o ser e estar em dívida mais próprio. STMSC: §60

É na existencialidade da presença [Dasein], como um poder-ser no modo da preocupação em ocupações, que se prelineia, ontologicamente, o para quê da decisão. Todavia, enquanto cura, a presença [Dasein] se determina por facticidade e decadência. Aberta em seu “pre [das Da]”, ela se mantém, de modo igualmente originário, na verdade e na não-verdade. “Propriamente” isso vale justamente para a decisão enquanto verdade própria. Ela se apropria propriamente da não-verdade. A presença [Dasein] já está e, talvez sempre esteja, na indecisão. Esse termo designa apenas o fenômeno já interpretado como abandono à interpretação predominante do impessoal. A presença [Dasein] é “vivida” como o impessoal-si-mesmo pela ambiguidade do senso comum, característica do público em que ninguém se decide e que, no entanto, já sempre incide. A decisão significa deixar-se receber o apelo a partir da perdição no impessoal. A indecisão do impessoal permanece também predominante, embora não seja capaz de alcançar a existência decidida. Enquanto conceito inverso à decisão em sua COMPREENSÃO existencial, a indecisão não significa uma qualidade ôntica e psíquica, no sentido de sobrecarga de repressões. O decisivo também continua referido ao impessoal e a seu mundo. A possibilidade disto ser compreendido depende do que se abre na decisão, já que só a decisão propicia à presença [Dasein] a transparência própria. Na decisão está em jogo o poder-ser mais próprio da presença [Dasein] que, lançado, só pode projetar-se para possibilidades faticamente determinadas. O decisivo não se retira da “realidade” mas descobre o faticamente possível, a tal ponto que o apreende como o poder-ser mais próprio, possível no impessoal. A determinação existencial da presença [Dasein] decidida a cada possibilidade abrange os momentos constitutivos do fenômeno existencial, até agora desconsiderado, que chamamos de situação. STMSC: §60

A decisão conduz o ser do pre [das Da] à existência de sua situação. A decisão, porém, delimita a estrutura existencial do poder-ser próprio, testemunhado na consciência, isto é, do querer-ter-consciência. Nele reconhecemos a COMPREENSÃO adequada do interpelar. com isso, torna-se inteiramente claro que o apelo da consciência, o fazer apelo ao poder-ser, não propõe nenhum ideal vazio de existência, mas faz apelo para a situação. Essa positividade existencial do apelo da consciência, corretamente compreendido, também evidencia a medida em que a limitação da tendência do apelo para culpabilizações anteriormente cometidas e contraídas desconhece o caráter de abertura da consciência e aparentemente só nos transmite a COMPREENSÃO concreta de sua voz. A interpretação existencial que compreende o interpelar enquanto decisão desvela a consciência como o modo de ser que se acha no fundo da presença [Dasein]. É neste modo de ser que a consciência, testemunhando o poder-ser mais próprio, possibilita para si mesma a sua existência fática. STMSC: §60

Por outro lado, a interpretação do “nexo” entre decisão e antecipar alcançou, assim, a COMPREENSÃO existencial plena do próprio antecipar. Até aqui, ele só podia valer como projeto ontológico. Agora, porém, mostrou-se que antecipar não é uma possibilidade inventada e a seguir imposta à presença [Dasein], mas o modo de um poder-ser, testemunhado existenciariamente na presença [Dasein] a que ela se dispõe quando se compreende propriamente numa decisão. Antecipar não “é” uma atitude solta no ar mas deve ser concebido como a possibilidade de sua propriedade velada e incluída na decisão existenciariamente co-testemunhada. Em sentido próprio, “pensar na morte” é a transparência existenciária do querer-ter-consciência. STMSC: §62

Mas ainda assim de onde se deve retirar o que constitui “propriamente” a existência da presença [Dasein]? Sem uma COMPREENSÃO existenciária, toda análise da existencialidade permanece sem solidez. Será que a interpretação da propriedade e totalidade da presença [Dasein] não tem por base uma concepção ôntica da existência que, não obstante possível, não precisa, obrigatoriamente, impor-se a toda e qualquer concepção de existência? A interpretação existencial nunca pretenderá exercer poder sobre as possibilidades e obrigações existenciárias. Mas não deverá ela justificar a si mesma no que tange às possibilidades existenciárias com as quais ela oferece um solo ôntico para a interpretação ontológica? Se, de modo essencial, o ser da presença [Dasein] é poder-ser e ser-livre para as suas possibilidades mais próprias, e se ele só existe na liberdade e não-liberdade para estas possibilidades, poderá então a interpretação ontológica basear-se em outras possibilidades senão as ônticas (modos de poder-ser) e projetá-las sobre a sua possibilidade ontológica? E se, na maior parte das vezes, a presença [Dasein] se interpreta a partir da perdição no “mundo” das ocupações? Nesse caso, a determinação das possibilidades ôntico-existenciárias, conquistada em contracorrente à perdição, e a análise existencial que nelas se funda não constituiriam o modo de abertura adequado a esse ente? A violência do projeto não se tornaria, assim, cada vez, uma liberação do teor fenomenal não distorcido da presença [Dasein]? STMSC: §63

A caracterização do “nexo” entre cura e si-mesmo não visava apenas ao esclarecimento do problema específico da estrutura do eu, pretendendo servir também como último preparativo para a apreensão fenomenal da totalidade do todo estrutural da presença [Dasein]. Como, para a visão ontológica, o modo de ser da presença [Dasein] não deve desvirtuar-se num modo, mesmo que totalmente indiferente, de ser simplesmente dado, fez-se necessária a disciplina ininterrupta do questionamento existencial. A presença [Dasein] torna-se essencial na existência própria, que se constitui pela decisão antecipadora. Esse modo de propriedade da cura inclui a autoconsistência originária e a totalidade da presença [Dasein]. É na visão concentrada de ambas em uma COMPREENSÃO existencial que se deve liberar o sentido ontológico do ser da presença [Dasein]. STMSC: §65

Haurido da constituição ontológica da decisão antecipadora, o conteúdo fenomenal desse sentido preenche o significado do termo temporalidade. O uso terminológico dessa expressão deve, de início, manter distantes todos os significados impostos pelo conceito vulgar de tempo como “futuro”, “passado” e “presente”. O mesmo vale para os conceitos de um “tempo” “subjetivo” e “objetivo”, respectivamente, “imanente” e “transcendente”. Na medida em que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] compreende impropriamente, pode-se presumir que o compreender vulgar de “tempo” apresente um fenômeno, sem dúvida, autêntico, mas derivado. Ele surge da temporalidade imprópria que, por sua vez, possui sua própria origem. Os conceitos de “futuro”, “passado” e “presente” nascem, imediatamente, da COMPREENSÃO imprópria de tempo. A delimitação terminológica dos fenômenos originários e próprios correspondentes lutam com a mesma dificuldade inerente a toda terminologia ontológica. Nesse campo de investigação, as violências não são arbitrariedade mas uma necessidade fundada nas coisas de que trata. Para que se possa demonstrar, sem lacunas, a origem da temporalidade imprópria a partir da temporalidade originária e própria, é imprescindível uma elaboração concreta do fenômeno originário que até agora só foi caracterizado grosseiramente. STMSC: §65

Estas questões devem ser respondidas afirmativamente. E mesmo assim elas não significam nenhuma objeção à finitude da temporalidade originária. Isto porque já não dizem respeito a ela. A questão não é o que ainda pode acontecer “num tempo que prossegue” e nem que espécie de deixar-vir-a-si ocorre “a partir deste tempo”. A questão é como se determina originariamente o deixar-vira-si ele mesmo como tal. Finitude não diz primariamente término. Finitude é um caráter da própria temporalização. O porvir originário e próprio é o para-si, um para-si que existe como a possibilidade insuperável do nada. O caráter ekstático do porvir originário reside justamente em incluir o poder-ser, isto é, em estar ele mesmo incluído e, como tal, possibilitar a COMPREENSÃO existenciária e decidida do nada. O vir-a-si originário e próprio é o sentido do existir no nada mais próprio. Com a tese da finitude originária da temporalidade não se contesta que “o tempo prossegue”, mas esta tese deve simplesmente manter o caráter fenomenal da temporalidade originária que se mostra no que é projetado pelo projeto existencial e originário da própria presença [Dasein]. STMSC: §65

A primeira tarefa consiste em tornar visível a impropriedade da presença [Dasein] em sua temporalidade específica, através da análise temporal do poder-ser todo em sentido próprio da presença [Dasein] e de uma caracterização geral da temporalidade da cura. Numa primeira aproximação, a temporalidade mostra-se na decisão antecipadora. Ela é o modo próprio da abertura que, na maior parte das vezes, se mantém na impropriedade da auto-interpretação decadente do impessoal. Caracterizar a temporalidade da abertura em geral leva à COMPREENSÃO temporal do ser-no-mundo mais imediato das ocupações e, com isso, da indiferença mediana da presença [Dasein], aqui tomada como primeiro ponto de partida da analítica existencial. Chamamos de cotidianidade o modo de ser mediano da presença [Dasein] no qual, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, ela se mantém. Mediante a retomada da análise anterior, a cotidianidade deve desvelar o seu sentido temporal para, com isso, deixar vir à luz a problemática abrigada na temporalidade e fazer desaparecer por completo a aparente “evidência” das análises preparatórias. A temporalidade deve, na verdade, confirmar-se em todas as estruturas essenciais da constituição fundamental da presença [Dasein]. Isto, porém, não leva a uma repetição esquemática e exterior das análises realizadas em sua sequência. O curso da análise temporal toma agora uma outra direção, tornando ainda mais claro o contexto das considerações anteriores e superando a casualidade e a aparente arbitrariedade. Além dessas necessidades metodológicas, motivos inerentes ao próprio fenômeno impõem uma outra articulação da análise a ser retomada. STMSC: §66

A estrutura ontológica desse ente, que eu mesmo sou, centra-se na autoconsistência da existência. Porque o si-mesmo não pode ser concebido nem como substância e nem como sujeito, estando fundado na existência, a análise do impropriamente-si-mesmo, isto é, do impessoal, foi totalmente abandonada ao fluxo da interpretação preparatória da presença [Dasein]. Tendo-se, agora, retomado expressamente o si-mesmo na estrutura da cura e, assim, da temporalidade, a interpretação temporal da autoconsistência e da consistência do não si-mesmo recebe uma gravidade própria. Ela necessita de um desenvolvimento temático especial. Contudo, ela não apenas propicia uma segurança correta contra os paralogismos e as questões ontologicamente inadequadas sobre o ser do eu, como também oferece, ao mesmo tempo, e de acordo com sua função central, uma visão mais originária da estrutura de temporalização da temporalidade. Esta se desvela como a historicidade da presença [Dasein]. A proposição: a presença [Dasein] é histórica confirma-se, do ponto de vista ontológico-existencial, como enunciado fundamental. Ela está muito distante de uma constatação meramente ôntica do fato de a presença [Dasein] se dar numa “história mundial”. A historicidade da presença [Dasein] é, porém, o fundamento de uma possível COMPREENSÃO historiográfica que, por sua vez, comporta a possibilidade de uma elaboração explícita da historiografia como ciência. STMSC: §66

Com o termo compreender, designamos um existencial fundamental; não se trata nem de um tipo de conhecer determinado, distinto, por exemplo, de explicar e conceituar, e nem, sobretudo, de um conhecer em geral, no sentido de apreender tematicamente. Ao contrário, compreender constitui o ser do pre [das Da] na medida em que uma presença [Dasein], com base na COMPREENSÃO, pode, em existindo, formar as múltiplas possibilidades de visão, circunvisão e mera visualização. Enquanto descoberta compreensiva do incompreensível, todo explicar tem suas raízes no compreender primordial da presença [Dasein]. STMSC: §68

Como então distinguir o porvir impróprio? Assim como o porvir em sentido próprio desvela-se na decisão, também este modo ekstático só pode desvelar-se reconduzindo-se, ontologicamente, da COMPREENSÃO imprópria das ocupações cotidianas, a seu sentido existencial e temporal. Como cura, a presença [Dasein] é, em sua essência, antecipar-se. Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, o ser-no-mundo compreende-se a partir daquilo de que se ocupa. O compreender impróprio projeta-se para o que é passível de ocupação e feitura, para o que é urgente e inevitável nos negócios dos afazeres cotidianos. Todavia, aquilo de que se ocupa é como é, em virtude do poder-ser da cura. Este permite que a presença [Dasein], em seu ser de ocupações, venha-a-si ocupando-se do que se ocupa. Primariamente, a presença [Dasein] não vem-a-si em seu poder-ser mais próprio e irremissível mas é em se ocupando que a presença [Dasein] aguarda a si mesma, a partir do que lhe proporciona ou recusa aquilo de que se ocupa. É a partir daquilo de que se ocupa que a presença [Dasein] vem-a-si. O porvir impróprio possui o caráter de aguardar. Compreender-se, impessoalmente, nas ocupações como o impessoalmente-si-mesmo a partir daquilo que se empreende encontra o “fundamento” de sua possibilidade nesse modo ekstático de porvir. E somente porque de fato a presença [Dasein] aguarda o seu poder-ser, a partir daquilo de que se ocupa, é que ela pode esperar e tecer expectativas... O aguardar sempre já deve ter aberto o horizonte e o âmbito a partir do que algo pode ser esperado. Esperar é o modo do porvir fundado no aguardar que, em sentido próprio, se temporaliza como antecipar. É por isso que no antecipar reside um ser-para-a-morte mais originário do que nas suas esperas das ocupações. STMSC: §68

Assim como a espera só é possível com base no aguardar, também a recordação só é possível com base no esquecer e não o contrário; pois, no modo do esquecimento, o vigor de ter sido “abre”, primariamente, o horizonte em que a presença [Dasein], perdida na “exterioridade” das ocupações, pode recordar-se. O aguardar que atualiza e esquece é uma unidade ekstática própria onde a COMPREENSÃO imprópria se temporaliza em sua temporalidade. A unidade destas ekstases fecha o poder-ser próprio sendo, com isso, a condição existencial de possibilidade da indecisão. Embora o compreender impróprio das ocupações se determine pela atualização daquilo de que se ocupa, é primariamente no porvir que o compreender se temporaliza. STMSC: §68

O compreender funda-se, primariamente, no porvir (antecipar e aguardar). A disposição temporaliza-se, primariamente, no vigor de ter sido (retomada e esquecimento). A decadência enraíza-se, primária e temporalmente, na atualidade (atualização e instante). Não obstante, a COMPREENSÃO é sempre atualidade “do vigor de ter sido”. Não obstante, a disposição se temporaliza num porvir “atualizante”. Não obstante, a atualidade “surge” ou se sustenta num porvir do vigor de ter sido. Assim, fica claro que: a temporalidade se temporaliza totalmente em cada ekstase, ou seja, a totalidade do todo estrutural de existência, facticidade e decadência funda-se na unidade ekstática de cada temporalização plena da temporalidade. Esta é a unidade estrutural da cura. STMSC: §68

O deixar e fazer em conjunto da ocupação que, por sua vez, se funda na temporalidade, ainda é uma COMPREENSÃO inteiramente pré-ontológica e não tematizada de conjuntura e manualidade. Em seguida, mostrar-se-á em que medida a temporalidade também funda a COMPREENSÃO destas determinações de ser como tais. Antes, porém, é necessário comprovar, de forma ainda mais concreta, a temporalidade do ser-no-mundo. Neste intuito, observaremos o “surgimento” da atitude teórica frente ao “mundo” a partir da ocupação do manual, guiada pela circunvisão. Tanto a descoberta guiada pela circunvisão quanto a descoberta teórica dos entes intramundanos danos fundam-se no ser-no-mundo. A interpretação existencial e temporal daquela deve preparar a caracterização temporal desta constituição fundamental da presença [Dasein]. STMSC: §69

Se, no movimento das análises ontológico-existenciais, questionamos o “aparecimento” da descoberta teórica a partir da ocupação guiada pela circunvisão, então o que se problematiza não é a história e o desenvolvimento ôntico da ciência e nem suas condições fatuais ou seus fins mais imediatos. Buscando a gênese ontológica da atitude teórica, colocamos a seguinte questão: Quais as condições de possibilidade, inerentes à constituição ontológica da presença [Dasein] e existencialmente necessárias, para que a presença [Dasein] possa existir no modo da pesquisa científica? Esse questionamento visa a um conceito existencial da ciência. Deste difere o conceito “lógico”, que compreende a ciência no tocante a seus resultados, determinando-a como “um sistema de fundamentação de sentenças verdadeiras, isto é, de validade universal”. O conceito existencial compreende a ciência como modo da existência e, portanto, como modo do ser-no-mundo, que descobre e abre o ente e o seu ser. Só se pode, no entanto, desenvolver de forma plena e suficiente a interpretação existencial da ciência, caso se esclareça, a partir da temporalidade da existência, o sentido de ser e do “nexo”entre ser e verdade. As reflexões que se seguem preparam a COMPREENSÃO desta problemática central, somente a partir da qual se poderá desdobrar a ideia da fenomenologia por oposição ao conceito preliminar, já indicado de forma introdutória. STMSC: §69

A circunvisão movimenta-se nas remissões conjunturais de um nexo instrumental à mão. Ela própria, por sua vez, é submetida à direção de uma supervisão, mais ou menos explícita, do todo instrumental de cada mundo de instrumentos e de seu correspondente mundo circundante público. A supervisão não é apenas um ajuntamento posterior de seres simplesmente dados. O essencial da supervisão é a COMPREENSÃO primária da totalidade conjuntural, dentro da qual a ocupação de fato sempre se coloca. A supervisão, que ilumina a ocupação, recebe sua “luz” do poder-ser da presença [Dasein], em virtude do qual a ocupação existe como cura. Através de uma interpretação do que se vê, a circunvisão “supervisora”, própria da ocupação, coloca mais perto da presença [Dasein] aquilo que, em cada uso e manejo, está à mão. Chamamos de reflexão a aproximação específica que interpreta, numa circunvisão, aquilo de que se ocupa. O seu esquema característico é: “se-então”, se isto ou aquilo, por exemplo, deve-se produzir, deve ser retirado do uso ou guardado, então se faz necessário este ou aquele meio, caminho, circunstância e ocasião. A reflexão guiada pela circunvisão ilumina cada posição fática da presença [Dasein] em seu mundo circundante de ocupações. Ela nunca é, portanto, mera “constatação” do ser simplesmente dado de um ente ou de suas propriedades. A reflexão também pode realizar-se sem que aquilo mesmo que se aproxima numa circunvisão esteja ao alcance da mão ou vigente no campo mais próximo da visão. Este colocar mais perto o mundo circundante, na reflexão guiada pela circunvisão, tem o sentido existencial de uma atualização. Pois o tornar atual é somente um modo daquela. Nela, a reflexão visa diretamente às necessidades que não estão à mão. A circunvisão que torna atual não se refere a “meras representações”. STMSC: §69

A atualização, guiada pela circunvisão, é, no entanto, um fenômeno de múltiplos fundamentos. De início, ela sempre pertence a uma unidade ekstática plena da temporalidade. Seu fundamento é reter o nexo instrumental. Ocupando-se deste, a presença [Dasein] aguarda uma possibilidade. O que já se abriu, nesse reter que aguarda, coloca mais perto a atualização ou o tornar atual reflexivos. No entanto, para que a reflexão possa mover-se no esquema do “se-então”, é preciso que a ocupação já compreenda, “numa supervisão”, o nexo da conjuntura. Aquilo que é interpelado como o “se” já deve ser compreendido como isto ou aquilo. Para tanto, é necessário que a COMPREENSÃO do instrumento se exprima numa predicação. O esquema “algo como algo” já está prelineado na estrutura do compreender pré-predicativo. A estrutura-como funda-se, ontologicamente, na temporalidade do compreender. Aguardando uma possibilidade, ou seja, aqui, aguardando um para quê, a presença [Dasein] volta a um ser para isso, o que significa: a presença [Dasein] retém um manual. Somente por isso é que, a partir do que foi retido, a atualização inerente a esse reter que aguarda pode, inversamente, colocá-lo, de modo explícito, mais perto em sua referencialidade ao para quê. No esquema da atualização, a reflexão aproximadora deve adequar-se ao modo de ser daquilo que deve ser aproximado. Pela reflexão, o caráter de conjuntura do que está à mão não é descoberto mas apenas aproximado, de tal maneira que a reflexão faz ver como tal, numa circunvisão, aquilo junto com o que algo está em conjunto. STMSC: §69

O enraizamento da atualidade no porvir e no vigor de ter sido é a condição existencial e temporal de possibilidade para que aquilo que se projetou no compreender da COMPREENSÃO, guiada por uma circunvisão, possa ser colocado mais perto numa atualização. E isto de tal forma que a atualidade se adéque ao que vem ao encontro no horizonte do reter que aguarda, ou seja, se deva interpretar segundo o esquema da estrutura-como. Com isso, responde-se à questão anteriormente colocada se a estrutura-como estabelece um nexo ontológico-existencial com o fenômeno do projeto. Da mesma maneira que o compreender e o interpretar em geral, o “como” funda-se na unidade ekstática e horizontal da temporalidade. Com a análise fundamental do ser, e esta no contexto da interpretação do “é”, que, como cópula, “exprime” o dizer de algo como algo, devemos tematizar mais uma vez o fenômeno do como e delimitar, existencialmente, o conceito de “esquema”. STMSC: §69

A COMPREENSÃO de uma totalidade conjuntural inserida na circunvisão das ocupações funda-se numa COMPREENSÃO preliminar das remissões de ser-para, para quê, ser para isso, em virtude de. Expôs-se anteriormente o nexo destas remissões como significância. Sua unidade constitui o que chamamos de mundo. Levanta-se, porém, a seguinte questão: Como é, ontologicamente, possível a unidade de mundo e presença [Dasein]? De que modo o mundo deve ser, para que a presença [Dasein] possa existir enquanto ser-no-mundo? STMSC: §69

A presença [Dasein] existe em virtude de um poder-ser de si mesma. Existindo, ela está lançada e, enquanto lançada, entregue à responsabilidade de entes dos quais ela necessita para poder ser como ela é, ou seja, em virtude de si mesma. Existindo faticamente, a presença [Dasein] compreende-se nesta conexão entre ser em virtude de si mesma e cada para quê. O contexto em que a presença [Dasein] se compreende em seu existir é e se faz “presença [Dasein]” em sua existência fática. O em que da COMPREENSÃO primária de si mesma possui o modo de ser da presença [Dasein]. Esta, em existindo, é seu mundo. STMSC: §69

A irrupção da presença [Dasein] no espaço apenas é possível com base na temporalidade ekstática e horizontal. O mundo não é simplesmente dado no espaço; o espaço, no entanto, só pode ser descoberto no seio de um mundo. É justamente a temporalidade ekstática da espacialidade inerente à presença [Dasein] que torna compreensível a independência entre espaço e tempo e, inversamente, também a “dependência” entre presença [Dasein] e espaço. Esta última se revela no fenômeno já conhecido da ampla predominância de “representações espaciais” na auto-interpretação da presença [Dasein] e no teor significativo da linguagem. Este primado do espacial na articulação de significados e conceitos não tem seu fundamento num poder próprio do espaço e sim no modo de ser da presença [Dasein] {CH: a não há oposição, ambos se pertencem mutuamente}. Sendo essencialmente decadente, a temporalidade perde-se na atualização, compreendendo-se não apenas numa circunvisão a partir do que está à mão nas ocupações, mas também retirando, daquilo que a atualização sempre encontra de vigente, a saber, as relações espaciais, os parâmetros para articular o que a COMPREENSÃO compreende e pode interpretar. STMSC: §70

Lançada, a presença [Dasein] está, sem dúvida, entregue à responsabilidade de si mesma e de seu poder-ser, mas como ser-no-mundo. Lançada, ela está referida a um “mundo” e existe faticamente com os outros. Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, o si-mesmo está perdido no impessoal. Ele se compreende a partir das possibilidades de existência que “estão em curso” na interpretação pública da presença [Dasein], sempre hodierna e “mediana”. Devido à ambiguidade, elas são, em sua maioria, irreconhecíveis embora conhecidas. A COMPREENSÃO existenciária própria escapa tão pouco da interpretação legada que, no decisivo, ela sempre retira a possibilidade escolhida dessa interpretação, contra ela mas sempre a seu favor. STMSC: §74

Não é necessário que a decisão saiba explicitamente a proveniência das possibilidades para as quais ela se projeta. Mas é na temporalidade da presença [Dasein] e somente nela que reside a possibilidade de tomar expressamente a COMPREENSÃO transmitida da presença [Dasein] do poder-ser existenciário para o qual ela se projeta. A decisão que retorna a si e se transmite torna-se, assim, retomada de uma possibilidade legada de existência. A retomada é a transmissão explícita, ou seja, o retorno às possibilidades da presença [Dasein], que é o vigor de ter sido presença [Dasein]. A retomada própria do ter sido de uma possibilidade existencial – que a existência escolhe seus heróis – funda-se, existencialmente, na decisão antecipadora; pois é somente nela que se escolhe a escolha capaz de libertar a sucedaneidade na luta e a fidelidade a outras possibilidades de retomada. Não é, contudo, a transmissão passível de ser retomada de uma possibilidade em vigor que abre a presença [Dasein], enquanto vigor de ter sido presença [Dasein], numa nova realização. A retomada do possível não é uma recolocação do “passado” nem uma religação do “presente” com “o que foi superado”. Surgindo de um projeto decidido, a retomada não se deixa persuadir pelo “passado” a fim de deixá-lo apenas retornar como o que alguma vez foi real. A retomada controverte a possibilidade da existência que é vigor de ter sido presença [Dasein]. Mas, por ser no modo do instante, a controvérsia da possibilidade no decisivo também é a resposta àquilo que hoje age como “passado”. A retomada não se abandona ao passado nem almeja um progresso. No instante, a existência própria é indiferente a ambos. STMSC: §74

Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] se compreende a partir do que vem ao encontro no mundo circundante e daquilo de que se ocupa numa circunvisão. Este compreender não é um mero registro de si, que apenas acompanharia todos os comportamentos da presença [Dasein]. Compreender significa projetar-se em cada possibilidade de ser-no-mundo, isto é, existir como essa possibilidade. Assim, compreender enquanto compreensibilidade também constitui a existência imprópria do impessoal. Numa convivência pública, o que vem ao encontro da ocupação cotidiana não é apenas o instrumento e a obra, mas também aquilo que com eles se “dá”: os “negócios”, empreendimentos, incidentes, acidentes. O “mundo” é, ao mesmo tempo, solo e palco, pertencendo, como tal, à ação e à transformação cotidianas. Na convivência pública, os outros vêm ao encontro nesses empreendimentos em que o “impessoalmente-si-mesmo” “também navega”. O impessoal sempre conhece, discute, favorece, combate, mantém e esquece, primordialmente, na perspectiva daquilo que se empreende e daí “emerge”. Sempre calculamos, de imediato, o prosseguimento, a interrupção, a inversão e o “resultado” de cada presença [Dasein] singular a partir do andamento, do estado, da mudança e da disponibilidade daquilo de que se ocupa. Por mais trivial que possa ser a referência à COMPREENSÃO de presença [Dasein], no sentido de compreensibilidade cotidiana, do ponto de vista ontológico, ela não é, de forma alguma, transparente. Mas por que, então, não se pode determinar o “nexo” da presença [Dasein] a partir das ocupações e das “vivências”? Instrumento, obra e tudo o mais em que a presença [Dasein] se detém não pertencem à “história”? Será então o acontecer da história apenas o transcurso isolado de “fluxos vivenciais” em sujeitos singulares? STMSC: §75

A presença [Dasein] cotidiana se dispersa na multiplicidade do que “se passa” diariamente. As oportunidades e circunstâncias, que a ocupação antecipadamente aguarda, “de forma tática”, resultam no “destino”. É a partir dos negócios da ocupação que a presença [Dasein], existente na impropriedade, calcula sua história. Impelida pelos empreendimentos de seus “negócios”, a presença [Dasein] deve recuperar-se da dispersão e desconexão do que acaba de “se passar” para retornar a si mesma. Justamente por isso é que a questão de um “nexo” a se fundar da presença [Dasein], no sentido de vivências “também” simplesmente dadas do sujeito, só pode nascer do horizonte de COMPREENSÃO da historicidade imprópria. A possibilidade do predomínio desse horizonte de questionamento funda-se na indecisão, que constitui a essência da in-consistência do si-mesmo. STMSC: §75

De início, isto será esclarecido, indicando-se que, como ciência da história da presença [Dasein], a historiografia deve “pressupor” o ente originariamente histórico como seu possível “objeto”. Todavia, para que um objeto histórico se torne acessível, não apenas deve se dar a história. Da mesma forma, não apenas o conhecimento historiográfico, na condição de comportamento da presença [Dasein] num acontecer, é histórico. Mas, segundo a sua natureza e estrutura ontológicas, toda abertura historiográfica da história já está, em si mesma, radicada na historicidade da presença [Dasein], quer se tenha cumprido de fato ou não. É a esse contexto que se está referindo ao se falar da origem existencial da historiografia a partir da historicidade da presença [Dasein]. Do ponto de vista do método, esclarecê-lo significa: projetar, ontologicamente, a ideia da historiografia a partir da historicidade da presença [Dasein]. Mas não se trata de adequar nem de “abstrair” o conceito da historiografia de uma atividade científica que hoje é um fato. Pois, em princípio, o que garante que esse procedimento de fato represente a historiografia segundo as suas possibilidades originárias e próprias? Mesmo se este fosse o caso, a respeito do qual não nos pronunciamos, só se poderia “descobrir” no fato o conceito, mediante a COMPREENSÃO da ideia de historiografia. Por outro lado, a ideia existencial da historiografia não adquire maior direito se os historiógrafos a confirmarem porque ela concordaria com a sua atividade. Ela também não se torna “falsa” porque discordaria. STMSC: §76

A abertura historiográfica do “passado”, fundada na retomada que tem a marca do destino, é tão pouco “subjetiva” que somente ela é capaz de garantir a “objetividade” da historiografia. Pois a objetividade de uma ciência regula-se, primariamente, pela possibilidade de apresentar, sem encobrimentos, à COMPREENSÃO o seu ente temático na originariedade de seu ser. Em nenhuma ciência, a “validade universal” dos parâmetros e as exigências de “universalidade”, imposta pelo impessoal e por sua compreensibilidade, são menos critérios possíveis de “verdade” do que na historiografia própria. STMSC: §76

Histórica, a presença [Dasein] apenas é possível com base na temporalidade. Esta se temporaliza na unidade ekstática e horizontal de suas retrações. A presença [Dasein] existe propriamente como porvir na abertura decidida de uma possibilidade escolhida. Voltando a si numa decisão, ela se abre em retomadas para as possibilidades “monumentais” da existência humana. A historiografia que surge de tal historicidade é “monumental”. Enquanto vigor de ter sido, a presença [Dasein] é e está entregue à responsabilidade de seu estar-lançado. Ao se apropriar do possível nas retomadas, também se prelineia a possibilidade de se venerar a existência que vigora por ter sido presença [Dasein], preservada e revelada na possibilidade assumida. Monumental, a historiografia própria é, por isso, “antiquária”. A presença [Dasein] se temporaliza como atualidade na unidade do porvir e do vigor de ter sido. A atualidade abre, como instante, o hoje em sentido próprio. Interpretando o instante a partir da COMPREENSÃO porvindoura nas retomadas de uma possibilidade de existência assumida, a historiografia própria desatualiza o hoje, isto é, separa-se, com sofrimento, do público e decadente do hoje. Em sentido próprio, a historiografia monumental e antiquária é, necessariamente, uma crítica do “presente”. A historicidade própria é o fundamento da unidade possível das três essências da historiografia. O solo em que se funda a historiografia própria é, no entanto, a temporalidade enquanto sentido ontológico e existencial da cura. STMSC: §76

O trabalho de pesquisa de Dilthey pode ser dividido, esquematicamente, em três campos: estudos sobre a teoria das ciências do espírito e sua delimitação frente às ciências da natureza; pesquisas sobre a história das ciências do homem, da sociedade e do estado; investigações sobre uma psicologia que deve expor “todo o fato homem”. Pesquisas sobre epistemologia, sobre a história da ciência e sobre a psicologia hermenêutica perpassam e se misturam constantemente. Onde uma perspectiva de visão prepondera, as demais já constituem motivo e meios. O que se apresenta como dualidade, “tentativas” inseguras e acidentais, é a inquietação elementar com uma meta: trazer a “vida” para uma COMPREENSÃO filosófica e assegurar, para essa COMPREENSÃO, um fundamento hermenêutico a partir da “vida ela mesma”. Tudo está centrado na “psicologia”, que deve compreender a “vida” em seu nexo de desenvolvimento e ação históricos como o modo em que o homem é, tomando-a ao mesmo tempo como objeto possível e como raiz das ciências do espírito. A hermenêutica é a explicação que esse compreender dá de si mesmo, e somente de forma derivada é que se apresenta como metodologia da historiografia. STMSC: §77

É pelo conhecimento do caráter ontológico da própria presença [Dasein] humana e não por uma epistemologia ligada ao objeto da consideração histórica que Yorck alcança a COMPREENSÃO penetrante e clarividente do caráter fundamental da história enquanto “virtualidade”: “O ponto nevrálgico da historicidade reside em que a totalidade dos dados psicofísicos não é (é = ser simplesmente dado da natureza. Observação do autor), mas vive. E uma reflexão sobre si mesmo, que não se dirige a um eu abstrato mas à plenitude do meu si-mesmo, é que haverá de me encontrar historicamente determinado tal como a física me reconhece cosmologicamente determinado. Tanto quanto natureza, eu sou história...” (p. 71). E Yorck, que via com profundidade toda a inautenticidade da “determinação de relações” e toda a “falta de solidez” dos relativismos, não hesita em tirar as últimas consequências desta visão profunda da historicidade da presença [Dasein]. “Mas, por outro lado, para a historicidade interior da autoconsciência é, metodologicamente, inadequada uma sistemática separada da história. Assim como a psicologia não pode abstrair da física, também a filosofia – e justamente quando é crítica – não pode abstrair da historicidade... – A atitude consigo mesmo e a historicidade são como a respiração e a pressão do ar e por mais paradoxal que possa parecer – no aspecto metodológico, a não historização me parece um resto metafísico” (p. 69). “Em minha opinião, existe uma filosofia da história – não se assuste – porque filosofar é viver – quem poderia escrevê-la! Decerto, não no sentido em que até agora se concebeu e buscou, contra o que o senhor irrefutavelmente se pronunciou. Falso, até impossível, embora não seja o único, tem sido o questionamento até hoje existente. Por isso já não há nenhum filosofar real que não seja histórico. A separação entre filosofia sistemática e exposição histórica é, essencialmente, incorreta” (p. 251). “O poder tornar-se prática é, sem dúvida, o fundamento próprio e justo de toda ciência. Mas a práxis matemática não é a única. A finalidade prática de nosso ponto de vista é a pedagógica, no sentido mais amplo e profundo do termo. Ela é a alma de toda verdadeira filosofia e a verdade de Platão e Aristóteles” (p. 42s). “O senhor sabe o que eu acho a respeito da possibilidade de uma ciência da ética. Apesar disso, sempre se pode fazer algo melhor. Para quem são propriamente esses livros? Arquivos e arquivos! O único valor digno de nota é o élan de passar da física para a ética” (p. 73). “A filosofia é manifestação da vida e não a expectoração de um pensamento, que não possui nem manifesta solidez por desviar a visão do solo da consciência. Nessa concepção, a tarefa será parcimoniosa em resultados mas complexa e trabalhosa em sua conquista. Liberdade dos preconceitos é a pressuposição, que já é muito difícil de se adquirir” (p. 250). STMSC: §77

Yorck se empenhou em apreender categorialmente o histórico por oposição ao ôntico (ocular) e, assim, elevar a “vida” a uma COMPREENSÃO científica adequada. Isso fica claro a partir da referência ao tipo de dificuldade com que tais investigações se deparam: o modo estético-mecanicista de pensar “encontra mais facilmente as palavras, mediante o esclarecimento disseminado da proveniência ocular das palavras, do que uma análise que remonta aquém da intuição... O que, ao contrário, penetra até o fundo da vida furta-se a uma exposição exotérica e, por isso, a terminologia não é compreendida pelo senso comum, sendo, inevitavelmente, simbólica. É da especificidade do pensamento filosófico que decorre a especificidade de sua expressão verbal” (p. 70s). “Mas o senhor conhece minha predileção pelo paradoxo. Eu a justifico observando que o paradoxo é uma marca da verdade e que a communis opinio certamente nunca está na verdade, pois é o sedimento elementar da generalização de uma meia-compreensão que se relaciona com a verdade, tal como o rastro de enxofre que o raio deixa atrás de si. A verdade nunca é um elemento. A tarefa pedagógica do Estado seria desfazer a opinião pública elementar e possibilitar, tanto quanto possível, a formação da individualidade no ver e no perceber. Ao invés do que se chama de consciência moral pública – essa alienação radical – voltamos a consciências singulares, que fortaleceriam a consciência moral” (p. 249s). STMSC: §77

Para se comprovar que e como a temporalidade constitui o ser da presença [Dasein], mostrou-se o seguinte: enquanto constituição ontológica da existência, a historicidade é, “no fundo”, temporalidade. A interpretação do caráter temporal da história se fez, contudo, sem considerar o “fato” de que todo acontecer decorre “no tempo”. Ao longo da análise existencial e temporal da historicidade, não se deu a palavra à COMPREENSÃO cotidiana da presença [Dasein] que, de fato, só conhece a história como acontecer “intratemporal”. Se a analítica existencial deve tornar ontologicamente transparente a presença [Dasein], justamente em sua facticidade, então deve-se devolver expressamente o direito à interpretação “ôntico-temporal” e fatual da história. O tempo “em que” os entes intramundanos vêm ao encontro deve, ainda mais necessariamente, receber uma análise fundamental, porque, além da história, também os processos naturais se determinam “pelo tempo”. Todavia, mais elementar do que a constatação de que o “fator tempo” vem à tona nas ciências da história e da natureza é que, bem antes de qualquer pesquisa temática, a presença [Dasein] já “conta com o tempo” e por ele se orienta. Aqui, novamente, permanece decisivo o “contar” “com o seu tempo”, inerente à presença [Dasein], que antecede todo uso de instrumentos de medição, adequados à determinação temporal. Este contar antecede o uso, possibilitando a utilização de relógios. STMSC: §78

O que pertence à essência dessa possibilidade de datação e onde ela se funda? Pode-se fazer uma pergunta mais supérflua do que esta? “É sabido” que com o “agora em que...” nos referimos a um “ponto do tempo”. O “agora” é tempo. De modo indiscutível, também compreendemos o “agora em que”, o “então, quando” e o “outrora, quando” num nexo com o “tempo”. Todavia, com a COMPREENSÃO “natural” do “agora”, etc, ainda não se concebe que estes também se referiram ao “tempo”, nem como isso é possível e nem o que significa “tempo”. Será, então, evidente que “compreendemos sem mais” o “agora”, o “então” e o “outrora” e os pronunciamos “naturalmente”? Nesse caso, de onde tiramos o “agora em que...”? Será que o achamos em meio aos entes intramundanos, em meio ao que é simplesmente dado? Manifestamente não. Será que ele já foi achado? Será que alguma vez nos dispusemos a procurá-lo e a constatá-lo? “Todo tempo” nós dispomos dele, sem tê-lo assumido explicitamente, e dele fazemos uso insistente sem verbalizá-lo. A fala mais trivial, pronunciada distraidamente na cotidianidade como, por exemplo, “está frio” refere-se a um “agora em que...” Por que, ao dizer aquilo de que se ocupa, a presença [Dasein], mesmo sem verbalizar, pronuncia um “agora em que...”, um “então, quando...” e um “outrora, quando...”? Porque o dizer que interpreta alguma coisa pronuncia, conjuntamente, a si mesmo, isto é, pronuncia o ser junto ao que está à mão, que compreende numa circunvisão e que vem ao encontro na descoberta. E porque esse dizer e discutir que também interpreta a si está fundado numa atualização e só é possível como tal. STMSC: §79

Em cada modo de se deixar tempo nas ocupações, a datação do tempo parte de tudo aquilo de que, em cada momento, se ocupa no mundo circundante. E no que se abre na COMPREENSÃO própria da disposição, a datação parte do que se empreende “dia a dia”. Toda vez que a presença [Dasein] se empenha, aguardando as ocupações ou se esquecendo de si por não aguardar a si mesma, o seu tempo, aquele que ela se “deixa”, também fica encoberto nesse modo de “deixar”. Justo no “ir vivendo” inerente à ocupação cotidiana, a presença [Dasein] nunca se compreende como o transcurso ao longo de uma sequência contínua e duradoura de puros “agora”. Com base nesse encobrimento, o tempo que a presença [Dasein] se dá também tem lacunas, por assim dizer. É frequente não se conseguir recompor o “dia”, recorrendo-se ao tempo “utilizado”. Essa não recomposição das lacunas do tempo não é, contudo, uma fragmentação, mas um modo da temporalidade já sempre aberta e ekstaticamente es-tendida. O modo pelo qual o tempo “dado” “decorre” e a espécie de indicação em que a ocupação se dá tempo, de forma mais ou menos explícita, só podem ser explicitados fenomenalmente de maneira adequada caso, por um lado, se afaste a “representação” teórica de um fluxo contínuo de agora e, por outro, se conceba que os modos possíveis em que a presença [Dasein] se dá e se deixa tempo devem ser, primordialmente, determinados de acordo com a maneira em que a presença [Dasein] “tem” seu tempo, em correspondência a cada existência singular. STMSC: §79

Na abertura propiciada pelo relógio natural, pertencente à presença [Dasein] lançada na decadência, reside, igualmente, um fazer-se público privilegiado e sempre realizado pela presença [Dasein] do tempo ocupado. Este se consolida e aumenta através do aperfeiçoamento da contagem do tempo e do refinamento do uso do relógio. Não caberia aqui expor historiograficamente o desenvolvimento histórico da contagem do tempo e do uso do relógio, percorrendo suas possíveis transformações. Deve-se, ao invés, colocar, de modo ontológico e existencial, a seguinte questão: Qual o modo de temporalização da temporalidade da presença [Dasein] que se revela na direção em que se formaram a contagem do tempo e o uso do relógio? Junto com a resposta a esta questão deve nascer uma COMPREENSÃO mais originária de que também a medição do tempo, ou seja, a publicação explícita do tempo ocupado, está fundada na temporalidade da presença [Dasein] e, na verdade, numa sua temporalização bem determinada. STMSC: §80

Comparando-se a presença [Dasein] “primitiva”, à base da análise da contagem “natural” do tempo, com a presença [Dasein] “evoluída”, mostra-se que, para esta última, o dia e a vigência da luz solar já não possuem uma função privilegiada. Isto porque ela tem o “privilégio” de também poder tornar dia a noite. Da mesma forma, para se constatar o tempo não é mais necessária uma visão imediata e explícita do sol e de sua posição. A fabricação e o uso de certos instrumentos de medição permitem uma leitura direta do tempo no relógio que para isso se produz. Que horas são é “quanto tempo é”. Mesmo que determinada leitura do tempo possa ficar encoberta, o uso do instrumento relógio também se funda na temporalidade da presença [Dasein] a qual, juntamente com a abertura do pre [das Da], possibilita uma datação do tempo ocupado. E isso porque, enquanto aquilo que possibilita uma contagem pública do tempo, o relógio deve ser regulado pelo relógio “natural”. A COMPREENSÃO do relógio natural, construída através da evolução da descoberta da natureza, acena para novas possibilidades de medição do tempo que são relativamente independentes do dia e de toda observação explícita do céu. STMSC: §80

Se, portanto, o tempo do mundo pertence à temporalização da temporalidade, ele não pode se evaporar “subjetivisticamente” e nem se “coisificar” numa “má objetivação”. Isso só pode ser evitado numa compenetração clara e não numa mera oscilação insegura entre ambas as possibilidades. O que só é possível, caso se compreenda como a presença [Dasein] cotidiana concebe, teoricamente, “o tempo” a partir de sua COMPREENSÃO mais imediata do tempo, e em que medida esse conceito de tempo e o seu predomínio lhe obstrui a possibilidade de compreender, partindo do tempo originário, ou seja, como temporalidade, o que ele quer dizer. A ocupação cotidiana, que dá para si mesma tempo, encontra “o tempo” no ente intramundano que vem ao encontro “no tempo”. Por isso, a explicação da gênese do conceito vulgar de tempo deve partir da intratemporalidade. STMSC: §80

De que maneira o “tempo” se temporaliza numa primeira aproximação para a ocupação cotidiana, guiada por uma circunvisão? Em que modo de lidar da ocupação no uso de instrumentos o tempo se torna expressamente acessível? O tempo se torna público com a abertura de mundo e já é sempre ocupado com a descoberta de entes intramundanos, inerente à abertura de mundo. Isso se dá na medida em que a presença [Dasein], contando o tempo, conta consigo mesma. Por isso é no uso do relógio que reside o comportamento em que se é orientado, de forma explícita, pelo tempo. O seu sentido existencial e temporal comprova-se como uma atualização do ponteiro que anda. Contar é seguir, atualizando, as posições do ponteiro. Essa atualização se temporaliza na unidade ekstática de um reter que aguarda. Reter o “outrora” numa atualização significa: dizendo-agora, ser e estar aberto para o horizonte do anterior, ou seja, do agora-não-mais. Aguardar o “então” numa atualização significa: dizendo-agora, estar aberto para o horizonte do posterior, ou seja, do agora-ainda-não. O que se mostra nessa atualização é o tempo. Como se define, portanto, o tempo revelado no uso do relógio próprio das ocupações, guiadas por uma circunvisão que toma tempo? O tempo é o que é contado na sequência atualizante de contagem do ponteiro no mostrador de suas variações. E isso de tal maneira que a atualização se temporaliza na unidade ekstática de reter e aguardar, abertos horizontalmente segundo o anterior e o posterior. Esta nada mais é do que a interpretação ontológico-existencial da definição do tempo, dada por Aristóteles: touto gar estin ò chronos, arithmos kineseos kata to proteron kai hysteron. “O tempo é isso, a saber, o que é contado no movimento que se dá ao encontro no horizonte do anterior e do posterior”. Por mais que, à primeira vista, essa definição possa parecer estranha, ao se delimitar o horizonte ontológico-existencial do qual Aristóteles a retira, ela se mostra por si mesma “evidente” e autenticamente haurida. Para Aristóteles, a origem do tempo assim revelado não constitui problema. Sua interpretação do tempo movimenta-se, sobretudo, na direção da COMPREENSÃO “natural” de ser. Mas como esta COMPREENSÃO e o ser nela compreendido tornam-se um problema de princípio para a presente investigação, a análise aristotélica do tempo só poderá ser tematicamente interpretada, após se resolver a questão do ser. E isso de maneira que ela conquiste um significado de princípio para a apropriação positiva do questionamento crítico e delimitado da antiga ontologia. STMSC: §81

Submitted on 26.08.2021 00:07
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