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Ser

Definition:
(gr. to on; lat. ens ou esse; in. Being; fr. Être; al. Sein; it. Esseré).

Preliminarmente, convém distinguir os dois usos fundamentais desse termo: 1) o uso predicativo, em virtude do qual dizemos "Sócrates é homem", ou "a rosa é vermelha"; 2) o uso existencial, em virtude do qual dizemos "Sócrates é" (= existe) ou "a rosa é" (= existe). Embora nem sempre explicitamente formulada, essa distinção é assumida ou pressuposta quase universalmente. Em Parmê-nides, Platão dá destaque à diferença entre a hipótese "o um é um" e a hipótese "o um é"; nesta última "é" significa "participação no Ser" (Parm., 137 e; 142 b). Aristóteles expressa de várias formas a mesma diferença: como diferença entre é como terceiro predicado e é como segundo predicado (De int., 10, 19b 19); como diferença entre é como predicado por acidente ("Homero é poeta") e é predicado por si ("Homero é") (Deint., II, 21 a 25); como diferença entre "Ser alguma coisa" e "Ser absolutamente" (El. sof., 5, 167 a 1). Na diferença entre Ser predicativo e Ser existencial baseia-se ainda a distinção aristotélica entre tese e hipótese, como premissas do silogismo: a primeira não assume a existência do objeto a que se refere; a segunda, sim (An. post., 1, 2, 72 a 18).

A diferença entre esses dois significados de Ser permanece constante na tradição filosófica posterior a Aristóteles. Tomás de Aquino afirma: "Ser tem dois significados: num modo significa o ato de Ser; no outro significa a composição da proposição que o homem encontra ao juntar o predicado ao sujeito" (Suma Teológica, 1, q. 3, a. 4; cf. De ente, 1). Na lógica terminista medieval distinguia-se o verbo Ser como segundo constituinte (secundo adiacens) da proposição, do verbo Ser que aparece como terceiro constituinte (tertio adiacens), em função predicativa ou de cópula (Occam, Summa log., II, 1; Alberto De Saxônia, Lógica, I, 5). Kant estabeleceu a distinção entre a posição predicativa ou relativa, expressa pela cópula de um juízo, e a posição absoluta ou existencial, com que se põe a existência da coisa (Der einzig môgliche Beweisgrund zu einer Demonstration des Daseins Gottes, 1763, § 2). Na filosofia moderna e contemporânea, essa distinção é lugar-comum, embora nem sempre seja explicitamente formulada. Na evolução sofrida pelas interpretações desses dois significados de Ser ao longo da história, pode-se perceber uma correspondência entre as interpretações do primeiro significado e as do segundo. Contudo, por uma questão de clareza, o estudo de cada uma delas deverá ser feito em separado.

1) Significado predicativo. Nas interpretações do significado predicativo é possível distinguir três doutrinas fundamentais: A) inerência; B) identidade (ou suposição); C) relação.

A) Segundo a doutrina da inerência, Ser, na relação predicativa, significa pertencer ou inerir (gr. hyparlein; lat. inesse). "Sócrates é homem" significa que a Sócrates inere a essência homem; "a rosa é vermelha" significa que à rosa pertence a qualidade vermelho, e assim por diante. O fundamento dessa doutrina é a teoria aristotélica da substância. De fato, as relações de inerência que podem ser expressas pelo verbo Ser são esclarecidas e distinguidas por Aristóteles com base nas relações entre a substância e sua essência necessária, ou entre a substância e suas outras determinações categoriais ou acidentais. Aristóteles diz: "Inerir, inerir necessariamente e inerir possivelmente são coisas diferentes" (An. pr., 1, 8, 29b 28). Inerência necessária é a da essência necessária (expressa pela definição) à coisa da qual é essência; inerir ou inerir possivelmente é referir-se à coisa com uma qualidade, quantidade ou qualquer outra das determinações categoriais não incluídas na definição da coisa ou puramente acidentais. Este é o significado da distinção aristotélica entre Ser necessário (ou por si) e Ser acidental. "Em sentido acidental, dizemos, p. ex., que o justo é músico, que o homem é músico e que o músico é homem, ou dizemos que o músico constrói quando acontece de o construtor ser músico ou de o músico ser construtor: em todos esses casos, dizer ‘isto é aquilo’ significa ‘A isto acontece aquilo’" (Met., V, 7, 101 7 a 7). Ao contrário, a inerência necessária ou por si não tem caráter acidental, e, mesmo ao especificar-se segundo as categorias, seu principal fundamento é a substância. Aristóteles diz: "Assim como ‘é’ inere a todas as coisas de modos diferentes, pois a algumas inere de modo primário e a outras de modo secundário, também o ‘o quê’ [essência] inere absolutamente à substância e só de certo modo às outras coisas. A respeito de uma qualidade podemos até perguntar o que ela é, e por isso até uma qualidade é exemplo de essência, mas não de modo absoluto. Assim, alguns afirmam que, por lógica, o não-Ser é, todavia não é de modo simples, mas apenas como não-Ser: o mesmo se diga da qualidade" (Ibid., VII, 4, 1030 a 22). Portanto, segundo Aristóteles, o Ser predicativo expressa a inerência ao sujeito de sua essência necessária, de determinações categoriais (que, embora não pertencendo à essência, dependem dela) ou de determinações acidentais. Esse significado de Ser tem um sentido privilegiado, que é o inerir substancial, ou seja, o inerir da essência necessária (expressa pela definição) à substância definida. "Sócrates é animal bípede" é um caso de inerência predicativa privilegiada se "animal bípede" é definição do homem, porque é a inerência da essência necessária à substância. As outras determinações, como p. ex. "Sócrates é filósofo", constituem casos de inerência secundária ou acidental.

As características fundamentais desse conceito do ser predicativo são: 1) sua redução a um tipo único de relação, qualificada como pertença ou inerência; 2) privilégio concedido à forma necessária dessa relação, ou seja, à forma como ocorre essa relação entre substância e essência. Estas características são mantidas pela doutrina em exame ao longo de toda a sua história, que é longuíssima. A tradição lógica medieval até o séc. XIII (quando do ressurgimento das doutrinas dos estoicos através da via moderna) não conhece alternativa. As doutrinas modernas de caráter racionalista geralmente as compartilham. Leibniz diz: "Todo predicado verdadeiro tem algum fundamento na natureza das coisas, e quando uma proposição não é idêntica, vale dizer, quando o predicado não está compreendido expressamente no sujeito, é preciso que esteja compreendido virtualmente: é isso que os filósofos chamam de inesse, ao afirmarem que o predicado está no sujeito" (Disc. de mét., 8). Do mesmo modo, para Hegel, o significado predicativo de Ser é a identidade entre individual e universal, ou seja, aquela mesma relação entre substância e essência que para Aristóteles era o caso privilegiado de relação predicativa. Hegel diz: "A cópula é vem da natureza do conceito, que é de ser idêntico a si mesmo ao se tornar extrínseco: como momentos seus, o individual e o universal são determinações que não podem ser isoladas" (Enc., § 166). Segundo Hegel, o juízo tende a expressar de modo mediato ou reflexo a unidade entre predicado e sujeito, vale dizer, a unidade de um conceito único que, através do próprio juízo e, mais completamente, através do silogismo, articula-se em suas determinações necessárias (Wissenschaft der Logik, III, I, cap. 2; trad. it., pp. 77 ss.). A doutrina exposta por alguns hegelianos ingleses (Bradley, Principles of Logic, 1883; Bosanquet, Logic, 1888), de que Ser predicativo significa referência de um conceito ao sistema total da realidade (de sorte que, no juízo, o conceito é uma qualificação essencial da Realidade Universal), representa a forma assumida pela doutrina hegeliana da cópula na filosofia contemporânea. Também nessa forma, pode-se reconhecer a teoria da inerência: a substância ou realidade à qual o predicado inere é a totalidade do real, em vez de ser (como na doutrina de Aristóteles) uma única substância.

B) A segunda interpretação fundamental de Ser predicativo é de identidade ou suposição: segundo ela, a cópula significa identidade do objeto ao qual o sujeito e o predicado da proposição se referem ou no lugar do qual estão (supponunt pro). Assim, p. ex., na expressão "Sócrates é branco", a cópula indicaria simplesmente que o sujeito "Sócrates" e o predicado "branco" referem-se ao mesmo objeto existente, que, portanto, pode ser qualificado com um ou com o outro dos dois termos. A origem desta doutrina está provavelmente na lógica estoica, na qual é fundamental a referência de qualquer enunciado a uma situação de fato imediatamente presente (v. essência). Mas é expressa claramente só na lógica do séc. XIII, em polêmica com a teoria da inerência. Ockham diz: "Proposições como ‘Sócrates é um homem’ ou ‘Sócrates é um animal’ não significam que Sócrates tem humanidade ou animalidade. Tampouco significam que a humanidade ou a animalidade está em Sócrates, nem que o homem ou o animal é uma parte da substância ou da essência de Sócrates, ou uma parte do conceito ou da substância de Sócrates. Significam que Sócrates é na realidade um homem e é na realidade um animal: não no sentido de Sócrates ser esse predicado ‘homem’ ou esse predicado ‘animal’, mas no sentido de que existe alguma coisa em lugar da qual esses dois predicados estão; como quando acontece que esses predicados estão no lugar de Sócrates" (Summa log., II, 2; Quodl, III, 5). Essa doutrina é expressa quase nos mesmos termos por Hobbes: "A proposição é um discurso que consta de dois nomes conjuntos: quem fala pretende dizer que, para ele, o segundo nome é um nome da mesma coisa cujo nome é o primeiro, ou — o que dá no mesmo — o primeiro nome está contido no segundo. Por ex., o discurso ‘O homem é animal’, em que os dois nomes estão reunidos pelo verbo é, é uma proposição porque quem a enuncia pretende dizer que, para ele, o segundo nome ‘animal’ é nome da mesma coisa cujo nome é ‘homem’" (De corp., I, 3, § 2). Essa doutrina foi substancialmente reproduzida por Stuart Mill, que distinguia as afirmações "essenciais", ou seja, gerais, que só explicam a essência nominal de uma coisa (v. essência), das proposições "reais", que sempre implicam a existência do sujeito a que se referem "porque, no caso de um sujeito inexistente, a proposição nada teria para asseverar" (Logic, I, VI, 2).

A referência à realidade imediatamente dada ou intuída é a primeira característica fundamental da doutrina em exame. Os lógicos do séc. XIV chegavam a considerar falsa até mesmo proposições tautológicas como "A quimera é quimera", quando nelas o sujeito representa um objeto inexistente (Occam, Summa log., II, 14). A segunda característica dessa doutrina é a identidade da referência objetiva dos termos da proposição (identidade da coisa em lugar da qual estão).

C) Segundo a terceira interpretação fundamental, a cópula é uma relação. Esta interpretação pode ser dividida em duas alternativas: a primeira (a) considera que a relação predicativa é subjetiva; a segunda (b) considera-a objetiva.

a) A interpretação do Ser predicativo como relação que é ato ou operação do sujeito pensante tem como pressuposto óbvio o princípio cartesiano de que o objeto imediato do conhecimento humano é apenas a ideia. Desse ponto de vista, a proposição apresenta-se como juízo e começa a ter esse nome porque. juízo é exatamente o ato com que o espírito escolhe ou decide. Descartes diz: "Dos meus pensamentos, alguns são como imagens das coisas, e a eles só convém o nome de ideia: como quando represento um homem, uma quimera, o céu, um anjo, ou Deus. Outros pensamentos têm, além destas, outras formas; p. ex., quando quero, temo, afirmo ou nego, estou concebendo alguma coisa como objeto da ação de meu espírito, mas, com essa ação, acrescento alguma outra coisa à ideia desse objeto; desses pensamentos, alguns são chamados de vontades ou emoções; outros, de juízos" (Méd, III). Portanto, segundo Descartes, juízo é uma ação do espírito por meio da qual "se acrescenta alguma coisa" à ideia que se tem de um objeto; em outros termos, é um ato de unificação ou síntese. Esta noção é claramente expressa na Lógica, de Arnauld: "Quando digo ‘Deus é justo’, ‘Deus’ é o sujeito dessa proposição, ‘justo’ é o atributo, e a palavra ‘é’ marca a ação do meu espírito que afirma, ou seja, que liga as ideias ‘Deus’ e ‘justo’ como convenientes uma à outra" (Log., II, 3). A definição lockiana de conhecimento como "percepção de vínculo e concordância ou de discordância e oposição entre nossas ideias" (Ensaio, IV, I, § 2) expressa exatamente a mesma tese. Locke diz: "Tudo o que sabemos ou podemos afirmar sobre uma ideia qualquer reside em ser ou não essa ideia igual a uma outra; em coexistir ou não com alguma outra ideia no mesmo sujeito; em ter uma ou outra relação com alguma outra ideia; ou em ter existência real ou fora do espírito" (Ibid., IV, I § 7). Portanto, mesmo em seu uso existencial, o verbo Ser só faz expressar relações percebidas pelo espírito, vale dizer, as relações cuja realidade está no sujeito cognoscen-te, embora não somente nele. Kant expressou esse mesmo conceito ao afirmar que o ato de juízo, atividade própria do intelecto, é a síntese: "Entendo por síntese, no sentido mais amplo dessa palavra, o ato de unir diversas representações e compreender a sua multiplicidade num só conhecimento" (Crítica da Razão Pura, § 10). Todas as interpretações idealistas da relação predicativa no mundo moderno partem dessa afirmação kantiana. Atividade sintética, poder sintético do espírito, síntese a priori, são expressões às quais a interpretação idealista do kantismo, a partir do Romantismo, emprestou um significado enfático e criativo, que de certo não tinham na doutrina de Kant: de qualquer modo, expressam o caráter subjetivo da atividade sintética, que como tal só pode operar entre "ideias" ou "representações", vale dizer, entre elementos ou estados do mesmo sujeito. A dificuldade fundamental que se opõe a essa doutrina é a óbvia consideração de que uma asserção qualquer não visa a estabelecer uma relação entre duas ideias, representações ou conceitos, mas entre os objetos aos quais se faz referência através deles. Quando se afirma "Sócrates é um homem", não se quer dizer que a representação Sócrates é homem, mas sim o indivíduo real ao qual o nome se refere. É em observações desse tipo que se baseia a alternativa objetivista.

b) A doutrina da cópula como relação objetiva foi apresentada pela primeira vez por De Morgan (Formal Logic, 1847, cap. 3) e adotada pelo criador da lógica matemática, Boole. Para este, a lógica tem duas espécies de relações: entre coisas e entre fatos; estas últimas também podem ser chamadas de relações entre proposições (Laws of Thought, 1854, I, § 6). De acordo com essa teoria, a relação expressa pela cópula é a mesma em todas as formas proposicionais, não porque sua natureza esteja expressa na proposição, mas porque é estabelecida por convenção. A cópula pode então expressar uma relação qualquer. Nesse sentido, ela foi chamada por De Morgan (Cambridge Philosophical Transactions, X, 339) de cópula abstrata. Peirce distinguiu os vários tipos de cópula da seguinte maneira: "Cópula transitiva é aquela para a qual é válido o modo Barbara. Schröder demonstrou o importante teorema de que, se usamos É para representar a espécie de cópula cujo exemplo é ‘maior que’, então existe algum termo relativo r tal que a proposição ‘S É P’ seja precisamente equivalente a ‘S é r para P e é r para qualquer coisa à qual P seja r’. Cópula de inclusão correlativa é aquela para a qual são válidos tanto o modo Barbara quanto a fórmula de identidade. Se representarmos essa cópula com é, existirá um termo relativo r tal que a proposição ‘S é P’ seja precisamente equivalente a ‘S é r para qualquer coisa à qual P é r’. Se a última proposição se seguir da penúltima, qualquer que seja o termo relativo r, a cópula será a de inclusão, usada por Peirce, Schröder e outros. De Morgan usa uma cópula que vale para qualquer relação que seja ao mesmo tempo transitiva e conversível, como p. ex. ‘igual a’ ou ‘da mesma cor de’. Para cada cópula desse tipo existirá algum termo relativo r tal que a proposição ‘S é P’ será exatamente equivalente a ‘S é r a cada coisa e só a cada coisa à qual P é r’. Tal cópula pode ser chamada de identidade correlativa. Se a última proposição se seguir da penúltima, a cópula é a de identidade, usada por Thompson, Hamilton, Baynes, Jevons e muitos outros" (Coll. Pap., 3, 622). Com mais simplicidade, hoje se costuma distinguir uma cópula de pertença, simbolizada por e, que designa a relação entre um indivíduo e uma classe; uma cópula de inclusão, simbolizada por ?, que designa a relação entre uma classe e outra classe; estas duas espécies de cópulas são distinguidas de operador (ou quantificador) existencial (v. operador). De qualquer forma, a característica fundamental desta concepção de Ser predicativo é a máxima generalidade: as outras interpretações de cópula podem ser consideradas casos especiais de relação, e como tais analisados. Além desses, é possível considerar outros casos. É exatamente essa teoria da cópula que possibilita a doutrina da proposição como função, segundo a qual o predicado é a função, e o sujeito é a variável da função (v. função).

2) Significado existencial. O segundo significado fundamental de Ser, o existencial, deve ser dividido em dois significados subordinados: I, como existência em geral; II, como existência privilegiada.

I. Em primeiro lugar, Ser pode significar existência no primeiro significado, geral e indeterminado, mas especificável ou definível de acordo com um critério qualquer. É nesse sentido que Aristóteles afirma que "o Ser se diz de muitos modos" (Met., VI, 2, 1026 a 32) e que se pode até dizer que o não-Ser é (Ibid., VII, 4, 1030 a 23).

Mas, tomado nesse sentido, o significado de Ser coincide com o de existência (no primeiro sentido), e seu estudo poderá ser encontrado no verbete existência.

II. Em segundo lugar, Ser pode significar existência privilegiada ou primária, na sua modalidade primeira e fundamental, da qual dependem todas as suas manifestações determináveis. Na maioria das vezes, este segundo significado é preparado e anunciado pelo acima exposto (segundo, I). O Ser se diz de muitos modos, mas apenas um é seu significado primário e fundamental. Esse é o ponto de vista de Aristóteles (Met., VII, 4, 1030 a 21). É justamente da relação entre os múltiplos significados que, à primeira vista, parecem caber ao Ser e o significado único e fundamental nos quais eles devem ser integrados, que nasce o chamado "problema do Ser". Trata-se do problema do significado primário, único e simples que se presume no Ser, mas que permanece mais ou menos oculto na multiplicidade dos seus aspectos aparentes. A investigação metafísica, na sua forma clássica, funda-se nesse problema. Trata-se de ver se existe um significado primário de Ser: em primeiro lugar, no sentido de expressar melhor que os outros a existencialidade do Ser; em segundo lugar, no sentido de possibilitar a integração dos outros significados, servindo-lhes de fundamento ou princípio.

A indagação do problema do Ser tende à determinação de um significado que preencha esses dois requisitos. Mas a disputa a que dá origem só se compara à "batalha de gigantes" de que falava Platão (Sof, 246), em que se defrontam os gigantes, ou "filhos da terra", para os quais toda a realidade é corpo, e os deuses, que afirmam a incorporeidade do Ser e o reduzem às formas ideais. Na realidade, o significado de Ser não é suficientemente estabelecido pelo caráter de corporeidade ou pela sua negação, porque um ser considerado corpóreo pode ter os mesmos caracteres formais de um Ser considerado incorpóreo, como ocorria com o Ser de que falavam os dois grupos protagonistas da "batalha de gigantes". É bem verdade que os caracteres formais do Ser evidenciados como solução do problema, ou seja, como determinação do significado primário de Ser, são sempre extraídos de uma esfera particular do Ser, ou pelo menos de um grupo de entes, ou de um ente, de algum modo privilegiado e tomado como exemplo. Mas também é verdade que em todos os casos só se pode obter resposta ao problema do Ser quando, entre os caracteres da esfera, do grupo ou do ente considerado, se escolhe um que seja passível de generalização, vale dizer, que possa também referir-se às outras esferas, grupos ou entes. Nesse sentido, Platão desafiava os materialistas a dizerem o que há de comum entre as coisas corpóreas e as incorpóreas, desde que se diga que ambas são (Ibid., 247d). Mas, apesar de se procurar um significado primário formal (generalizável) do Ser, pode-se dizer que todas as soluções para o problema só fazem privilegiar, ou seja, considerar primária e "fundamental, uma modalidade determinada do ser. Ora, como as modalidades pelas quais o Ser pode ser enunciado ou asseverado são três (necessidade, possibilidade e assertoriedade), teoricamente também são três as possíveis soluções para o problema do ser. Mas, uma vez que (como veremos) a assertoriedade se reduz à necessidade, ao longo da história da filosofia encontram-se duas soluções fundamentais, bem evidentes por trás das aparentes multiplicidades e disparidades das soluções propostas. Para a primeira dessas soluções (que indicaremos com alfa) o Ser primário é a necessidade; para a segunda (que indicaremos com (beta), o Ser primário é a possibilidade. A solução a corresponde à interpretação A do significado predicativo; a solução p corresponde às interpretações B e C. Um caráter distintivo das duas soluções, mas que deve ser considerado secundário por nem sempre estar presente, é o que exporemos a seguir. Na investigação do significado do ser, a primeira delas não toma em consideração a própria investigação, enquanto a segunda pode tomar esse fato em consideração, atribuindo-lhe importância na determinação do significado do ser. E o que fazem Platão e os existencialistas.

alfa) A interpretação do Ser segundo a modalidade da necessidade prevalece na metafísica clássica. A famosa tese de Parmênides, "O Ser é e não pode não ser" (Fr. 4, Diels), estabelece que o significado fundamental do Ser é a necessidade, o não poder não ser: no que se refere ao tempo, é eternidade (simultaneidade, totum simul); no que se refere à multiplicidade, é unidade; no que se refere ao devir (nascer e morrer), é imutabilidade (Fr. 8, 2-4, Diels). Aristóteles também dá prioridade à necessidade. Para ele, o princípio de contradição, que fundamenta a sua "filosofia primeira" (ciência do Ser enquanto Ser), é o princípio que postula a necessidade do Ser, que se realiza na substância.

Aristóteles diz: "Se a verdade tem significado, necessariamente quem diz homem diz animal bípede porque isso significa homem. Mas se isso é necessário, não é possível que o homem não seja animal bípede: necessidade significa exatamente isto: é impossível que o Ser não seja" (Met., IV, 4, 1006 b 30). O aspecto pelo qual é necessário que um Ser seja (o único graças ao qual o Ser é objeto de ciência, visto que do Ser acidental não há ciência, Ibid., VI, 2,1027 a) é a sua substância. Aristóteles diz: "É um só o significado do Ser: a sua substância. Indicar a substância de uma coisa é indicar o seu Ser" (Ibid., IV, 4, 1007 a 26). Portanto, para ele, a substância é o sentido primário do Ser; é também o sentido fundamental, no qual os outros significados podem ser integrados, visto que, para Aristóteles, todas as determinações distinguidas ou distinguíveis do Ser são aspectos ou manifestações da substância (Ibid., VII, 17) (v. substância).

Este ponto de vista aristotélico foi decisivo para o desenvolvimento posterior do problema do Ser Graças a ele, o significado primário e fundamental do Ser passou a ser (e continua sendo para grande parte da filosofia) a necessidade, com os atributos, que traz consigo, de imutabilidade, eternidade, unidade, etc. Mesmo quando esses atributos deixaram de referir-se à estrutura formal do Ser (o que ocorreu no neoplatonismo antigo e árabe e no aristotelismo medieval), e passaram a referir-se a um ente privilegiado (ou seja, não a todas as substâncias, mas à substância superior, Deus), considerou-se que as outras substâncias derivariam ou participariam desta, e que derivariam ou participariam de sua necessidade e de seus atributos. Assim, segundo Tomás de Aquino, a participação das coisas criadas no Ser de Deus é participação da perfeição e da imutabilidade d’Ele (Suma Teológica, I, q. 65, a. I). Mas o conceito que dominou a metafísica medieval e, através dela, a moderna e a contemporânea, foi exposto por Avicena no séc. XI: a necessidade do Ser como tal. Todo Ser, enquanto tal, é necessário. Avicena dizia: "Se uma coisa não é necessária em relação a si mesma, é preciso que seja possível em relação a si mesma, mas necessária em relação a uma coisa diferente" (Met., II, I, 2). A propriedade essencial do possível é exatamente esta: precisar de outra coisa que o faça existir em ato. Mas, por isso mesmo, o que existe em ato existe sempre necessariamente, só que às vezes sua necessidade provém de outra coisa (Ibid., II, 2, 3). Os mesmos conceitos, expressos por Algazel (Mel, I, I, 8), fundamentaram a escolástica judaica e cristã.

No mundo moderno, o conceito de Ser como necessidade foi reafirmado principalmente por Spinoza e Hegel. Spinoza viu o Ser de Deus na necessidade, e o Ser das coisas na necessidade com que derivam da substância divina (Et, I, 8, scol. II). Hegel expressou esse mesmo conceito com o famoso aforismo que serviu de base para toda a sua filosofia: "O que é racional é real; o que é real é racional." A racionalidade do real é a sua necessidade; em virtude dela, o real, em suas determinações fundamentais, só pode ser o que é. Por isso, Hegel diz que "a função da filosofia é entender o que é, pois o que é, é a razão" (Fil. do dir., Pref.). Também por isso não existe um dever Ser, um ideal, uma perfeição que seja diferente do Ser e em cujo nome se esteja autorizado a criticar o Ser ou a dar-lhe lições. "O que está entre a razão como espírito autoconsciente e a razão como realidade presente, o que diferencia aquela razão desta e não permite que se encontre satisfação nesta é o empecilho de alguma abstração que não se libertou e não se tornou conceito" (Ibid., Pref.). Noutras palavras, só com falsas abstrações distingue-se o que deveria ser do que é, racionalidade de Ser real; isso significa que o Ser real é tudo o que deve ser, e que sua modalidade, seu sentido primário, é essa necessidade. Por outro lado, toda a filosofia de Hegel está voltada para a demonstração da necessidade das determinações do Ser.- visa a mostrar que o Ser, em sua realidade, é tudo o que deve ser (Enc., § I). A necessidade continua sendo o caráter primário do Ser em concepções filosóficas díspares. Quando Fichte afirma que Ser e atividade do eu são a mesma coisa, está reconhecendo como caráter essencial dessa atividade a necessidade com que ela se põe e o não-eu (Wissenschaftslehre, 1798, § 1). Conceber o Ser como "Consciência" ou "Matéria" não faz diferença: as determinações qualitativas não influenciam sua determinação formal primária. Tanto o Absoluto dos idealistas (Green, Bradley e outros) quanto a matéria dos materialistas são Ser necessários. Necessária é a História, de que fala Croce, tanto quanto é necessário o Ato Puro, de que fala Gentile. Este afirmava: "A necessidade do Ser coincide com a liberdade do espírito" (Teoria generale, XII, § 20). Mesmo Rosmini, para quem a ideia do Ser como "Ser possível" é fundamento do conhecimento humano, vê na necessidade e na universalidade os caracteres primários do Ser (Nuovo saggio, §§ 428-29). Husserl afirma energicamente a necessidade do Ser que ele considera primário, que é o Ser da consciência: "À tese do mundo, que é acidental, opõe-se a tese do meu eu puro e do viver do eu, que é necessária e indubitável. Toda coisa dada, mesmo que presente em carne e osso, pode não ser; mas uma vivência, dada em carne e osso, não pode não ser. Esta é a lei essencial que define essa necessidade e essa acidentalidade" (Ideen, I, § 46).

Característica típica dessa concepção do Ser, ou melhor, uma de suas teses fundamentais, é a identificação entre Ser e racionalidade, que serviu de princípio para a filosofia de Hegel. Algumas vezes essa identificação foi entendida como imanentismo, no sentido de imanência do Ser na consciência. Embora esta também seja uma tese hegeliana, nada tem a ver com a outra. Foi expressa pela primeira vez por Parmênides, que, exatamente nesse sentido, identificou Ser e pensar (Fr. 5; Fr. 8, 34-36, Diels). Certamente a tese de Parmênides nada tinha a ver com o imanentismo, porque a noção de consciência nem sequer tinha nascido (v. consciência): expressava apenas o caráter racional da necessidade ontológica. Esse mesmo caráter era expresso por Aristóteles, na doutrina de que a determinação fundamental da substância é a essência necessária, que é a razão de ser (logos) da coisa (Depart. an., I, 1, 639 b 15). Para Rosmini, o Ser possível era a própria forma da razão (Nuovo saggio, § 396). A tese em questão, ao mesmo tempo em que expressa a necessidade do Ser, postula um conceito correspondente de razão em geral (v. razão).

Ao que parece, a ontologia de Hartmann escapa a essa tradição, pois não assume a necessidade como significado primário do Ser, mas a efetividade (Wirklichkeit), à qual seriam redutíveis possibilidades e necessidades. A efetividade é a terceira alternativa da modalidade do Ser, a assertoriedade. O Ser ao qual o dever-ser e o poder-ser se reduzem, segundo Hartmann, é o Ser simplesmente existente, em sua pura efetividade ou atualidade, o Ser que, no domínio da realidade de fato, apresenta-se "desse modo e não de outro", ou seja, como existência análoga à matéria. Mas os enunciados nos quais, segundo Hartmann, se expressa a redução do necessário e do possível ao atual demonstram que, na realidade, a efetividade ainda é e sempre foi necessidade. Esses enunciados são os seguintes: 1) o que é realmente possível é também realmente efetivo; 2) o que é realmente efetivo é também realmente necessário; 3) o que é realmente possível é também realmente necessário. Negativamente: 4) aquilo cujo Ser é realmente impossível também é realmente inefetivo; 5) o que é realmente inefetivo também é realmente impossível; 6) aquilo cujo não-Ser é realmente possível também é realmente impossível (Möglichkeit und Wirklichkeit, 1938, p. 126). Assim, o primado da assertoriedade não tem significado diferente do primado da necessidade. A ontologia de Hartmann pretendeu apresentar a terceira solução teoricamente possível para o problema do Ser, mas essa solução é idêntica, mesmo em sua enunciação, à interpretação do Ser como necessidade, típica da antiga metafísica.

beta) O primeiro a formular a concepção de Ser primário como possibilidade foi Platão, para quem essa concepção atende a duas exigências fundamentais: em primeiro lugar, explicar por que se diz que tanto as coisas corpóreas quanto as incorpóreas são (Sof, 247 d); em segundo lugar, levar em conta o fato de que o Ser é ou pode ser conhecido (Ibid., 248 e). A primeira exigência exclui que a materialidade ou a imaterialidade possam fazer parte da definição do Ser A segunda exclui que da definição do Ser possam fazer parte determinações necessárias; p. ex.: que o Ser seja necessariamente imóvel (ou seja, que "tudo seja imóvel), ou que o Ser esteja necessariamente em movimento (ou seja, que "tudo esteja em movimento"), etc. (Ibid., 249 d). Em vista disso, Platão afirma que o ser é apenas possibilidade (dynamis); portanto, pode-se dizer que qualquer coisa é, desde que tenha uma possibilidade qualquer de praticar uma ação, ou então de ser submetida a uma ação por parte de outra coisa qualquer, ainda que insignificante e mesmo que essa ação seja mínima e só ocorra uma vez (Ibid., 247 e). Nesse sentido, possibilidade nada tem a ver com a potência de Aristóteles. A potência, de fato, é tal apenas em relação a uma atualidade que, ela só, é o Ser primário (v. ato). Mas para Platão o Ser primário é mesmo possibilidade. Possibilidades são também as relações reais entre os entes: estes não se mesclam nem deixam de mesclar-se em absoluto, mas apresentam determinadas possibilidades de relações. O mesmo que acontece com as letras do alfabeto e com os sons — alguns podem misturar-se e outros não — acontece com todas as coisas: desse modo, não é tarefa da filosofia enunciar a tese universal da necessidade ou da impossibilidade da comunicação, mas estudar em particular quais são as coisas que podem (ethelein) unir-se entre si e quais as que não podem (Ibid., 252-53). Este conceito não dá ensejo a uma metafísica simetricamente oposta àquela que interpreta o Ser como necessidade: não dá ensejo a nenhuma metafísica. É essa sua principal característica. De fato, se é possibilidade, o Ser não tem determinações unívocas necessitantes: não é necessário que ele seja um, e não muitos; imutável, e não mutável; imóvel, e não em movimento; eterno, e não temporal, etc. De duas determinações opostas e contraditórias, não é necessário que uma lhe pertença e a outra não: ambas podem pertencer-lhe em determinadas mas diferentes condições. Portanto, não é possível enumerar definitivamente as determinações unívocas do ser. Platão chegara a essa conclusão em Parmênides; neste diálogo mostra-se que o Ser não é um ou muitos, mas um e muitos ao mesmo tempo, no sentido de que tanto pode ser um quanto muitos (144 e), e que o mesmo vale para as outras suas determinações eventuais. A desconcertante conclusão deste diálogo é que "o uno, sendo ou não sendo, ele e as outras coisas, em relação a ele e entre si, todas, em tudo, são e não são, aparecem e não aparecem" (166 c): palavras que reconhecem a possibilidade de determinações opostas do Ser e excluem que ele possa ser chamado de "um" ou "muitos", ou mesmo simplesmente "Ser" em sentido único e absoluto. Deste ponto de vista, uma metafísica que seja o inventário sistemático das determinações unívocas e absolutas do Ser é manifestamente sem sentido. Portanto, não se deve esperar que essa concepção dê formulações sistemáticas, análogas ou correspondentes à filosofia primeira de Aristóteles, à metafísica clássica. Ao contrário, podemos dizer que essa concepção tende a evidenciar-se sempre que a determinação das características universais e necessárias do Ser cede lugar à investigação empírica: esta última é busca de possibilidade, não de determinações necessárias. Deste ponto de vista, pode-se dizer que a tradição filosófica empirista é herdeira e principal representante da concepção de Ser cuja primeira formulação se encontra no Sofista de Platão. Uma possibilidade pode ser determinada unicamente com base na experiência, na observação dos fatos, nunca por meio puramente racional ou a priori. Atribuir ao Ser o significado de possibilidade significa abrir caminho a indagações específicas, destinadas a determinar, em cada caso, de que possibilidade se trata. Com fundamento na concepção a, mesmo que as determinações do Ser mudem, é necessário que mudem, pois a mudança é determinada por princípio e absolutamente previsível. Quanto à concepção (beta), ao contrário, toda determinação, porquanto possível, só pode ser confirmada por investigação ad hoc.

Sabemos que para os estoicos o significado do Ser estava na possibilidade de praticar ou de sofrer uma ação; por isso,.chamavam de entes apenas os corpos (Plutarco, Comm. Not., 30, 2, 1073; Diógenes Laércio, VII, 56); mas, apesar de tê-los encaminhado para o materialismo, esse princípio não constituiu a base de um empirismo coerente. O empirismo, ao contrário, surge sempre que se nega a tese fundamental da concepção oposta, que é a redutibilidade do Ser a predicado. Tal negação pode ser considerada uma tese típica dessa concepção, assim como é típica da outra a identificação entre Ser e racionalidade. No fim da escolástica, Ockham formulava a tese de que o Ser ou o não-Ser de uma coisa só pode ser alcançado pelo "conhecimento intuitivo", que é a própria experiência (In Sent, II, q. 15 H; Ibid., Prol, q. 1 Z); de tal modo, podia afirmar a irredutibilidade do Ser a uma determinação conceitual e o seu significado de possibilidade. E diz: "À pergunta ‘a coisa existe?’ só se pode responder quando se sabe se a coisa existe: isso acontece quando se conhece uma proposição na qual o Ser existencial é predicado do sujeito. Ora, uma proposição assim discutível (...) de nenhum modo pode ser conhecida com evidência, se a coisa significada pelo sujeito não for conhecida intuitivamente e em si: p. ex., se ela não for percebida por um sentido particular ou se não for um inteligível não sensível que seja visto pelo intelecto de modo análogo àquele pelo qual a faculdade visual externa vê o objeto visível. Assim, ninguém pode saber com evidência que o branco éou pode ser se não viu algum objeto branco; e embora eu possa acreditar nas pessoas que me falam da existência do leão, do leopardo e assim por diante, não conheço com evidência essas coisas" (Summa log., III 2). Aqui o sentido primário do Ser é posto na possibilidade da experiência. Consequentemente, Ockham atribui necessidade apenas às proposições condicionais ("Se o homem é, o homem é um animal racional"), enquanto nega que uma proposição afirmativa qualquer possa ser necessária. Todas as proposições afirmativas são contingentes porque a proposição "O homem é animal racional" seria falsa por falsa implicação, se o homem não existisse (Quodl, V, q. 15). Esses reparos implicam duas tese fundamentais: 1) o Ser não é redutível a um predicado; 2) o Ser é uma possibilidade que pode ser expressa só por uma proposição contingente. Esta última tese revela a modalidade primária que as observações de Ockham atribuem ao Ser: essa modalidade é a possibilidade. O empirismo clássico do séc. XVII-XVIII atém-se a essa modalidade. Locke contrapõe a certeza das proposições universais, que não dizem respeito à realidade, à contingência das proposições particulares, que dizem respeito à existência. "As proposições universais, de cuja verdade ou falsidade podemos ter conhecimento seguro, não dizem respeito à existência; as afirmações ou negações particulares, que não seriam certas se transformadas em gerais, referem-se apenas à existência, pois declaram somente a união ou a separação acidentais das ideias em coisas existentes, ideias que, em sua natureza abstrata, podem não ter entre si nenhuma ligação ou rejeição conhecida" (Ensaio, IV, 9, I). Portanto, com exceção apenas da existência de Deus, conhecida por meio da demonstração, ou seja, por meio da relação que ela tem com outras existências, segundo Locke a existência é conhecida de modo contingente e imediato, através de uma relação direta com o objeto: relação que é intuição no caso da existência do eu e sensação no caso da existência das coisas. Isso exclui que a existência seja um predicado ou que de qualquer maneira possa ser reduzida a uma determinação conceptual. Locke diz: "Como, com exceção da existência de Deus, não existe nenhuma conexão necessária de qualquer existência com a existência de algum homem em particular, segue-se que ninguém em particular pode conhecer a existência de outro ser senão quando este, atuando sobre ele, passa a ser percebido. O fato de se ter a ideia de uma coisa em mente não demonstra a existência dessa coisa, tanto quanto o retrato de um homem não serve de testemunho de sua existência no mundo, ou tanto quanto as visões de sonho não constituem, por si, uma história verídica" (Ibid., W, II, I). Esse conceito da sensação como órgão de conhecimento do que existe nada mais é que o antigo conceito estoico de representação cataléptica, que "deriva de um ente subsistente e é impressa e marcada por ele, de tal modo que se conforma a ele" (Diógenes Laércio, VII, 46; Sexto Empírico, Adv. math., VII, 248). Essa doutrina equivale a definir o Ser das coisas como possibilidade de manifestação delas à percepção ou como percepção mesmo.

A definição de Ser como possibilidade é explicitamente retomada pela filosofia alemã do séc. XVIII, em especial por Wolff: "Ente é o que pode existir e, consequentemente, cuja existência não repugna" (Ont., § 134). Mas como o que pode existir é possível, o que é possível é ente (Ibid., § 1 35). Mas nesta definição tudo depende, obviamente, do significado de possível. E a propósito Wolff retoma um conceito talvez oriundo de Duns Scot (In Sent., I, d. 2, q. 7), que se encontra já formulado em Leibniz (Théod, II, § 224): "possível é o que não implica contradição, vale dizer, o que não é impossível" (Ont., § 85). Desse ponto de vista, a possibilidade era definida como simples ausência da impossibilidade, ou seja, como necessidade negativa. Portanto, nessa doutrina, a concepção de Ser em termos de possibilidade era simples aparência. Kant, com muita firmeza, viu o que se escondia por trás dessa aparência: "O jogo de prestígio, em virtude do qual a possibilidade lógica do conceito (que não se contradiz) é confundida com a possibilidade transcendental das coisas (em virtude da qual ao conceito corresponde um objeto), pode enganar e contentar só os inexperientes". A "possibilidade real" é a dada por uma intuição sensível, isto é, pela experiência atual ou possível (Crítica da Razão Pura, Anal. dos princ, cap. II). Consequentemente, "Ser não é predicado real, ou seja, um conceito de alguma coisa que se pode acrescentar ao conceito de uma coisa. (...) Se eu disser Deus é ou que Deus existe, não estarei afirmando um predicado novo do conceito de Deus, mas apenas o conceito em si, com todos os seus predicados, e o objeto em relação ao meu conceito. Ambos devem ter exatamente o mesmo conteúdo, porém nada se pode acrescentar ao conceito que expressa simplesmente a possibilidade quando penso seu objeto como dado (com a expressão: ‘Ele é’)" (Ibid., O ideal da razão pura, seção IV). Deste ponto de vista, está claro o caráter limitado e condicional de qualquer possibilidade ou Ser, portanto o caráter fictício ou fantasioso de uma "possibilidade absoluta", que valha sob qualquer aspecto (Ibid., Anal. dos princ., Refutação do idealismo). Na filosofia contemporânea, as doutrinas abaixo remetem-se a essa interpretação do significado do Ser

a) Teorias que, em matemática, em física e nas ciências em geral, definem a existência como modo de Ser particular; p. ex., como "ausência de contradição", "possibilidade de construção" ou "possibilidade de verificação". A modalidade não necessária do Ser que assim se define é evidente (v. existência).

b) Formas do empirismo, que só reconhecem Ser aos objetos de experiência possível. É a possibilidade de experimentação e observação que define o significado do Ser (v. experiência).

c) Teorias filosóficas que afirmam o primado da possibilidade. Seu precedente está na filosofia de Kierkegaard, que foi o primeiro a propor uma interpretação da existência humana em termos de possibilidade (V. existência, 3). Por outro lado, o mesmo ponto de vista pode ser reconhecido em alguns aspectos da fenomenologia de Husserl e nas doutrinas a ela ligadas. Embora Husserl privilegie o Ser da consciência e o considere necessário, ao contrário das realidades das coisas, a análise fenomenológica, sob esse aspecto, é uma análise de possibilidade; para ela, como disse Heidegger (Sein und Zeit, § 7 C): "mais elevada que a realidade está a possibilidade". Husserl diz: "Para mim, o fato de uma natureza, um mundo cultural e humano, com as suas formas sociais, etc, existirem significa que as experiências correspondentes me são possíveis, ou seja, que, independentemente de minha experiência real desses objetos, posso, a qualquer instante, realizá-los e desenvolvê-los em certo estilo sintético. Isso significa que me são possíveis outros modos de consciência correspondentes a essas experiências como atos de pensamento indistinto, etc, e que é inerente a esses atos a possibilidade de eles serem confirmados ou invalidados por meio de experiências de um tipo previamente estabelecido" (Cart. Med., § 37). Deste trecho significativo, decorre que a análise fenomenológica é uma análise em termos de possibilidade; vale dizer: a possibilidade é o significado primário que ela atribui ao ser. O mesmo acontece no existencialismo. Heidegger disse: "O ser-aí, enquanto compreensão, projeta o seu Ser em possibilidades" (Sein und Zeit, § 32); na realidade, todas as análises de Heidegger têm como tema as possibilidades do ser-aí, que constituem o tema da analítica existencial. Do mesmo modo, para Jaspers, as possibilidades objetivas constituem a própria existência (Phil., § 18), enquanto Sartre afirma que "o possível é uma estrutura do para-si, ou seja, da consciência" (L’être et le néant, p. 34). É verdade que, para Sartre, distinguir-se-ia dessa estrutura o Ser em si, que é o Ser do fenômeno que não seria nem possível nem necessário, mas simplesmente existente. Entretanto, Sartre atribui a esse mesmo Ser o caráter de contingência e não acha possível analisar o Ser em si senão a partir do Ser para si, a consciência: portanto, nessa doutrina, o primado da possibilidade é evidente.

Cumpre observar, porém, que uma das características da concepção em exame é a recusa explícita das soluções simples e globais para o problema do Ser, ou a desistência de encontrá-las; portanto, é o abandono do tratamento "metafísico" desse problema. De fato, reconhecer o significado do Ser como possibilidade exige que se passe imediatamente à consideração e ao estudo das possibilidades, nos campos específicos em que são condicionadas, onde têm "realidade". Logo, não é possível desenvolver uma metafísica da possibilidade, tomando como modelo a metafísica clássica da necessidade e visando a substituí-la. Uma tentativa desse gênero só teria como resultado o retorno puro e simples à metafísica da necessidade: isso se demonstra no próprio Heidegger, que, ao abandonar o terreno da análise existencial e passar à elaboração do "problema do Ser em geral", voltou às teses clássicas da metafísica tradicional com o reconhecimento da necessidade do Ser (Einführung in die Metaphysik, Tubingen, 1953). [Abbagnano]

Submitted on 18.05.2011 12:11
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